Sobre a querela entre Christian Dunker e Jairo Carioca: a psicanálise como campo do conflito

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Christian Dunker se pronunciou a respeito de sua participação no evento mencionado em minha última postagem, na reprodução da nota do EBEP-RJ sobre a manifestação de Jairo Carioca contra a mercantilização da psicanálise. Na nota do EBEP-RJ estava expressamente escrito que se gostaria de escutar Dunker a respeito do assunto. Então o que se pode fazer neste caso não é literalmente escutá-lo, mas lê-lo, posto que sua comunicação nos chega em texto escrito.

Texto que é, aliás, bem interessante e que traz questões relevantes para o debate, como a de buscar tentar compreender o que se busca na psicanálise quando o que se faz dela nada tem de psicanálise, através da escuta, no território, de quem realiza ato tão estranho. Quem quiser ler sua resposta, acesse o link abaixo.

 https://jacobin.com.br/2025/10/sobre-graduacoes-e-pseudoformacoes-em-psicanalise-no-brasil/

O elefante Celebes (Max ERNST, 1921)

Me importa que este blog fomente o debate, a discussão e a disputa de ideias, não a cizânia em que o conflito se converta em guerra nem o silenciamento em que o conflito se anule na dominação.

Mantenho a posição crítica à mercantilização da psicanálise, que está presente da nota do EBEP-RJ, instituição da qual faço parte. Eu a subscrevo. No entanto, o que não se trata de fazer é aderir às aventuras, desventuras, lutas, crises ou sagas individuais desta ou daquela pessoa. Mas sim aderir a posicionamentos éticos, políticos e estéticos que sustentem e sejam sustentados pela psicanálise na e diante da cultura. Tanto Jairo Carioca quanto Christian Dunker (este já citado em textos deste blog como autor-referência para algumas argumentações) têm sido e continuam sendo importantes agitadores do campo e do pensamento psicanalíticos.

O campo psicanalítico é um campo de conflitos. Tal como a democracia e o político (RANCIÈRE, 2010), a psicanálise existe necessariamente como campo do conflito (FREUD, 1923). Na clínica, mas também no debate teórico. Por isso mesmo deve criticar práticas anticonflitivas como o aperfeiçoamento da potência do eu proposto pelos coaches, os ajustes e adaptações ao ambiente propostos pelas psicologias comportamentais, pelo governo dos psicofármacos, bem como a instrumentalização da prática psicanalítica (de formação e de tratamento) como uma máquina em bom funcionamento que dá sempre um resultado previsível.

Christian Dunker 

Se a psicanálise, tanto como teoria quanto como experiência, nos ensina alguma coisa é que, se o aparelho psíquico é uma máquina (id., 1900), deve ser tomado como uma máquina cujo funcionamento é o mal funcionamento, de modo que os modelos do arco-reflexo, da ação-reação, do relógio e da tensão-equilíbrio não lhe servem. Talvez seja por isso que Freud se interessou tanto pela máquina termodinâmica como pela ótica como modelo (id, 1915, 1938): nestes aparelhos a perda e a refração devem ser levadas em conta no funcionamento, bem como o excesso e a instabilidade do sistema. Em uma palavra, se o aparelho psíquico funciona como máquina, é como máquina em deriva, a qual, em suas repetições nunca retorna ao mesmo lugar, por produzir restos e efeitos que a transformam e transformam suas próprias operações, que, aliás, podem se realizar não num continuum, mas aos saltos. São geringonças um tanto surrealistas, pouco úteis, mas que, por isso mesmo, em sua lógica própria, encetam e são transformadas por seus subprodutos: o gozo (LACAN, 1968-69), o sujeito (id, 1953), o desejo (id, ibid) e o ato (id, 1967-68). 

Também por isso, um tratamento psicanalítico não será uma retificação em direção à normalidade, ao bom funcionamento da máquina - o que seria tal coisa senão ajustá-la às preferências do Outro, preferências só possíveis de satisfazer a custa da própria singularidade? Ao contrário, será a construção da verdade a respeito do real funcionamento da própria máquina e da convocação da tomada de posição do sujeito em relação a ela o que se espera de uma psicanálise. Por isso mesmo a psicanálise é necessariamente subversiva em relação a qualquer tentativa de orquestrar os funcionamentos das máquinas. 

As figuras mais acima descritas, aquelas que caracterizo como anticonflitivas, são elas próprias instrumentalizações das práticas psi pela lógica da exploração capitalista de corpos através da oferta de dispositivos de gozo vendidos como tamponadores da falta constitutiva de todo humano (id, 1972). Me refiro à falta de objetos que o satisfaçam plenamente, que o retirem de seu desamparo diante das pulsões, diante da pressão constante delas e do fato de que o Outro não dispõe de solução para este problema, apesar de oferecer inúmeras (FREUD, 1926, LACAN, 1958-59). A promessa é sempre de fazer a máquina funcionar.

Máquina termodinâmica 

Mas algo que a psicanálise nos ensina está neste resto a que Lacan chamou de objeto a (id, ibid). Que o gozo é, no máximo parcial; que a felicidade é, no máximo, parcial; restando a nós trabalhar e amar para dar algum lugar a nosso desejo, dessa vez positivado como o substituto possível à consistência do ser, perdida miticamente, posto que nunca tida, mas fantasiada. O desejo, esta falta-a-ser, é nosso modo de existir, e ele só se sustenta na afirmação e positivação da ausência de um objeto que satisfaça plenamente a pulsão (id, 1953). 

É por isso que a psicanálise enquanto ética do desejo (LACAN, 1959-60) e estética do fragmentário e do estranho (FREUD, 1905, 1919) é necessariamente crítica à submissão ao discurso do capitalista, à mercantilização de  suas práticas, ao projeto de apagamento do sujeito dividido. A crítica deve recair aí e não sobre pessoas, uma vez que estas são, elas próprias, obviamente, sujeitos divididos, em conflito, a quem oferecemos escuta e condições para que elaborem e elaboremos nossas posições diante daquelas práticas e lógicas. 

Comentários

  1. Respostas
    1. Aqui:
      https://jairocarioca.com.br/abaixo-assinado-contra-a-mercantilizacao-da-psicanalise-e-sua-captura-pelo-capitalismo/

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  2. Excelente a metáfora do psiquismo como uma máquina capenga. Parabéns pelo texto!

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