Trompe l'oeil na formação de psicanalistas
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Hoje quero falar do trompe l'oeil. Este termo, cunhado e mantido em francês, pode ser traduzido por 'engana o olho'. Costuma ser utilizado para designar um efeito de ilusão de espaço, de profundidade, de realismo, através de técnicas de perspectiva e jogos de luzes, nas artes plásticas e na arquitetura. Mas quero falar dele na formação de psicanalistas.
Trompe l'oeil em mural nas ruínas romanas de Herculano, Itália |
O termo surgiu no século XVII, mas estas técnicas ilusórias datam de muito tempo atrás, já existiam em Pompéia e Herculano. Ainda assim, o fato de o termo ter sido cunhado no século XVII, na era do estilo barroco, não é sem importância. A arte barroca usou e abusou do trompe l'oeil; ele está intimamente ligado à lógica daquela produção cultural.
Como mostra o historiador da arte Giulio Carlo Argan, em seu livro Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco (1986), a arte barroca é voltada, fundamentalmente, à persuasão sentimental do público, diferentemente da arte renascentista que visava produzir no fruidor uma experiência de contemplação estético-racional. Toda obra barroca utiliza de algum artifício para capturar o coração do público, causar-lhe agitações sentimentais e, assim, conduzí-lo ideologicamente.
Trompe l'oeil arquitetônico no Palazzo Spada, Roma (Francesco BORROMINI, 1632) |
O barroco é, como dito, a arte dos séculos XVII e XVIII, a aurora da modernidade, período de disputas ideológicas intensas, seja entre católicos e protestantes, seja entre a burguesia ascendente, a nobreza e os monarcas, seja entre a tradição e a ciência. Cada parte nessas disputas utilizou da arte como instrumento de sedução, persuasão e mobilização do público para aderir a seu 'exército' nesta guerra de poderes, ideias e modos de vida.
Nesse sentido, o trompe l'oeil é, por um lado, apenas um dos artifícios utilizados nas práticas de persuasão barrocas e, por outro, uma confissão do cinismo mesmo do artifício. O trompe l'oeil é uma revelação ao público de que o artista está enganando e, deste modo, numa reflexão apressada poder-se-ia acreditar que ele deixaria de enganar. Mas como a ilusão que o trompe l'oeil oferece agrada aos olhos e mente do público, este continua a querer se iludir com este jogo entre verdade e mentira - ele se diverte: ele quer a ilusão.
Teto do Palácio de Würzburgo (Gian-Battista TIEPOLO, 1752-53) |
Esse tipo de jogo cínico foi apresentado por Freud em seu ensaio sobre "O fetichismo" (1927): o fetiche evidencia que o fetichista, ao mesmo tempo, crê e não crê que aquele objeto pode fazer as vezes de alternativa ao falo. O psicanalista Octave Manonni traduziu este mecanismo da seguinte maneira: 'Eu sei, mas mesmo assim...' (1969). Esta seria, do ponto de vista psicanalítico, a lógica da perversão, que é a mesma do trompe l'oeil. Reconhecer e negar o que se vê em nome do prazer.
Octave Manonni |
Pois bem, hoje estamos diante de uma situação grave no Brasil, no que diz respeito à psicanálise. Foi criada - de forma inédita - uma graduação em psicanálise numa universidade, no Paraná. Este acontecimento, na esteira da criação de formações em psicanálise que prometem rapidez, eficiência e sucesso profissional, bem como do surgimento de sindicatos e conselhos de psicanalistas, é da ordem do trompe l'oeil ou da perversão, como quiserem.
Desde Freud até hoje, a formação de psicanalistas foi e é considerada pelos próprios psicanalistas como um processo impossível de governar - porque diz respeito a uma transformação do sujeito através de sua experiência do inconsciente, o que não é previsível nem objetivável. É verdade que certas coisas se tornaram consenso: um analista se faz fundamentalmente a partir da sua própria análise, sua apropriação da teoria psicanalítica é necessária e, também, deve-se ter o cuidado para que os atendimentos sejam feitos sob supervisão de um psicanalista mais experiente. Mas obviamente, neste famoso tripé da formação, a experiência da análise é o que revela melhor o quanto há de não objetivável na formação do analista. Aliás, uma análise pode perfeitamente levar alguém para longe do desejo de se tornar psicanalista - é um processo em aberto e não uma linha reta com objetivos e metas a serem cumpridos em determinado prazo: a experiência do inconsciente nos abre para um caminho imprevisto.
Ora, prometer prazos para formação de analistas, objetivar a transmissão da psicanálise, controlar o inconsciente são o avesso da formação responsável de psicanalistas - que vão, é bom lembrar, tratar pessoas por aí, gente de carne, osso e sofrimento. É um embuste prometer formação de psicanalistas através do modelo universitário; é uma ilusão prometer sucesso (e o que seria isso?) e rapidez na formação; é nonsense organizar sindicatos e conselhos para uma ocupação cuja formação não é profissional, de especialista, mas sim um trabalho de transformação subjetiva.
Porém, é óbvio que estas promessas de graduação, formação rápida etc. são sedutoras e servem para isso mesmo: persuadir, vender um produto. O comprador, o consumidor, pode muito bem querer participar deste jogo perverso mesmo reconhecendo o trompe l'oeil, o 'me engana que eu gosto', pois, às vezes, busca justamente o fetiche do título de psicanalista, o diploma, a insígnia fálica. Mas aqui é preciso que os psicanalistas se posicionem e advirtam o interessado que uma psicanálise, como Freud a construiu, nos coloca diante de nossa castração e não da ilusão fálica prometida nessas propagandas.
A melhor atitude que um psicanalista responsável pode ter diante desta enganação persuasiva é acusar a perversão, indicar o trompe l'oeil. Não à graduação universitária em psicanálise! Repúdio às formações que garantem rapidez e sucesso!
Muito boa argumentação! Seria importante divulgar em outros espaços!
ResponderExcluirObrigado. Então ajude na divulgação, por favor!
ResponderExcluirUm dos melhores argumentos lidos até agora! Excelente!!
ResponderExcluirÉ hora de tod@s aqueles que apreciam e respeitam a Psicanálise se posicionar contra essa aberração que é a Graduação em Psicanálise!
ResponderExcluirFreud deve estar se revirando no túmulo...
Lindo o texto, a arte mais uma vez ensinando algo sobre a Psicanálise. Parabéns
ResponderExcluirObrigado, Pedro. A sua contribuição estimula a nossa reflexão sobre a formação do analista e ao mesmo tempo sobre nossas limitações para se contrapor ao Estado. Continuemos na luta!
ResponderExcluirSim. A luta continua e parece que estamos mal armados!
ExcluirImportante reflexão!!
ResponderExcluirObrigada
ExcluirConcurso plenamente
ResponderExcluirIndiscutível a importância deste texto . Já o divulguei !! Ao máximo
ResponderExcluirPedro, seu texto é excelente e de suma importância. Divulgando muito. Graça
ResponderExcluirObrigado!
ResponderExcluirTexto muito lúcido,estamos na era do instantâneo tipo café solúvel,tudo pra ontem... também fiquei chocada com o anúncio dessa formação,mas fico pensando se uns anos atrás eu na minha ignorância também não embarcaria nisso.O que precisa é mais aproximação da psicanálise do público comum enquanto informação e esclarecimento sair da elite e ir pro povo.Grata pelo esclarecimento 🙏
ResponderExcluirConcordo, Melissa! Esse blog é um esforço de fazer essa aproximação. Mas não pode ser um movimento isolado.
ExcluirTexto excelente Pedro. Uma luta de todos! Já compartilhei.
ResponderExcluirObrigado!
ResponderExcluirTexto excelente, que vale a pena compartilhar. Mais uma vez a Psicanálise é alvo de tentativas de anulação da sua virulência...
ResponderExcluirObrigado. E sim: é sempre a força subversiva da psicanálise o que está em causa.
ExcluirMuito bom! Estamos na universidade para a transmissão da psicanálise mas demarcando o seu lugar. Não há bacharel, há inconsciente! Parabéns pelo texto.
ResponderExcluirMarcia, obrigado. O tema da transmissão da psicanálise é espinhoso. Eu mesmo não sei se diria como você: que estamos na universidade PARA A transmissão da psicanálise. Algo a se pensar.
ExcluirVerdade. Não sei se estamos PARA, mas demarcamos uma diferença. E bem difícil como Freud já havia postulado no texto ‘A psicanálise e a universidade’. Às vezes confuso para os próprios alunos. Enfim, seguimos no trabalho e na luta. Abraço!
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