Psicanálise, velhice e solidão (e uma crítica a Pasternak)

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Na semana passada foram divulgados diversos dados recolhidos no último Censo Nacional. Ainda há muitos a virem a público, mas o que se divulgou já basta para eu escrever sobre algo importante que marcará o futuro próximo do Brasil. Antes deste Censo, já se considerava a estimativa de que em 2030 o número de idosos superará o de crianças e adolescentes. A Agência Brasil indica que o contingente de idosos residentes no Brasil aumentou cerca de 40% em 9 anos, enquanto houve uma queda de 5% no número de pessoas até 30 anos. O Censo, de certo modo, ratifica o dito acima ao divulgar seus primeiros dados. Soma-se a estes outro dado importante: encontrou-se um número menor de moradores por residência - e em especial um número maior de residências com um só morador -, e se tem uma estimativa importante: em breve, teremos mais gente idosa vivendo sozinha do que hoje.

Tais estatísticas certamente apresentam um panorama que vai pautar a construção de políticas públicas para lidar com esta realidade, mas, aqui, pretendo vislumbrar o que vem pela frente a respeito da prática psicanalítica brasileira. Pretendo, aqui, fazer um exercício de futurologia, com todas as chances de erro que tais exercícios comportam: aliás, a própria divulgação destes textos de futurologia - sejam ficções literárias ou cinematográficas, sejam textos acadêmicos - tem incidência no nosso processo decisório para a realização ou não de certo futuro, tais textos não são neutros, eles já são a transformação do futuro, de modo que eles, na verdade, não visam acertar suas previsões, mas impedir que elas se realizem. Me refiro a obras literárias como 1984 (ORWELL, 1949) ou Fahrenheit 451 (BRADBURY, 1953) ou textos acadêmicos que sinalizam para as catástrofes atômica (SLOTERDIJK, 2000) e/ou ecológica (BECK, 1986) por vir, por exemplo. Tais produções nos fizeram refletir a respeito do futuro e, assim, buscar não realizá-lo como previsto, mas fazê-lo outro, como indica Jurandir Freire Costa em seu O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo (COSTA, 2004). O que pretendo fazer, novamente, é menos uma adivinhação do futuro e mais um alerta a respeito do que podemos vir a encontrar, em particular na clínica psicanalítica. 

Cabeça de velho (Candido PORTINARI, 1942) 

Feita a advertência, sigamos, então. As informações e estimativas oferecidas pelo IBGE nos permitem imaginar que nosso país, em um decênio, será um país com uma grande população de idosos e que, além do mais, dentro desta população de idosos, um percentual bastante relevante será composto por idosos que vivem sozinhos. Seria preciso, ainda, cotejar este quadro com outro dado estatístico de nosso presente - que a expectativa de vida dos homens é mais baixa que a das mulheres -, para ser mais rigoroso a respeito do que parece, também, que vai acontecer: a maior parte dos idosos que morarão sozinhos é constituída por mulheres. Assim, parece que teremos um montante bastante significativo de mulheres idosas vivendo sozinhas no Brasil. 

E o que a psicanálise tem a ver com isso? Pode-se dizer que a psicanálise escuta um sujeito singular e que dados estatísticos pouco ou nada falam deste sujeito. Concordo parcialmente com este argumento: se é verdade que a psicanálise se dá como escuta da realidade psíquica, da lógica da fantasia, é ainda preciso lembrar que a fantasia não é um constructo solipsista, a fantasia é modelada através do Outro. Ao contrário, aquilo que chamamos de 'realidade externa' não deixa de ser constituída também por fantasias e delírios compartilhados, como Freud chegou a comentar a respeito da religião, por exemplo (FREUD, 1927) e Pfister a respeito da ciência (PFISTER, 1928). Já Lacan, a partir da influência da linguística de Saussure (SAUSSURE, 1916) e da antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS, 1958), sinaliza que o campo da linguagem vem do Outro e tem relação com cada um de nós como alteridade, de modo que o Inconsciente, que é suposto estruturado como uma linguagem (LACAN, 1953), é também definido como o discurso do Outro (id., 1957-58). 

Aliás, é o desconhecimento, talvez ingênuo, talvez não, desta visada, que faz com que cientistas de respeito, ao abraçarem as perspectivas positivista ou neopositivista, tomem as 'evidências', os 'dados', os 'fatos' como uma depuração do real de qualquer contaminação do sujeito, assegurando uma objetividade que se conjugaria com uma vontade de conhecer, dominar e manipular o real. Ora, parece ser o caso da brilhante Natalia Pasternak em recentes comunicações públicas - e, ao que parece, em seu novo livro, escrito em parceria com Carlos Orsi, Que bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não precisam ser levados a sério (PASTERNAK & ORSI, 2023): a notória cientista brasileira defende que a psicanálise está para a ciência assim como estão a astrologia e a homeopatia. Bem, este tipo de crítica data dos tempos de Freud, que, aliás, queria - malsucedidamente - que a psicanálise fosse reconhecida como ciência. E esse fracasso se deveu a que, certamente, positivista a psicanálise não é, afinal, através da escuta do relato de seus pacientes, bem cedo Freud se deu conta de duas coisas: 1) o suposto fato nunca é preciso, o registro não é idêntico ao real, além de sofrer transformações várias em nome do princípio do prazer, como esquecimentos, associações de ideias múltiplas, condensações, deslocamentos, a emergência de lembranças encobridoras etc. (FREUD, 1899, 1900) e 2) principalmente porque o princípio de realidade (aquele que, segundo Freud, condiciona o método científico [FREUD, 1927]) não se antagoniza ao princípio do prazer, mas serve a ele (id., 1912), ou seja, nossa relação com a realidade não é jamais neutra, ela atende à nossa busca por prazer e evitação do desprazer, o que estabelece esquecimentos, preferência por certas interpretações a outras etc.

Natalia Pasternak na CPI da COVID-19, em 2021

Se a psicanálise quer ser ciência, não é a partir do critério positivista, mas antes do positivismo e desde Galileu já havia ciência (KOYRÉ, 1982) e o advento da física quântica novamente indicou a insuficiência da abordagem positivista para a suposta conquista de rigor e certeza (BOHR, 1949). Lacan, em "A ciência e a verdade" (LACAN, 1965), esclarece como pensa a relação entre a ciência e a psicanálise: enquanto a ciência, para funcionar, em nome de uma objetividade que se quer absoluta, opera uma foraclusão do sujeito, a psicanálise escuta justamente este sujeito posto de fora do campo simbólico científico. O psicanalista Luciano Elia acabou de publicar um breve e contundente texto, que circula pelas redes sociais, em que esclarece exatamente que falta a Pasternak um debate epistemológico mais consistente com o campo psicanalítico e sinaliza que nestes posicionamentos está presente também uma certa disputa teórico-política-econômica; subscrevo cada linha do texto do amigo Luciano Elia e remeto o leitor ao texto dele, "Desconhecimento travestido de ciência" (ELIA, 2023).

Retomando a discussão anterior, portanto, não se pode dizer, numa perspectiva psicanalítica, que a fantasia é o que há 'dentro' do sujeito e que a realidade material é o que há 'fora'. De modo algum. É justamente a dificuldade, senão a impossibilidade, de trabalhar com esta tópica dentro-fora, o que fez Lacan abraçar uma abordagem topológica de torsões e nós. A famosa banda de Moebius que se pode ver numa gravura de Escher usada para ilustrar a capa de seu O seminário livro 10: a angústia (LACAN, 1962-63), é mais adequada às problematizações que a psicanálise insere no campo epistêmico: o dentro e o fora dizem respeito a momentos numa linha de raciocínio; num momento seguinte, o que era dentro está fora e vice-versa, ao ponto de se implodir esta cisão. Tanto aquilo que chamamos de realidade é modelado pela percepção e pelas fantasias do sujeito, quanto aquilo que chamamos de sujeito e suas fantasias só se constitui com a incidência do Outro na tentativa de dar conta de um real.

Fita de Moebius II (Cornelis Mauritius ESCHER, 1963)

Enfim, pode-se dizer, portanto, que o modo como se organiza um campo simbólico tem efeitos constitutivos de subjetividades diferentes daqueles de outro campo simbólico. Que lugar simbólico é dado aos velhos solitários do sexo feminino? Pois estas pessoas, aparentemente, haverão em profusão no Brasil num futuro não muito distante. No mesmo seminário citado acima, numa lição em que Lacan volta de suas férias de inverno, diz o seguinte a respeito da situação dos velhos ricos franceses dos anos 60:

"Os esportes de inverno são uma espécie de campo de concentração da velhice abastada, que todos sabem que se tornará um problema cada vez maior no avanço de nossa civilização, dado o aumento da média etária com o tempo." (LACAN, 1962-63, p. 163)

O problema social da velhice já batia às portas da França na década de 1960. Não por acaso, Simone de Beauvoir, logo em seguida publicou um ensaio seminal sobre o assunto: A velhice (BEAUVOIR, 1970). É importante acrescentar que se os esportes de inverno, chás dançantes e excursões de turismo - e, claro, os asilos - têm a função de um campo de concentração da velhice abastada, o que resta à velhice pobre é ser um resto abandonado. A figura do campo de concentração indica, como o livro de Beauvoir, que, naquela época, na França, o velho não tinha mais lugar social, era um ser destituído de valor simbólico, podendo ser deixado morrer. É verdade que, de lá para cá, se desenvolveram de modo exponencial, tecnologias que capacitaram o tratamento e a cura de diversas doenças, bem como técnicas para que o idoso retardasse a perda de autonomia; mas ela vem inelutavelmente em algum momento - e as inúmeras mortes de idosos nos verões muito quentes de Paris de tempos em tempos nos mostram como o idoso solitário e sem autonomia está ainda em um estado de desamparo assustador naquele país.

Os idosos - e tudo indica, tendo em vista o nosso machismo histórico, que, ainda mais as idosas - do Brasil não parecem ocupar nem ocuparão lugar diferente em nosso campo social. Digo isso porque o culto à juventude, à utilidade produtiva de capital no mundo do trabalho e o horror à morte só foram reiterados ao longo das últimas décadas, sob a lógica daquilo que Michel Foucault chamou de biopolítica (FOUCAULT, 1976). Concordo com Joel Birman, em Arquivos do mal-estar e da resistência (BIRMAN, 2006) quando este autor estabelece um nexo entre a anomia (a falta de lugar social e simbólico) e a melancolização. A condição e o lugar social dos idosos em nossa cultura moderna (diferente, por exemplo, das sociedades pré-modernas, nas quais o idoso tinha o lugar social de 'ancião', guardião da tradição a ser respeitada), são propícios à melancolização. Os psicanalistas devem estar preparados para o surgimento de mais gente, sozinha, melancólica, diante de um Estado que deveria ser previdente sob constantes ataques e ainda incipiente, que só encontrará na psicanálise um lugar de escuta para sua condição de resto, de dejeto. Hoje, ao supervisionar estágio clínico na UFF já encontro esses personagens - imagino quantos ainda aparecerão no serviço de psicologia aplicada (SPA) da universidade nos anos que vêm!

Luciano Elia

Há uma literatura a respeito da clínica da melancolia muito interessante, desde a francesa Marie-Claude Lambotte (LAMBOTTE, 1997) até diversos autores brasileiros, com destaque Maria Rita Kehl (KEHL, 2009) e, fundamentalmente, os pesquisadores do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPPEC), encabeçados pelos nomes de Teresa Pinheiro, Julio Verztman e Regina Herzog, que partiram do modelo da melancolia para pensar as subjetividades contemporâneas em trabalhos como De Édipo a Narciso: a clínica e seus dispositivos (PINHEIRO, VERZTMAN & HERZOG, 2014) e o novo De Narciso a Sísifo: os sintomas compulsivos hoje (id, 2023).

Mas e à respeito da velhice? E da solidão? Certamente há trabalhos de psicanalistas sobre esses temas, mas não têm tido o destaque que terão de ter num futuro próximo. Fica aqui um incentivo para que os psicanalistas se dediquem, por um lado, a estudar estes temas, que cada vez mais aparecerão em seus divãs, como, ao mesmo tempo, lutem, na arena política, para que se estabeleçam políticas de cuidados com a população velha brasileira, do presente e do futuro - nem que seja por motivos egoístas, afinal, todos seremos velhos!

Desta maneira, a intervenção de Pasternak, além de pouco rigorosa em termos epistemológicos, é problemática no que diz respeito às políticas públicas de saúde, porque a autora defende que o governo brasileiro não invista recursos em psicanálise, dentre outros tratamentos que não aqueles construídos dentro de parâmetros positivistas. Ora, se teremos cada vez mais velhos solitários no país, muitos deles deprimidos, que tipo de cuidados devemos oferecer? Justamente a cientista que lutou contra o negacionismo no período da pandemia de COVID-19 deveria ainda estar atenta à ética do cuidado e repensar suas críticas à psicanálise. Afinal, dentro da lógica aparentemente positivista há duas intervenções 'psi': a psiquiatria organicista que administra uma farmacologia que cala o sujeito e a terapia cognitivo-comportamental, que adequa o indivíduo a uma norma. Em nenhuma das duas a escuta de uma idosa sozinha e melancólica é atendida. Ambas as lógicas reforçam o isolamento e a solidão, pois são utilitaristas: e, em nossa cultura, a utilidade do velho é nenhuma, no máximo é 'não encher o saco' dos jovens. A psicanálise oferece uma escuta - e uma escuta oferece dignidade, oferece a condição de afirmar o desejo como afirmação da vida, ainda...

Homem velho com as mãos em sua cabeça (Vincent VAN GOGH, 1890)

Comentários

  1. Discussão necessária e essencial para tempos em que o sujeito virou objeto e teve sua subjetividade obscurecida.

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    1. Sim, Raquel. De fato, de tempos em tempos vem uma nova onda dos esforços de tomar pessoas por objetos de estudo, de manipulação, de gestão.

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  2. Texto muito interessante, de certa forma bem afrenta do seu tempo, assim como o uso mais exponencial de canabis por jovens, são consequências que vamos ter que lidar no futuro.

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  3. A solidão na velhice é inerente a sua condição já que as amizades geralmente são na mesma faixa etária. O tédio tb assusta

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  4. Excelente texto! Compartilhei 😁

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  5. Leitura indispensável

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  6. Pedro: qual seu tel ou email? Sou jornalista, tia do Claudio Aarão Reis, escrevo para o Forum 21, mandei sei ótimo texto para a Red Estação Democracia meus amigos de Porto Alegre q costumam replicar minhas matérias e o Editor de lá quer mto falar c v. Aguardo v e seus dados, p favor. Abraç. Lea Maria Aarão Reis/leareismaria.gmail.com
    Abraço. L.

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