Um ato falho histórico ou O Inconsciente nas franjas do marketing

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Em minha última postagem, feita domingo passado, eu havia escrito que aquela seria a última antes das eleições - e que comentaria as eleições somente quando terminassem. No entanto, como se percebe, estou postando na véspera das eleições: o motivo é que há um evento estético-cultural a se comentar ainda hoje - o debate para presidente organizado e transmitido pela TV Globo na noite de sexta-feira 28 de outubro. Ou melhor: comento aquele debate pois o próprio debate articulou inconsciente, política e estética, de bandeja, para ser comentado. Não me furtarei a isso. Ainda mantenho minha relutância em comentar o processo eleitoral - isto fica para depois que o jogo acabar.

Jair Bolsonaro e Luís Inácio Lula da Silva no debate para presidente da TV Globo, segundo turno de 2022

Todavia, o jogo chamado 'debate' deve ser comentado. Ao contrário do que alguns comentaristas políticos pontuaram - talvez por esperança ingênua, talvez por cinismo -, eu não esperava deste debate a apresentação e discussão de propostas consistentes por parte dos candidatos. Simplesmente porque desde quando eu tinha meus 13 anos de idade, em 1989, assisti a todos os debates e jamais vi isso acontecer. Tudo sempre se passou como um espetáculo de marketing; a propaganda de um produto que não é outro senão o candidato. E, como de costume nas propagandas de desodorante, biscoitos, carros e bancos, não se apresenta o conteúdo do produto (o que quer que seja isso), mas sim uma imagem que gere no público consumidor uma simpatia, uma vontade de se aproximar do objeto e, ao mesmo tempo, uma repulsa pelo concorrente. Não se trata de jornalismo, se trata de publicidade.

Por isso mesmo, os candidatos são treinados para os debates com estratégias performativas que os evidenciariam como 'bons' e os outros postulantes ao cargo como 'ruins'. No caso do segundo turno, tudo se assemelharia - na medida em que são apenas dois candidatos que concorrem - a uma mistura de um reality show com uma partida de xadrez. Poderíamos dizer que eles vão preparados para dominar o discurso, a imagem, a performance, de tal maneira que não haveria nenhum espaço para a espontaneidade, e, vão também armados, ao mesmo tempo, para desmontar a imagem e o preparo do adversário. O que há de interessante nesses debates - ao menos para um psicanalista - é ver, apesar dos pesares ou porque o adversário provocou tal situação, aparecer o sujeito por trás do que ele quer voluntariamente mostrar. Nós, psicanalistas, repisamos que o sujeito é dividido, que algo sempre escapa do domínio egóico, que o Inconsciente visita a cena - sempre causando embaraço -, e isso, de fato, aconteceu no debate de ontem à noite.

Se na última postagem tratei do tema das formações de compromisso e das formações do Inconsciente, Jair Bolsonaro parece ter oferecido ao Brasil uma oportunidade de discutirmos mais uma vez uma formação de compromisso que rendeu um livro inteiro a Sigmund Freud - o ato falho (FREUD, 1901). O ato falho é, como qualquer formação de compromisso, um produto da manifestação de um ou mais desejos inconscientes cujas formas sofreram o efeito de distorções, metamorfoses e disfarces que a censura Pré-Consciente/Consciente impõe como condição de passagem para preservar a imagem do eu. O ato falho latu sensu diz respeito a qualquer ato ou dito que o corpo realiza e que o eu não reconhece como promovido por sua deliberação, o que quer dizer que ele não se reconhece no ocorrido. Pode ser um gesto atabalhoado aparentemente sem razão de acontecer, pode ser um esquecimento esquisito (como quando não lembramos de um nome que obviamente sabemos; p.e.: o nome de um amigo próximo), pode ser a troca de palavras (e é sobre este ato falho que quero falar), pode ser um erro em cálculos etc.

O presidente disse, em seu pronunciamento final do debate: "Muito obrigado, meu Deus - e, se essa for a Sua vontade -, estarei pronto para cumprir com mais um mandato de deputado federal" (sic)...e, em seguida, com o embaraço típico de quem cometeu um ato falho revelador, trocou as palavras 'deputado federal' por 'presidente da república'. A performance controlada e dominada pela vontade consciente tomou uma rasteira, não somente do oponente externo, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, mas do oponente interno - o desejo inconsciente. Trata-se de um ato falho histórico, tendo em vista que ocorreu às vésperas de uma eleição para presidente, num debate televisivo que poderia ser decisivo (e pode ter sido).

Interpretar um ato falho fora da relação transferencial de paciente-analista, sem o material associativo que o paciente traz, corre todo o risco de se transformar em "Psicanálise 'selvagem'" (FREUD, 1910). Por isso, caminharei com todo o rigor do pensamento psicanalítico para evitar tal desvio. 

Fernando Gabeira 

Imaginemos a seguinte cena burlesca fictícia (e, no entanto, não exatamente inédita): Um marido, na cama, durante o ato sexual, empolgado com o prazer que sente, diz o nome...de outra mulher, e não da esposa. Ninguém imagina que esta mulher e este homem considerarão o episódio um mero engano que pode ser simplesmente corrigido ao se dizer o nome certo. Difícil imaginar a cena sem um rubor no rosto do marido e uma irritação na reação da esposa. Vou além: a estranheza gerada não só em si mesmo, mas também no outro, faz parte da lógica do ato falho; o outro sabe que houve um 'engano' (ou seria um 'acerto', a revelação de uma verdade?), nesse caso quanto ao reconhecimento de seu valor.  Freud trabalha esta ideia em Psicopatologia da vida cotidiana (id, 1901) quando aborda os esquecimentos de nomes próprios, por exemplo: quando esquecemos reiteradamente o nome de alguém que conhecemos bem estamos, ao mesmo tempo, dizendo àquela pessoa que ela não importa muito para a gente - é esse o desejo inconsciente, um desejo sádico e narcisista, que só atinge seu fim se o outro 'sacar' o que está em jogo e se sentir desprezado. Caso o sujeito não perceba que o outro se humilhou, ele não realiza o desejo sádico. Em suma: há desejos que só se realizam caso o outro nos indique algo.

Ora, portanto há uma dimensão do ato falho que é relacional; só faz sentido porque alguém o escuta, recebe a mensagem ou, como diria Lacan, porque a carta/letra (lettre) chega a seu destinatário (LACAN, 1956). Por esta razão, um ato falho não é uma experiência solipsista - caso o fosse, não geraria vergonha, um sentimento social, mais ligado ao outro externo do que a culpa, relacionada a um outro internalizado (FREUD, 1912-13). Como Bolsonaro ficou envergonhado, embaraçado com seu ato falho, comentarei de que modo a 'carta' de Bolsonaro chegou a quem ele a direcionava - a nós, o público daquele show de TV.

O jornalista Fernando Gabeira, da GloboNews, apesar de usar o termo 'subconsciente' - que é, psicanaliticamente falando, inapropriado, errado, posto que o Inconsciente não tem gradações, não é algo pouco consciente, ele é bem mais o que foi expelido da consciência (ou algo é Inconsciente ou é Pré-Consciente/Consciente, não há a categoria 'um pouco consciente', pois estamos falando bem mais de estados de arquivo da memória e dos pensamentos do que de níveis de atenção [id., 1900]) -, recebeu a seguinte 'carta' do candidato do PL à presidência: ele a interpretou como uma declaração, à revelia da própria vontade, de que Bolsonaro foi e ainda é, mesmo que ocupando o cargo de presidente, um deputado federal - e mais, um deputado federal do 'baixo clero', que não se sente, de verdade, à vontade num cargo de responsabilidade e altivez que um presidente da república exige. Esta interpretação parece pertinente, na medida em que, no debate, antes do ato falho de Bolsonaro, Lula sublinhou o quanto a falta de compostura, o vocabulário grosseiro, a atitude queixosa, acusatória, e o isolamento do Brasil no cenário internacional atuados pelo adversário não eram atitudes compatíveis com a importância, a respeitabilidade e a simbologia do cargo de presidente da república. Nesse sentido, o jogo de xadrez de Lula teria funcionado: sua intervenção teria tocado em alguma verdade de Bolsonaro que ecoou no ato falho.

Freud ensinou que cada formação do inconsciente não necessariamente tem uma única interpretação. Por dois motivos: 1) não temos acesso direto ao Inconsciente para poder averiguar qual a interpretação revela a verdade, o que temos como possibilidade é julgá-la por seus efeitos, o Inconsciente - por definição quase tautológica - nunca é consciente; 2) cada formação do inconsciente pode admitir uma sobredeterminação de sentidos; isso quer dizer que, através de condensações e deslocamentos, diversos desejos podem se amalgamar numa única formação por encontrar uma via facilitada de acesso ao aparelho motor, tendo em vista o princípio do prazer - a pressão por buscar a satisfação através do prazer, não importa como, se impõe; como se diz no ditado, 'onde passa um boi, passa uma boiada', mas aqui não quero de modo algum tomar o ditado na acepção que um ex-ministro do meio-ambiente de Bolsonaro deu, que queria naquele contexto dizer 'onde passa uma serra-elétrica, passa um desmatamento' (tomando isso como estratégia política positiva!); o ditado a que me refiro é mais antigo que o modo perverso que o ministro o emprega e indica, para o que nos interessa no campo psicanalítico, que, onde um desejo consegue acesso ao aparelho motor, abre-se uma facilitação para que outros desejos venham na esteira encontrar uma via para a satisfação, o que de certo modo já se encontra desde o Projeto para uma psicologia científica (id, 1895). Sendo assim, considerarei, além da arguta escuta de Gabeira, outras possibilidades de interpretação que não se opõem a ela, mas, ao contrário, se somam, posto que o Inconsciente admite até mesmo desejos contrários coabitando a mesma experiência (a exigência de coerência é do Pré-Consciente/Consciente):

Jacques Lacan 

- Ao trocar 'presidente da república' por 'deputado federal', Jair Bolsonaro, inconscientemente, admite a derrota nas eleições. Como sabemos, desde o resultado do primeiro turno, Lula está à frente das pesquisas. Sabemos também que Bolsonaro já ameaçou, à la Trump, não reconhecer o resultado das urnas caso perca - porém, em entrevista à jornalista da Globo, Renata Lo Prete, imediatamente após o debate, admitiu que reconhecerá a derrota caso as urnas deem a vitória a Lula. Por que será que Bolsonaro mudou de atitude? Estratégia eleitoral para passar uma imagem de democrático, respeitador da constituição, para ganhar votos dos indecisos? Pode ser. Pode ser também que ele leu a mesma notícia que eu, na véspera: que muitos congressistas dos EUA estão pressionando Biden a parabenizar o vencedor das eleições brasileiras assim que sair o resultado, para impedir atitudes golpistas. O recado estava dado: os EUA aparentemente não apoiariam um golpe. Ou será simplesmente que Bolsonaro está cansado e só quer ir para casa, coisa que pediu diversas vezes a Lula no debate ('Lula, vai pra casa')? Na disputa imaginária e agressiva em que os postulantes ao cargo podem cair, caso por algum momento, esqueçam que suas ações são meras estratégias de marketing para afetar terceiros, como Lacan já diziam em 1948 em seu texto sobre a agressividade, o eu toma o outro paranoicamente como algo a ser destruído ou aglutinado, mas, ao mesmo tempo, como o próprio eu constrói sua imagem como identificação especular ao outro, a reversibilidade se torna possível: ou seja, ele pode perfeitamente projetar no outro sua imagem e caracterizar o outro (seja pelo que odeia, seja pelo que ama) a partir de si. Mandar o concorrente pra casa, falar de seu cansaço, seria falar do outro ou de si?

- Bolsonaro teria, talvez, neste ato falho, seguindo ainda a interpretação anterior (e aqui sigo uma sugestão interpretativa de uma amiga psicanalista do EBEP-RJ, Leila Ripoll), numa realização de desejo, ao mesmo tempo admitido a derrota e, magicamente, garantido para si a imunidade parlamentar, pois teme as ameaças de Lula: quebra do sigilo de 100 anos que o atual presidente impôs a diversos momentos críticos de sua administração, além do fim e revelação do orçamento secreto que anima e alimenta o apoio parlamentar ao presidente. Aparentemente, Bolsonaro temeria por ser processado e, quem sabe?, condenado. Ao menos é o que reiteradamente indicam suas reações às suspeitas de 'rachadinha' na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro.

- Última interpretação: no ato falho, Bolsonaro constrói a frase dando a Deus a vontade de que Jair Messias cumpra um mandato de deputado federal. Essa seria a vontade de Deus, não a sua. O presidente quer ser presidente, mas Deus não quer que ele seja. Deus quer rebaixá-lo a deputado federal. Talvez seja uma forma de demonstrar publicamente o sentimento inconsciente de culpa que carrega, por exemplo, diante de Deus. Bolsonaro sabe que utilizou demais o nome de Deus, para tudo que lhe convinha, associou sua política armamentista à pureza de coração, à Graça; associou seu discurso de ódio ao amor cristão. Em algum momento o desconforto diante do que faz vem cobrar a conta. Deus - ou o supereu (aqui basta o considerarmos como algo semelhante à consciência moral) - o está punindo, o julgou muito mal; talvez por isso, aliás, Bolsonaro quase caiu no chão três vezes durante o debate. Ele estava literalmente desequilibrado. Seria porque estava irritado? Seria porque estava caindo simbolicamente (na eleição [sob os olhos do povo], sob os olhos de Deus)?

Friedrich Nietzsche

Aliás, o supereu parece ter agido mais cedo no mesmo dia, em outro ato falho do presidente, antes do debate, no qual ele disse que a ciência mostrou que ele estava errado, quando queria dizer o contrário! Aqui não é o Deus internalizado como supereu quem machuca o candidato, mas a autoridade dos cientistas e intelectuais por quem ele sempre revelou desprezo, mas que poderíamos, à maneira de Nietzsche, dizer que revela, bem mais, ressentimento (NIETZSCHE, 1886): sempre os julgou poderosos, superiores, e por isso os odiou, invejou, nunca se sentiu à altura deles. Se eles são rejeitados na realidade, eles retornam de dentro do próprio candidato para sabotá-lo.

Deve haver outras interpretações possíveis para tal ato falho, e eu gostaria muito de ouvir o próprio candidato tentando interpretá-lo, porém não creio que isso ocorrerá. Dizendo isso tudo não sabemos, todavia, o resultado das eleições, mas apenas a posição anímica dos concorrentes. Lula, junto de Deus e da ciência (que ele tratou de colocar, em seu discurso, no debate, como ideais a que respeita), parecem vencedores, e Bolsonaro, pareceu perdedor. Mas quem decide é o eleitor, não os candidatos - o que vimos foi um show de TV, de venda de produtos e revelações sutis ou não dos sujeitos por trás da 'marca'. 

Boas eleições para o Brasil! Que tudo corra bem!

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