As linhas de Rosana Paulino: arte e delicadeza como força clínica e política

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Detalhe de Parede da memória (Rosana PAULINO, 1994-2015)

No fim de semana passado ocorreu a vigésima segunda jornada do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos no Rio de Janeiro (EBEP-RJ), cujo tema era Parentalidades. O evento foi muito interessante, mas uma das mesas me tocou de tamanha forma que entendi que tinha de escrever alguma coisa aqui neste blog, que aliás andava meio parado. Me refiro à mesa 5, "Criação e coletividade na obra de Rosana Paulino", composta por membros do grupo de trabalho do EBEP-RJ "Estética e Psicanálise": Desirée Jung, Margarida Cavalcanti, Marielena Legey, Nelma Cabral, Vera Pallamin e Zélia Villar. Um trabalho coletivo que, como o título da mesa indica, se debruçou sobre a obra da artista plástica Rosana Paulino para, não somente divulgá-la, mas também demarcar sua relevância neste trabalho coletivo que cabe aos brasileiros: o de elaborar as dores sociais e subjetivas da herança de séculos de escravização dos negros pelos brancos.

Aqui pretendo, ao mesmo tempo, situar o leitor a respeito do que aprendi com minhas colegas e com Paulino, bem como acrescentar algumas linhas que expressam esboços de ideias que me vieram a partir daquela mesa.

Rosana Paulino é uma artista plástica contemporânea brasileira, paulistana, negra, que terá parte de sua obra exposta a partir de 26 de setembro numa intervenção no Museu Eva Klabin, aqui no Rio de Janeiro. Programa imperdível. Sua obra, volta e meia, tematiza a figura da mulher negra brasileira, e tem a potência de deslocá-la das representações clichês (no fundo, racistas e machistas) e tecer outras possibilidades de pensá-la e senti-la. 

Jatobá (Rosana PAULINO, 2019)

A população negra brasileira está marcada por um histórico de violência brutal, cuja genealogia (quase sempre perdida por efeito mesmo da escravização que, para transformar humanos em coisas, precisou destituí-los de língua, história e família) aponta para quatro momentos históricos dolorosos - a captura de negros na África por comerciantes de gente (brancos, árabes e negros), a escravização por séculos no Brasil, o abandono do poder público republicano que levou ou manteve os negros na ignorância e pobreza (às vezes extrema pobreza) e o desamparo e exposição das populações negras que habitam os bairros mais empobrecidos das grandes cidades de hoje à violência assassina do crime organizado, das milícias e das polícias, sob o conhecimento dos brancos do asfalto. Tendo presente e em conta esta história na memória, na pele, no olhar e nos atos dos outros brasileiros em relação a ela e aos negros em geral, Paulino não pôde produzir uma obra cujo objeto é a mulher negra sem tangenciar a violência que faz esse corpo e esse espírito doerem. A violência está lá.

Como seu objeto eleito é a mulher negra, e não a população negra em geral, seu foco ainda indica os efeitos da violência machista, que, quando escravocrata, utilizou - por exemplo - o corpo da mulher negra como fonte de extração de leite para alimentar o filho e a filha do senhor de terras (e escravos) branco. A série Amas de leite (PAULINO, 2005) mostra esta dor. O uso da negra, dessa vez pela família burguesa em tempos republicanos, se desdobrará nas figuras da babá e da empregada doméstica. A violência está aí também.

No entanto, apesar de nos trazer a violência à cena, a obra de Paulino não é apenas um ato de denúncia. Paulino não é uma jornalista. Nela também se trabalham fios, ora como gotas escorrendo, ora como raízes, ora como caminhos, mas sempre como linhas que alongam, fazem durar, ligam e suturam mostrando experiências transgeracionais: as linhas ligam as dores do passado ao presente, mas, ao mesmo tempo parecem tentar tratar as feridas. E mais: as linhas de Paulino têm também - e talvez aí esteja um dos fatores que imprima beleza a seu trabalho -, por seu trajeto trêmulo, por sua finura e fineza, por sua delicadeza e fragilidade, um quê de ternura, de carinho, de laço libidinal cuidadoso para não machucar, mas, ao contrário, para investir de dignidade o corpo das mulheres negras - e dos homens negros, seus filhos.

Assentamento n. 2 (Rosana PAULINO, 2012)

É este investimento erótico de carinho e dignidade que possibilidade costurar inúmeros patuás numa grande série com rostos de membros de sua família, Parede da memória (1994-2015). Eles se repetem inúmeras vezes acentuando seu valor para a artista e são reunidos numa costura colorida que a faz honrar de onde veio. Mas a potência de sua obra está em ocupar a linha tênue entre a violência e o amor: esses mesmos rostos são tantas vezes repetidos que se apagam no anonimato lembrando a destruição das histórias dos negros no Brasil - para além do fato de terem sido escravizados: eles se tornam só 'os negros' - ou mesmo ninguém. Negros brasileiros - como eu disse numa palestra ano passado no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - não têm brasão de família, em sua maior parte conhecem sua história até os avós e olhe lá, enquanto os brancos brasileiros centenários ou imigrantes (apaixonados por sua branquitude), cultuam sua própria genealogia, como se gostassem de exaltar uma história de si 'não negra', e quando há negros na família, a história contada é a história de um embranquecimento.

Nessa linha tênue entre a dor da violência e o carinho, seja através da colocação de casulos numa parede formando ajuntamentos e dispersões (Casulos, 2008), seja criando figuras híbridas de corpos de mulheres negras e árvores com seus ramos e raízes (Jatobás, 2019), Paulino parece demonstrar a força de quem sente dor e é frágil ao formar comunidades horizontais contra o desalento (BIRMAN, 2021) e ao reconhecer a importância das mulheres de onde saem os ramos e frutos do futuro, mas também alicerçadas por raízes ancestrais, de modo a persistirem firmes, em pé, mas também com jogo de cintura. As ancas que fazem curva, a dança, mostram a força, a vida como prazer encontrado, insistente, apesar e alimentada pelas dores, como se dá no samba: de certo modo isso já está nos seios de onde sai sangue e leite, mas que também são fortemente erotizados, apesar de sugados industrialmente.

As colegas do grupo "Estética e psicanálise" apresentaram tudo isso com uma delicadeza ímpar, semelhante àquela que é experimentada na obra de Paulino, acertada e sensivelmente. As agradeço por isso, afinal, minha abordagem da produção da artista está evidentemente contaminada pela abordagem carinhosa, doce, e no entanto nem um pouco alienada da angústia e do que há de traumático naquelas imagens e no que elas evocam. O que pretendo acrescentar, a seguir, no entanto, foram algumas reflexões minhas a partir do que li, vi e ouvi (de Paulino, delas e de outrem).

Sonia Andrade

Me lembrei de uma obra, uma instalação de videoarte, de outra artista contemporânea - Sonia Andrade (também mulher e brasileira, porém carioca, branca e falecida há dois anos - a precursora da videoarte no Brasil) -, apresentada pelo mesmo grupo de "Estética e psicanálise" numa jornada já antiga. Me refiro a um vídeo que se pôde ver em O lugar a que se volta é sempre outro (ANDRADE, 2019). Numa tela era possível contemplar o ponto de encontro de uma árvore com o solo terroso mais algumas gramíneas que convidam o público a estabelecer uma relação diferente com o tempo. No vídeo, a câmera fica imóvel e, a princípio, parece que nada acontece, ao menos aos olhos e comportamentos acelerados de nós, contemporâneos ao ritmo produtivo e consumista do neoliberalismo digital. Se nos ajustarmos ao tempo do vídeo, todavia, veremos o leve movimento das folhas ao vento, alternâncias nuançadas na iluminação, mínimas diferenças e uma espécie de sensação de alívio que não se sente nem na rapidez nem na imobilização. O difícil é o tempo lento, mas nele há um outro erotismo: o da delicadeza.

Não tenho certeza se as colegas do grupo mencionado fazem também essa associação, mas parece que me indicaram um rumo que, obviamente, já estava aberto parcialmente por minhas próprias pesquisas propriamente psicanalíticas. Este caminho foi primeiro traçado pelo psicanalista francês de origem argelina Pierre Fédida. Em seu excelente Dos benefícios da depressão: elogio à psicoterapia (2001), ele pensou o tratamento das depressões contemporâneas a partir da sustentação de uma temporalidade lenta, (que, insisto, difere substancialmente da rapidez neoliberal [CATTAPAN, 2021]), uma temporalidade que possibilita a emergência do desejo, tecido no que ele chama, a partir de Freud e Lacan, de uma autoerótica da fantasia em torno da falta de objeto adequado.

Dito de outro modo, o passar do tempo lento, repetidamente, é o tempo possível da instalação da condição erótica basal da fantasia e, por extensão, do desejo, condições de possibilidade também do sujeito e de uma ética que convém à psicanálise. O passar do tempo, a duração, incomoda o corpo, a pressão pulsional por descarga convoca a atenção tanto à experiência do próprio corpo quanto ao ato para vincularmo-nos a algo que satisfaça, que engendre gozo e/ou prazer: é aí que o autoerotismo se tece. Relembremos o esquema explicativo/mítico de Freud nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905): após a primeira mamada, que o excitou, o bebê registraria psiquicamente o evento, tornando-o representação psíquica; agora ele buscaria, numa segunda vez e daí por diante, o reencontro com o objeto ou, como se preferir, a experiência de satisfação através da mediação representacional/significante que confere à experiência uma outra qualidade, tornando a primeira vez irrepetível. De certo modo é disso que se trata quando Lacan escreve em "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise" (1953) que o significante é a morte da coisa. Algo está irremediavelmente perdido, porém continua buscado como um gozo não atingido - é isso o que lançará o bebê nesta insistência desejante diante do seio e, na ausência deste, do próprio corpo e, daí em diante, para outros objetos. Aliás, o título da exposição de Sonia Andrade a que me referi - O lugar que se volta é sempre um outro - sugere que nossas bússolas apontam para um mesmo norte.

Ama de leite (Rosana PAULINO, 2008)

Assim, o investimento erótico no corpo não é imediato, ele se dá como primeiro gesto psíquico de defesa contra a perda do objeto e a subsequente frustração; ele se dá através da associação a representações psíquicas que, em certo encadeamento, formam o que chamamos, em psicanálise, de fantasia (preferencialmente a fantasma, que é um aportuguesamento do termo francês fantasme, que significa, naquela língua, justamente fantasia; já fantasma traduz o francês fantôme). A fantasia é, assim, um encadeamento de significantes que permite a expressão do desejo, a localização do gozo e desafia o sujeito a ali se identificar (LACAN, 1966-67). A fantasia se tece e se elabora no autoerotismo, indica Fédida, no tempo lento, no qual aparentemente nada acontece, mas, ao contrário, se desenrola a realidade psíquica que busca, apoiada no corpo, direções para o desejo, metamorfoseando os destinos de uma existência - o que encontra ecos, por exemplo, na figura frágil, delicada, ensimesmada e auto-modelante do casulo, explorada esteticamente por Paulino. 

O tempo da depressão é o tempo imóvel e é pensado pelo autor de Os benefícios da depressão como um tempo deserotizado. Podemos acrescentar que a imobilidade está presente também no erotismo perverso, dito frio por Deleuze, adjetivo com o qual Lacan concorda aliás (DELEUZE, 1967; LACAN, 1968-69), erotismo que se congela defensivamente numa imagem e num procedimento repetitivo e desafetado para não ver o traumático que o assombra, o traumático da castração e da inconsistência do Outro (LACAN, 1956-57, 1963). 

E, no entanto, o tempo ultrarrápido também não convém à autoerótica da fantasia e à sensualidade que ela alimenta. O tempo ultrarrápido, o tempo do maníaco, tempo de deglutição, mas não de metabolização, digestão e elaboração não permite o ensimesmamento oriundo da perda (CATTAPAN, 2021). No que se refere ao uso erótico das imagens, esse tempo mais se parece com o tempo da pornografia que com o da sensualidade. A primeira não precisa do quinhão suplementar do sujeito, está tudo lá, sendo exibido incessantemente, basta olhar e agitar; a segunda é obra aberta, parafraseando Umberto Eco (1968), ou condicionada pela estrutura do véu, como propõe Lacan (1956-57), a qual exige do sujeito o complemento da cena com sua fantasia, seu tempo, seu erotismo.

Se "O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada" (LACAN, 1945) nos ajudou a destacar a neurose obsessiva e suas ruminações como marcada por um eterno tempo para compreender, sempre postergando o momento de concluir, que disporia o sujeito diante de sua escolha e de si mesmo, talvez se possa dizer que as temporalidades ultrarrápida da mania ou imóvel da depressão não só postergam o momento de concluir, como funcionam exclusivamente a partir do instante do olhar, sem mesmo se abrir o tempo para compreender, no qual se efetiva exatamente a autoerótica da fantasia. Se o psiconeurótico foge para a fantasia e não age, o deprimido e o maníaco não construíram ainda essa fantasia para onde poderiam fugir. A pressão e a pressa que conflagariam o momento de concluir no psiconeurótico, nesses casos impediriam o tempo de compreender.

Pierre Fédida

Nota: mencionei um erotismo da ternura e da sensualidade. Ferenczi busca diferenciá-los qualitativamente (FERENCZI, 1933), mas Freud, nos já citados Três ensaios e nos ensaios sobre a psicologia do amor (FREUD, 1910, 1912, 1918 [1917]), os difere a partir da inibição e da sublimação: para ele, a ternura remete a um erotismo sensual que foi inibido e talvez sublimado, o que permite, por exemplo, o amor terno dos filhos para com os pais tomar a dianteira do amor sensual incestuoso edipiano. Para nossa discussão aqui, não importa decidir que posição adotar - a de Ferenczi ou a de Freud - o que importa é que se a ternura evidencia menos agressividade (ou voracidade, como preferem alguns autores ingleses como Winnicott [1936]) que a sensualidade, ambas estariam baseadas na autoerótica da fantasia e, portanto, na pulsão sexual. Se na obra mencionada de Sonia Andrade o investimento objetal na terna sensualidade das folhas balançando suavemente sob a brisa advém de um momento de ensimesmamento após um primeiro desinteresse na cena, sem evocar nenhuma agressividade ou voracidade (pois em outros trabalhos da artista a agressividade é sim bastante explorada), a obra de Paulino toca de modo mais preciso num ponto que quero trabalhar a seguir: a agressividade, a voracidade e a sensualidade estão todas presentes, mas não deixam de ser expressas e experimentadas - paradoxalmente - com ternura e cuidado. O que é uma realização e tanto da artista, tornando possível o que talvez fosse impensado.

Voltemo-nos para a história da arte. Desde a segunda metade do século XIX, na Europa em primeiro lugar, mas depois aqui em terras brasileiras também, a arte moderna passou a ser agitada pelos movimentos de vanguarda cuja estética estava baseada, dentre outros artifícios, no efeito de choque/susto. Um efeito que pode perfeitamente supor sensualidade (como, por exemplo, nas obras de Oscar Wilde, Gustav Klimt e Claude Debussy), mas que põe sua ênfase na agressividade (como, por exemplo, nas obras de Igor Stravinski, Jackson Pollock ou Franz Kafka). A ternura, a delicadeza, senão ausentes, são bem raras na arte de vanguarda da primeira metade do século XX, ou ao menos não são elas que dão o tom diferencial daquela obra como sendo de arte de vanguarda. A arte do choque apostava na ruptura com a prática normalizadora burguesa e com o tradicionalismo da nobreza e da Igreja; se identificava com o ideal revolucionário moderno de transformação do destino que, através de um ato violento, romperia com uma continuidade de injustiça e opressão associadas à estética de embelezamento justificante do poder e também apontaria para uma solução descontínua de um novo início através da reconfiguração da cultura, com novas regras, nova estética, mais liberdade e emancipação.

O pano de fundo e também o alvo da intervenção vanguardista era, assim, uma cultura que queria se ver como justa, igualitária e bela, apesar da incômoda verdade de sua situação - o progressismo burguês novecentista assentado no imperialismo racista europeu é, no final das contas, um outro nome para aquela Belle Époque. O artista branco europeu - ao menos o de vanguarda - buscava desmascarar a mentira, a hipocrisia e a neurose que sustentavam e se sustentavam naquela cultura e tradição e, ao mesmo tempo, propor alguma saída utópica. Uma cultura neurótica construída sobre defesas hipócritas, que preferia não saber a verdade, precisava - pensavam os vanguardistas - que a verdade fosse violentamente esfregada em sua cara, causando um choque inesquecível, que exigiria daquela cultura se refundar no que não quis ver; estratégia que se pode perceber também, aliás, numa importante obra psicanalítica: Totem e tabu (FREUD, 1912-13). Freud, ali, tenta mostrar para seus contemporâneos que a cultura que eles tanto amam, é um derivado do parricídio, do banquete canibal, do incesto e do esforço para esquecer essa origem.

De certo modo, foi por isso mesmo que a psicanálise interessou a muitos vanguardistas - na Europa e no Brasil: ela trazia à tona o que nossa cultura não queria ver, o recalcado sexual e a pulsão de destruição que sustentam o narcisismo europeu, e o expunha publicamente em suas comunicações. Enfim, para os vanguardistas a revolução política ou estética incidiria como a imposição do traumático, o encontro com o real da cultura como uma verdade inescapável, o que deveria ocasionar a verdadeira mudança.

Ora, o que Paulino e Andrade nos oferecem é outra coisa. Elas não estão desrecalcando nada; elas não estão combatendo defesas desse tipo. A segunda parece oferecer uma outra temporalidade que permitiria um investimento, uma erotização do que passa ao largo do tempo rápido da vida cotidiana do capitalismo moderno; o prazer com o ínfimo, com o detalhe, com a sutileza - que requerem trabalho psíquico para serem desfrutados. Andrade está oferecendo novas formas de erotismo, uma gramática alternativa à vigente, está criando ligações onde não há. Nesse sentido sua obra se traça em paralelo à clínica da depressão e/ou da melancolia contemporâneas: seja o já citado Pierre Fédida e seu tempo estendido para a autoerótica da fantasia vicejar, seja a construção do objeto estético (quando não havia nenhum interesse no mundo 'chato') como possibilidade de o melancólico criar laços onde seu desejo pode se afirmar, o que foi muito bem desenvolvido por Marie-Claude Lambotte (2003). O que está em pauta é uma arte da sutileza, do detalhe, da lentidão e da fragilidade.

Rosana Paulino e Musa paradisíaca (Rosana PAULINO, 2018)

Paulino, por sua vez, também não parece estar tornando consciente algo inconsciente, como queriam fazer os vanguardistas e a psicanálise no tratamento das psiconeuroses clássicas, como as fobias, histerias e neuroses obsessivas que abarrotavam os consultórios de psicanálise no século passado. De certo modo, as verdades que ela nos mostra não foram tiradas de nossa memória. Elas foram anuladas de valor social, o que é coisa bem diferente, mas temos tido consciência deles o tempo todo. A destruição da história genealógica dos negros brasileiros, como a matança de seus corpos é algo que todos sabem que é praticado no Brasil. A redução da negra, por parte da burguesia branca, a babá, empregada ou mulher-objeto de volúpia, já foi recontada inúmeras vezes por muita gente. Mas o afeto destas histórias foi desconectado delas. Paulino tece uma linha e uma linhagem afetiva a essa realidade que todos vemos e sabemos. O sofrimento não se deve a ideias nunca ditas que dão sentido ao nosso mal-estar, o sofrimento se deve à retirada de investimento erótico que faz com que certas pessoas sejam somente coisas, dejetos

Além do mais, sua arte, diferente da dos vanguardistas de outrora, não incide sobre um grupo que se quer ver em paz, justiça e onde reina o amor narcísico por si mesmo e que, por isso, precisaria de uma chacoalhada forte para sair de si. Sua arte é sobre quem já foi saído demais de si! É de quem sofreu traumas - e como Freud mostra em Além do princípio do prazer (1920), o trauma põe o próprio sujeito em risco, horrorizado, assaltado por um excesso pulsional desligado, o que o fez inventar o conceito de pulsão de morte. Os traumas pelos quais os negros passaram e passam em suas existência já marcam um corte, uma ruptura acontecida e dolorosa. O choque já aconteceu. Neste caso parece que a clínica que Paulino evoca não é nem a das psiconeuroses, nem a das depressões, mas a das neuroses traumáticas: a da elaboração de um trauma através da tecitura de fantasias. Se o psiconeurótico sofre de fantasias inconscientes, tanto o deprimido quanto o neurótico traumático encontram na elaboração das fantasias a direção do tratamento.

Em sua "Introdução" ao livro de seus discípulos sobre as neuroses de guerra (1919), Freud dá subsídios para meu argumento:

"Chega-se até a pensar que essas últimas enfermidades [as neuroses de transferência ou psiconeuroses] só são fomentadas por indulgência, pelo excessivo conforto e pela inatividade, o que por sua vez resulta em um contraste interessante com as condições de vida sob as quais as neuroses de guerra [e as traumáticas de um modo geral] eclodem" (FREUD, 1919, p. 41)

O negro foi separado da África (um choque), o negro foi escravizado e destituído de sua história (outro choque), o negro foi posto de lado no pacto civilizatório republicano (mais um) e o negro é assassinado diariamente no Brasil, deixando outros negros pranteando este trauma e temendo ter o mesmo destino (mais outro). Os negros brasileiros não precisam de uma chacoalhada, eles precisam tecer uma história, habitar um lugar, serem reconhecidos (por outros e por si mesmos) como sujeitos e não serem assassinados. A violência é combatida por Paulino com sutura, com linhas dolorosas e eróticas que enlaçam pessoas - inclusive os olhos e corações brancos que se sensibilizam com sua arte - e estes são necessários para que se acabe, no longo presente daqui até o futuro, com este corte que demarca uns como brancos e outros como negros em proveito dos primeiros, é claro, tendo em vista a história de horrores que foi construída para que essa dicotomia se mantivesse e mantivesse o branco como o iluminado.

Casulos (Rosana PAULINO, 2008)

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