Grandes esperanças nos século XIX e XXI

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Após alguns dias sem escrever, e após o encerramento das Olimpíadas de verão, me veio a vontade de escrever alguma coisa sobre o assunto - não sobre as competições esportivas acontecidas em Paris, mas sobre o discurso que costumeiramente se faz a respeito dos atletas, seja nas transmissões televisas, radiofônicas, nas reuniões de família ou nas conversas de bar. 

Pode-se ler o texto que se segue como uma apresentação das fantasias compartilhadas socialmente como aquilo que Freud diz delas em "Escritores criativos e devaneio" (FREUD, 1907): tentativas de realização de desejos, pensadas no futuro, através de modelos de prazeres passados, de lidar com as frustrações que a realidade impõe no presente. Como se verá, me refiro, neste texto, às frustrações que a realidade do capitalismo contemporâneo impõe.

Já há tempos que o atleta tem servido de figura de referência, de modelo de conduta na cultura. O atleta de alto rendimento - e principalmente o vitorioso, o medalhista - figura como ícone ou como exemplo de como prosperar pelo menos em prestígio social e em condição econômica. Para as classes baixas transmite-se e veicula-se o sonho de que através de uma vida de esportista o menino pobre poderá enriquecer e retirar não só a si mesmo, mas também a família, de uma condição de vida precária, quando sabemos que isso é muito raro de acontecer, mesmo entre os jogadores de futebol. Falarei disso mais à frente.

Mas a idealização do atleta e da prática esportiva não recai única e exclusivamente sobre o destino que uma vida de esportista pode dar economicamente a um menino ou menina pobres. Há também a veiculação da ideia de que o esporte educa e afasta o indivíduo do mau caminho - seja este a criminalidade, a imoralidade, o ócio ou a doença. É a respeito disso tudo e também a respeito da gratificação financeira e de idolatria social que se costuma repetir o slogan 'O esporte salva vidas'. E assim fica claro que a idealização do esportista é também a idealização de certa ética. Pretendo mostrar que se trata de uma idealização da ética da competição consigo e com o outro, a qual é marca do individualismo neoliberal em que estamos inseridos; acredita-se que o esporte transmite os valores morais e conservadores da 'competição dentro das quatro linhas' em oposição ao 'jogo sujo' de não querer jogar o jogo competitivo por medalhas, no esporte e na vida em geral e se vê nisso um importante papel social no esporte.

O atleta como modelo, no entanto, não diz respeito única e exclusivamente ao campo dos esportes. Se é verdade que há a aposta no esporte como a salvação ou o salvamento de muitas vidas, há também a importação da figura do atleta, de seu modo de vida, de seu vocabulário e da lógica de sua prática por parte de outras profissões e atividades. Assim, o que antes era chamado, nas academias de ginástica e/ou musculação, de 'fazer exercício', passou a ser chamado de treino. Talvez isso seja oriundo de uma má tradução do termo inglês training, mas resta a pergunta sobre porque resolvemos ficar com este termo no lugar do já consagrado 'fazer exercício' ou simplesmente 'malhar'. Ao consultar o dicionário Aurélio, encontro as seguintes significações para o verbete 'treinar':

"2. Tornar apto, destro, capaz, para determinada tarefa ou atividade; habilitar, adestrar: Treinar atletas; treinar cães para a caça. Int. e p. 3. Exercitar-se para jogos desportivos, ou para outros fins." (p. 1415)

Sun Tzu (anônimo, Yurihama, Tottori, Japão)

 Ora, vê-se que treinar, quando utilizado a respeito de seres humanos, é um verbo costumeiramente utilizado para se referir à preparação para uma atividade que requer aprimoramento de habilidades, sendo a competição esportiva a que serve de primeiro exemplo; mas para qual atividade que requer grande aprimoramento, para que competição os frequentadores de academias de musculação estão se preparando exatamente? Já volto a esse ponto.

Não há meio em que se vê com mais evidência a importação do imaginário do atleta que o corporativo. O uso de termos como time, "vestir a camisa" e coach (o treinador) adornam o ambiente corporativo, tornando bem mais tolerável - senão desejável - a ideia de que o concorrente é um adversário a ser derrotado, de que a competição deve ser constante - mesmo entre pares -, porque alude ao lúdico e ao prazeroso da atividade esportiva, mas talvez não só a isso. Ele também afasta-nos da referência mais comum aos yuppies danos 80, no mesmo meio corporativo: a da guerra - o próprio livro chinês milenar A arte da guerra (SUN TZU, séc. IV a.C.) teve seu tempo de bestseller referência no meio corporativo. Hoje a referência é bem mais a do apaixonado pela competição esportiva, como, por exemplo, a figura do técnico de vôlei Bernardinho.

Talvez algum sabichão em psicanálise me interpelasse aqui ao dizer: "Vejo um progresso! O modelo da guerra é violento, é terrível. O esporte é uma sublimação da guerra!". Eu teria de responder: Concordo que a prática esportiva é um modo de sublimar a agressividade presente nas disputas entre humanos, mas não estamos falando nem de guerra nem de esportes - estamos falando do campo do trabalho, não é? E nesse sentido, tratar dos problemas do trabalho como um campo de guerra, como se fazia nos anos 80, enfatizava um ponto que o uso das metáforas esportivas parece cinicamente esconder. O derrotado nas concorrências cotidianas por emprego vive também uma espécie de morte social, como se vê de modo aterrador nas figuras dos excluídos máximos: os moradores de rua sem trabalho, que vivem de assistência alheia. Tratar do problema da dura concorrência capitalista a partir de termos esportivos oportuniza alguns efeitos perversos - pois o assunto aqui é mesmo o da perversão, o do "eu sei, mas mesmo assim" (O. MANONNI, 1969), no caso, 'eu sei que se trata de concorrência capitalista, mas mesmo assim tratemos como uma competição esportiva':

Retrato de John Locke (Sir Godfrey KNELLER, 1697)

a) torna possível que alguém mais bem colocado na hierarquia social econômica espere que os outros levem as coisas 'na esportiva', que 'é do jogo', querendo, com isso, dizer que 'a vida é um jogo' e que ele está lá no topo por mérito próprio, porque trabalhou duro para isso, tal como um atleta vitorioso, cuja precedência sobre os outros se torna inquestionável. Eu concordo que a vida é um jogo, mas de qual jogo estamos falando? Há diversos jogos e diversas maneiras de jogar. Este personagem não está dizendo com todas as letras, mas creio que está supondo que o jogo da vida é o jogo capitalista e que o esporte é uma boa referência para o modo de vida capitalista, pois a torna menos associada à ideia guerra ou de luta (de classes [MARX & ENGELS, 1848]) e mais à de acordo liberal (LOCKE, 1689), como ocorre quando alguém 'sabe perder' numa competição esportiva.

b) torna possível estetizar e erotizar experiências que sem a tela do 'esportivo' seriam muito difíceis de serem aceitas por muita gente. A ideia de formação permanente, aprimoramento contínuo, é difícil de ser sustentada por qualquer um, mas quando pensada à luz do treino do atleta que almeja uma melhor performance, que almeja superar seus limites, parece bem mais agradável - e é nesse sentido que acho que os praticantes de musculação gostam de se ver treinando. Acreditar que se está lutando contra as próprias limitações faz parecer que o obstáculo e o concorrente são internos, não externos, o que faz o sujeito não focar sua atenção no fato de que ele só se lança neste esforço contínuo porque tem medo de ser demitido ou perder clientes e, por consequência, perder sua condição econômica atual. Além do mais, o sujeito passa a almejar um estado de performance ainda não atingido que parece se aproximar do ótimo; ele pode imaginar uma negação de sua castração, de sua ferida narcísica (FREUD, 1914) - do fato de que não somos o objeto adequado de gozo de ninguém, nem de nós mesmos -, através de uma futura superação autoengendrada, ao invés de reconhecer esta limitação narcísica como condição de sociabilidade, como parecia ser o funcionamento da sociedade moderna da primeira metade do século XX, ao menos tal como refletida no mito freudiano de Totem e tabu (id., 1913).

Há um ônus para esta nova versão das relações sociais e de trabalho: o sujeito se crê como o único responsável por sua condição e por sua vida, isentando o Outro (amante, família, grupo social, Estado e, às vezes, até Deus) de sua cota na produção desta subjetividade. A captura neste jogo ideológico pode levar à depressão, pois quem não consegue 'vencer na vida' não encontrará razões para isso senão em seu mau desempenho comparado ao dos concorrentes, se verá, em seguida, como incapaz, como o pior (CATTAPAN, 2021). E não, por exemplo, parafraseando um famoso texto de Sandor Ferenczi, como uma criança mal acolhida (FERENCZI, 1929).

Alisson, um dentre outros jogadores de futebol (atualmente no São Paulo Futebol Clube) que dizem publicamente terem sofrido de depressão e procurado tratamento

c) continuando o que acabei de dizer, tratar a competição capitalista como esportiva torna possível alimentar uma concepção de cuidado sobre si como absolutamente desvinculada de uma entidade reguladora, gerenciadora de todo o campo social. O atleta é um indivíduo que compete, tanto consigo mesmo, quanto com seus pares, quanto - junto de seus pares - com outros times. As relações profissionais que tece com outros humanos que não estão pautadas na competição são as com os prestadores de serviço: técnicos, preparadores físicos, nutricionistas, médicos, fisioterapeutas, psicólogos, assessores de imprensa, advogados, publicitários etc. Trata-se de uma série de especialistas que lhe oferecem serviços voltados para que ele viva o aprimoramento de sua performance. De modo que, ao menos nas relações de trabalho, o único erotismo que comparece parece ser o narcísico, sem investimento no laço com os outros. Nem os especialistas nem os concorrentes retiram o atleta da situação de indivíduo solitário voltado para o aprimoramento. Aqui fica claro que estamos falando de um cenário neoliberal, no qual o sonho do Estado mínimo supostamente atenderia aos indivíduos que não quereriam ser cerceados nem limitados em sua liberdade por ninguém, eles no máximo buscariam auxiliares que seriam agenciados por escolha e não compulsoriamente. Não deveria haver uma instância asseguradora de laços eróticos com os outros. Disso resulta desamparo, insegurança e angústia real à flor da pele - que, no vocabulário da exploração do universo esportista por outros campos pode sofrer o que Nietzsche chamou de transvaloração dos valores e ser dito como 'gosto por adrenalina' (NIETZSCHE, 1887).

d) tal qual na perversão, autoriza a criação de certas relações fetichistas. Freud ensina que o fetiche permite ao perverso, ao mesmo tempo, negar a castração do Outro e admiti-la, ao deslocar o olhar do que falta para a exigência da presença de um objeto que ele pode tomar como alternativa ao falo, mesmo sabendo que não se trata disso (FREUD, 1927). Nas guerras e nos esportes, os troféus parecem servir bem a esse fim: em certa medida, os atletas tomam os troféus e medalhas que almejam e às vezes conquistam como uma espécie de materialidade de um substituto do falo - se os almejam é porque não o têm, mas, ao mesmo tempo, se acreditam que são capazes de conquistá-los, é porque já o teriam. Além do quê, por mais que muitos esportes modernos busquem eliminar o acaso das competições, não é raro escutarmos de atletas frases como "eu estava em um dia bom" ou "eu estava em um dia ruim", tanto faz, revelando, assim, que o troféu materializa uma vitória, mas não uma certeza fálica, apesar de, ao mesmo tempo, dar a seu conquistador a estima e ares de um ser fálico. Se já no meio esportivo o troféu e a medalha são fetiches, vejamos o que acontece na aplicação da ideia de prêmios no cenário mais geral do trabalho capitalista, como, por exemplo, na foto de funcionário do mês muito comum em lanchonetes mundo afora: ela serve para o sujeito fingir acreditar que aquilo é uma garantia de que não será mandado embora - e ele sabe, ao mesmo tempo, que não é assim que a banda toca. Portanto, não é possível pensar na utilidade destes troféus sem considerar a precarização do trabalho na atualidade, na qual as garantias de estabilidade empregatícia foram quase todas destruídas, de modo que o sujeito fica refém de sinais e insígnias de sucesso, mas, de fato, permanece angustiado sabendo que a competição não para jamais: as provas 'esportivas' se seguem umas às outras - o funcionário deste mês pode não ser o do mês que vem, pode nem ser mais funcionário (ou como preferem na novilíngua do trabalho neoliberal, pode não ser mais 'colaborador').

Voltemos ao uso do atleta como suporte do sonho de ascensão social de meninos pobres a que fiz referência no início do texto. Talvez seja possível compreender melhor a astúcia deste modelo, o motivo porque ele é repetido incessantemente hoje em dia, ao o compararmos à fantasia novecentista de ascensão social como transmitida num belo e conhecido romance do mais popular escritor do centro do mundo daqueles tempos, o Império Britânico. O escritor é Charles Dickens, aquele que descreveu como nenhum outro autor de ficção a injustiça social que oprimia a Inglaterra vitoriana e o romance a que me refiro é Grandes esperanças (DICKENS, 1861). 

Cartaz de uma das versões cinematográficas de Grandes esperanças (Alfonso CUARÓN, 1998)

As grandes esperanças que surgem no título são as ocasionadas por efeito daquilo que era exatamente um dos poucos sonhos de ascensão sócio-econômica factível na dura realidade do capitalismo liberal anterior a qualquer lei ou garantia trabalhista, às conquistas das lutas sindicais ou às políticas de bem-estar social na mesma Inglaterra do século XX pós Segunda Guerra Mundial: o apadrinhamento caridoso de um menino pobre por parte de um benfeitor nobre ou burguês. No caso do livro de Dickens, esse sonho é apresentado de modo interessante, pois aqui o menino Pip recebe, junto de seu cunhado Joe (um pobre ferreiro que cria o menino, órfão, seu aprendiz, numa cidade pequena à beira de um charco), a visita de um misterioso advogado, senhor Jaggers, que lhe diz:

"'Fui instruído a comunicar-lhe (...) que ele vai herdar uma bela propriedade. Ademais, o atual dono da propriedade em questão deseja que ele seja imediatamente retirado de suas atuais circunstâncias e deste lugar, e passe a ser criado como um cavalheiro - em suma, como um jovem com grandes esperanças.

(...) "...senhor Pip, o nome de seu benfeitor generoso permanecerá em segredo absoluto, até que a pessoa em questão resolva revelá-lo" (id., ibid., p. 206-207) 

Paira um mistério sobre quem seria este benfeitor e o romance se desenvolverá, em parte, em torno disso. Aqui quero sublinhar que esta reviravolta faz com que um menino marginalizado na sociedade, cujas relações com outrem que não sua família e gente próxima (que não o tratava bem, aliás), eram bem poucas se torne imediatamente bajulado, bem tratado, e, mais tarde, vá para Londres ser educado como um cavalheiro. Não é preciso muita erudição para notar que esta narrativa nos faz lembrar de uma espécie de conto de fadas como o de Cinderela, porém numa versão masculina, na qual não é tanto o homem amante quem salva a protagonista do desamparo, mas um misterioso benfeitor/ substituto de pai. Tal como da mulher, na tradição machista, não se esperava uma luta ativa por ascensão social, restando apenas o sonho do amor do príncipe encantado, na Inglaterra novecentista, outra categoria social oprimida - a categoria social oprimida por excelência, como descobriu o próprio século XIX com Marx -, o proletariado também não deveria lutar por condições de ascensão social (ao menos no sonho moral burguês), mas sim receber dádivas dos ricos passivamente.

Eça de Queiroz, 1882

Ora, Pip desejava ser um cavalheiro não só porque era maltratado pela irmã e por alguns amigos dela, nem somente porque era pobre, mas também porque tinha se apaixonado por uma menina rica que o desdenhava indicando que ele não tinha modos, não tinha educação, não tinha capital. Vale ainda acrescentar que a conheceu já numa situação de iminência de 'grandes esperanças': uma senhora idosa rica e excêntrica mandou chamá-lo para vê-lo brincar em sua casa; a família consentiu que ele fosse na expectativa de que a senhora pagasse de algum modo pelos 'serviços' do menino. Isso não aconteceu e, pior, o menino se viu lá sendo humilhado, servindo de alvo do sadismo tanto da idosa quanto da menina bonita que vivia com ela e que, apesar de tudo, capturou o coração do aprendiz de ferreiro. Houve forças contrárias a Pip aceitar a 'herança' do benfeitor desconhecido e seguir sua formação de cavalheiro: o amor por Joe, a quem ele ao mesmo tempo desprezava os toscos hábitos de homem pobre, e o de Biddy, menina que o amava, mas para quem ele não tinha olhos. Mesmo assim sofreu ao ir embora em busca da realização do sonho de todos os pobres que lhe garantiria - quem sabe - realizar seu sonho de conquistar a menina rica...ou seria, na verdade, seu sonho um sonho masoquista de continuar sendo humilhado por ela? Enfim, estas conjecturas não devem prosseguir neste texto, este não é o seu objetivo.

Apenas fiz um recorte de passagens da primeira das três partes que compõem o romance de Dickens pois acredito que sejam suficientemente ilustrativas do que quero demonstrar para seguir meu argumento. No decorrer do romance de Dickens, veremos o aspecto sinistro por trás do que parece um conto de fadas, mas este não é meu objetivo aqui, de modo que pouparei meus leitores de spoilers. Se Dickens apresentou o sonho da ascensão desta maneira, foi para criticá-lo no livro, mas a primeira parte tem como função fazer o leitor se engajar nesta fantasia - porque ela era almejada pelo leitor da época. 

Enfim, voltemos ao meu argumento. Como se viu em Dickens, na ideologia liberal do século XIX um modo de o pobre sonhar ser rico sem trazer perigos para a estrutura social era o da ascensão à riqueza através da dádiva recebida. Mas como conjugar esse sonho - que apazigua o campo social, irritado pela tensão de classes - sem considerar qualquer atividade como possível? Ora, o capitalismo supõe atividade. Do homem de negócios, do homem de ação, ao simples trabalhador sóbrio weberiano (WEBER, 1908), a cultura capitalista supõe atividade, não passividade, que é compreendida em sua ética como preguiça, indolência, pecado. Toda a atividade do proletariado resultava no trabalho explorado assalariado e exaustivo, que mantinha-o, como ele sabia muito bem, na pobreza, sem chances de enriquecer (o que o levou, a revelia da vontade burguesa, a se rebelar diversas vezes naquele século). Era preciso que o capitalismo inventasse um jeito de equacionar a atividade do proletariado e o sonho de ascensão social de algum modo diferente daquele para diminuir a tensão social.

Max Weber, 1918

Quanto aos esportes - atividades lúdicas que cultuam a própria atividade como experiência saudável - foi justamente naquele século que eles se tornaram cada vez mais praticados pelas elites inglesas e por quem as admirava em outros cantos do mundo, como se pode ler nos valores cultivados pelo personagem João da Ega de Os maias (EÇA DE QUEIROZ, 1888) ou no interesse da Princesa Isabel e do Conde d'Eu pelo esporte praticado no terreno ao lado de seu palácio no Rio de Janeiro, pela burguesia ascendente: o futebol; e o terreno não era outro senão aquele onde será erguido o Estádio das Laranjeiras do Fluminense Football Club (GOMES, 2013). De modo que a atividade exibida publicamente do pobre era aquela do trabalho exaustivo e a do rico era a do esporte lúdico e saudável, num contexto capitalista em que o absoluto ócio era mal visto por toda parte: é preciso ralar!

Nota: no Brasil, o culto pela atividade chegou mais tarde, somente ao final do século XIX, certamente por influência e pressão britânica, posto que o crescimento de uma burguesia capitalista moderna era incipiente num país em que a elite permaneceu escravocrata até os estertores daquele século. Não havia propriamente proletariado: o trabalhador ativo era o escravo. Atividade era coisa de escravo, de modo que o culto ao ócio e à preguiça da elite - o sonho de não fazer nada (de resto também presente no protagonista de Os maias, o que mostra algumas proximidades ainda no fim daquele século, entre Brasil e Portugal) durou mais por aqui que alhures. Mesmo assim, ao final do século, já na República sem escravos, nascem diversas agremiações esportivas nas capitais do país.

O fim do século XX e início do século XXI tornou possível uma condensação de sonhos, fazendo parecer que se efetuou um desaparecimento das diferenças entre as classes, tão evidentes e demarcadas no século XIX até mesmo no que diz respeito a gostos e costumes (cavalheiros esportistas de um lado e proletariado tosco do outro): agora, no neoliberalismo e com a tomada do atleta como modelo ético de conduta para todos, pobres e ricos devem sempre estar trabalhando arduamente para superarem a si mesmos e aos concorrentes. São todos indivíduos treinando continuamente para ganhar a medalha da semana. O esporte não é mais coisa de nobre ou burguês amador; o trabalhador não é mais proletário (ou ao menos não se vê assim), mas sim empresário de si, colaborador ou concorrente com os outros, mas não mais empregado do burguês. Ele é como um atleta, um indivíduo competindo para superar todos os limites que se lhe impõem em sua trajetória rumo ao sucesso e à vitória. Ser um atleta de ponta ou ao menos adotar a disciplina, determinação, foco e resiliência do grande atleta na sua vida são o grande sonho, as grandes esperanças de mobilidade social da atualidade. 

Charles Dickens

No século XIX, a dádiva do bom burguês. No século XXI, o esforço do indivíduo em se superar. O que houve no meio do caminho? O sonho comunista em ato, a Revolução Russa. Transformar o proletariado em indivíduos empresários de si movidos pela ética do atleta foi a invenção neoliberal de uma saída ativa da pobreza, alternativa ao comunismo ou ao menos ao Estado de bem-estar social como criações de condições coletivas para que se possa sair ativamente da pobreza.

Atenção! Este texto nada tem contra a ética do atleta quando aplicada ao atleta no exercício de sua atividade. Minha admiração pelos atletas em seus esportes é enorme - assisti apaixonadamente às provas olímpicas. Minha crítica recai somente sobre a utilização da especificidade da prática esportiva como modelo social generalizado. De certo modo minha crítica é um alerta ao uso perverso que tem sido feito dos atletas e das práticas esportivas para que aceitemos com entusiasmo condições de trabalho que, de outro modo, seriam revoltantes. Anseio já pelas Olimpíadas de 2028 em Los Angeles, mas sem alimentar ilusões de que atletas são modelos para todos.

Comentários

  1. Gostei do que li! Quanto a transmissão dos jogos olímpicos confesso que assisti pouquissimos pois a maioria não me interessa, gosto de ver atletica ligeira e ginástica, no entanto, no pouco que assistir gostei de poder compartilhar vitoria e derrota

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