Diagnóstico em/ou psicanálise

Composição com vermelho, azul, amarelo e preto (Piet MONDRIAN, 1921)

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De tempos em tempos os alunos de graduação em psicologia demonstram um grande interesse na prática diagnóstica e me pedem para falar sobre o diagnóstico em psicanálise. Decidi falar disso hoje, então, aproveitando a data comemorativa de dois breves textos de Freud sobre o assunto, que comemoram 100 anos em 2024: "Neurose e psicose" (FREUD, 1924a) e "A perda da realidade na neurose e na psicose" (id., 1924b). Porém pretendo, ao longo do texto, comentar criticamente este anseio por diagnóstico que vemos não só entre estudantes de psicologia, mas também entre pacientes, escolas, empresas e outras instituições. 

Antes de tudo, é preciso dizer que os psicanalistas diagnosticam os sofrimentos psíquicos de modo muito diferente dos psiquiatras e dos psicólogos, embora os quadros nosológicos utilizados pela psicanálise, em parte, sejam derivados historicamente de quadros ou termos psiquiátricos (MIJOLLA, 2005) e, como pretendo comentar ao final, mesmo que o modo e o sentido do diagnóstico em psicanálise seja outro em relação ao que é hegemônico, não é seguro que o primeiro não seja utilizado para finalidades que não deveriam ser as suas. Todo psicanalista corre o risco de sair de sua posição, a de objeto para o sujeito em análise (LACAN,1969-70) e acabar bancando a figura do mestre, do senhor, de quem domina o paciente através de um saber que passa a supor em si, desmontando, com isso, a própria possibilidade de psicanálise. Para proteger a análise disso, um analista deve fazer análise (FREUD, 1912). Porém, antes de complicar a discussão, é importante demarcar as diferenças basais entre o campo da psicanálise e o psiquiátrico: 

1) a psicanálise foi criada por um médico neurologista e sua prática inicial estava bastante próxima, ainda, da prática médica do diagnóstico, tratamento e cura de doenças, mas, com o tempo, Freud foi estabelecendo um campo propriamente psicanalítico, cada vez mais distinto e distante do exercício e do olhar médicos. A própria publicação de A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900) tem essa intenção: demonstrar que os campos psicoterápico e psicopatológico foram apenas o ponto de partida da psicanálise como ciência, a qual discute o funcionamento do aparelho psíquico mais do que está exclusivamente destinada a curar doentes. E, como se sabe, em seus últimos textos, Freud já havia abandonado a ideia de cura, para se ocupar mais das transformações do sujeito (id, 1937).

2) a própria psiquiatria e as psicologias se desenvolveram e tomaram rumos não necessariamente concordantes, intercambiantes, nem mesmo simpáticos à psicanálise. Se no passado houve uma psiquiatria dinâmica, bastante influenciada pela psicanálise, hoje ela é predominantemente organicista, dedicada a uma abordagem reducionista do psíquico como sinônimo de certos índices e estatísticas de dados de processos neuroquímicos e neurofísicos; que servem de base para a confecção de drogas criadas para alterar tais índices e apagar sintomas. Há uma psicologia aliada desta psiquiatria - a psicologia cognitivo-comportamental; as duas funcionam a partir de certos padrões inferidos estatisticamente de normalidade e suas intervenções visam tornar certo organismo normalizado. Implicam uma distinção absoluta do campo psicanalítico, ocupado com o sujeito e com o sentido. Leiamos a seguinte passagem de um artigo de Donald Winnicott, basilar e iluminadora, dedicada a fazer uma diferença entre pediatras do corpo (organicistas) e pediatras da psiquê (ele mesmo):

Donald Winnicott 

"Enquanto pensava sobre a relação entre a pediatria e a psiquiatria infantil [dinâmica], ocorreu-me que esse relacionamento envolve não apenas a diferença entre os campos, mas também a diferença de atitude emocional entre os que adotam uma ou outra das duas abordagens do caso. O pediatra percebe no sintoma um desafio ao seu arsenal terapêutico. (...) Se a criança sente dor, quanto mais cedo a mesma dor for diagnosticada e removida a sua causa, melhor. Por contraste, o psiquiatra [dinâmico] infantil enxerga no sintoma uma organização de extrema complexidade, produzida e mantida graças a seu valor.
(...) 
Estou convencido de que a intolerância ao sintoma surge simplesmente porque o pediatra do corpo nada sabe sobre essa ciência chamada Psicologia Dinâmica (ou Psicanálise, como a chamo eu), sendo esta ciência, e somente esta, que pode fazer com que os sintomas adquiram um sentido." (WINNICOTT, 1953, ps. 169-170)

O sintoma, portanto não só tem sentido, como tem valor para o sujeito. Extirpá-lo terá consequências terapêuticas sempre? Será? Pode ser que tenha efeito de piora no quadro geral do paciente. O que a psicanálise descobriu é que um sintoma não é o resultado de uma máquina com defeitos, uma anomalia a ser corrigida, como parece ser tomado pelas abordagens hegemônicas, mas sim que ele indica o estabelecimento de uma normatividade psíquica, tal como pensou o epistemólogo francês Georges Canguilhem (1946). O sintoma é peça importante no modo como determinado sujeito organiza sua vida psíquica, e, em destaque, seu erotismo (FREUD, 1916).

3) Esta distinção na abordagem do sintoma é crucial para a prática diagnóstica. Enquanto na medicina e em muitas psicologias o sintoma é sinal de anomalia ou desvio da normalidade (FOUCAULT, 1962), para o psicanalista o sintoma é sinal de que há algo do campo do sentido, há algo sendo dito, expresso ali - e esse dito não é consciente, mas inconsciente. O sintoma é, portanto, para o psicanalista, um modo de ele e o sujeito em análise terem notícias do material inconsciente que insiste em se manifestar; dito de outro modo, o sintoma é uma formação do inconsciente como também são os sonhos, atos falhos, chistes e atuações (LACAN, 1957-58); elas oportunizam a escuta do sujeito do inconsciente. Logo, o sintoma não deve ser silenciado, nem deve ser o suficiente para se fazer um diagnóstico. Enquanto o diagnóstico psiquiátrico é construído a partir da fenomenologia dos sintomas e sinais, o diagnóstico em psicanálise toma o sintoma como um dado insuficiente. O diagnóstico psicanalítico se produz bem mais em torno do tipo de conflito psíquico e das defesas psíquicas mobilizadas diante dele; sendo o sintoma um dentre diversos outros fenômenos de linguagem (incluindo aí os psicossomáticos) recolhidos pelo psicanalista para esboçar uma aposta diagnóstica. Por isso mesmo, o diagnóstico em psicanálise não se faz com a rapidez do psiquiátrico, mas após muita escuta, ao longo de um tratamento, ou ao menos, de algumas entrevistas preliminares - mas, tendo em vista que o inconsciente é, por definição, difícil de se apreender, o psicanalista é prudente e hesitante ao diagnosticar.

Vê-se que o diagnóstico psiquiátrico atende à vontade de tipificar diferenças em relação a uma normalidade. Ora, essa normalidade não é, quando se passa das doenças somáticas para as psíquicas, experimentada apenas como um desvio em relação à saúde, ela ganha contornos morais e políticos (FOUCAULT, 1974-75). Dizer que alguém não é normal ou que é um doente mental, ao longo dos séculos XIX-XX-XXI, traz em sua esteira uma desvalorização do indivíduo em relação ao ideal de norma e o torna presa fácil para toda uma tecnologia de retificação que o tornará aceito enquanto útil e dócil (id, 1975). O normal é uma figura moral-ideal, não uma figura apreensível. Aliás, é exatamente porque ninguém é jamais inteiramente normal que a psiquiatria, nas últimas décadas, abandonou sua abordagem patologista e hoje gere qualquer desvio da normalidade, mesmo os quase normais, através de sua tecnologia de diagnósticos e terapias comportamentais e psicofarmacológicas.

Cena de Um estranho no ninho (Miloš FORMAN, 1975): Jack Nicholson na hora da medicação, no hospital psiquiátrico 

É muito comum, hoje em dia, o uso de drogas legais ou ilegais, como modo de gestão da vontade de ser normal. Não há dúvidas de que toda uma indústria lucra com esse funcionamento de psiquiatrização das condutas, mas o que o usuário do serviço psiquiátrico ganharia? 

A última pergunta se coloca porque há, como se vê na atitude de alguns alunos de psicologia, de profissionais da educação ou mesmo de empregados de muitas firmas, uma demanda crescente po ter seu próprio diagnóstico ou ter o de um terceiro. Aprendemos a nos beneficiar com os diagnósticos, todavia não necessariamente para fins terapêuticos. Há quem utilize o diagnóstico como meio de arruinar a imagem de um terceiro, há quem o use como meio de se proteger da opressão institucional, há quem o utilize como álibi para suas dificuldades na vida, há quem o utilize como forma de construir uma identidade, uma segurança de si a partir de um quadro previsto e racionalizável.

 O último tipo mostra um novo momento dialético da história da normalização: o diagnóstico pode servir perfeitamente para um indivíduo encontrar um grupo de doentes com o qual se identifique e, ali, se ver como normal (pelo menos dentro daquele grupo). Me parece que é isso que grupos formados a partir de diagnósticos, como o A.A., bem como o alívio que muita gente, desalentada, desenraizada, sem referências identitárias consistentes, sente ao receber um 'crachá' de TOC ou TDAH, demonstra. Eis o mais recente estágio de nossa cultura normalizadora, da qual a psiquiatria organicista e a TCC são os braços armados.

Capa do álbum Flicts de Sérgio Ricardo (1980), ilustrada pelo saudoso Ziraldo

A psicanálise caminha por outras vias. Apesar de diagnosticar, o que interessa na experiência analítica é menos que tipo de sofrimento psíquico emerge ali do que a emergência do sujeito singular, de seu desejo e de sua irredutibilidade ao Outro, inclusive ao diagnóstico. Em psicanálise, o diagnóstico é apenas um mapeamento útil ao psicanalista e inútil senão nocivo ao paciente. Este mapeamento indicará ao psicanalista se uma psicanálise pode se exercer entre eles e qual o modo de o psicanalista operar na relação transferencial para que o paciente possa fazer sua análise, mais nada. 

O que escrevi até agora pode levar o leitor à falsa impressão de que há um modo estabelecido e indiscutível de diagnóstico em psicanálise, resultante de um consenso entre psicanalistas também a respeito das categorias diagnósticas. Mas a história da psicanálise registra, na verdade, uma profusão de discussões, guerras intestinas e querelas psicodiagnósticas. Se isso pode parecer um problema para quem é de fora da psicanálise (e para muitos de dentro), eu vejo de outra maneira - as diferenças sobre modos e categorias diagnósticas entre psicanalistas evidenciam como o diagnóstico não é mesmo o mais importante, em primeiro lugar, pois mesmo não havendo consenso diagnóstico, há psicanálise. Em segundo lugar, pode-se dizer que tais categorias diferentes são oriundas de experiências clínicas diferentes, evidenciando que os psicanalistas escutam as subjetividades de seus tempos (LACAN, 1953), não impondo uma grade a-histórica e a-geográfica, apesar das contínuas tentações de fazê-lo, que não são tentações diferentes daquela já mencionada: a da mestria, a do domínio. Em terceiro lugar, talvez seja possível dizer que todos os diagnósticos em psicanálise são diagnósticos estruturais, mas há divergências entre os psicanalistas sobre o que quer dizer 'estrutural'.

O próprio Freud se empenhou em realizar diagnósticos a partir de sua escuta psicanalítica e, talvez por isso, ao longo de seu percurso de criação e desenvolvimento da psicanálise, mostrou diversas alterações no uso das categorias diagnósticas, considerando as mudanças teóricas como tendo sido propiciadas por sua clínica e sua reflexão a partir dela. O texto "Neurose e psicose" ocupa um lugar importante em seu percurso na medida em que apresenta uma proposta de categorias diagnósticas construída a partir de sua segunda tópica psíquica estabelecida em O eu e o isso (FREUD, 1923). Este modo de diagnosticar é evidentemente estrutural, na medida em que se ocupa de capturar, na estrutura psíquica, onde se localiza o conflito que traz o sofrimento desencadeador da busca de tratamento. 

Sigmund Freud 

Em "Neurose e psicose", o psiquismo não é mais pensado única e exclusivamente a partir do conflito entre memória inconsciente e acesso ou não ao aparelho motor através do sistema Pré-Consciente/Consciente. Por conta de experiências clínicas em que a constituição do eu e do narcisismo tomaram o primeiro plano, bem como por conta de experiências clínicas graves onde o masoquismo ou o trauma não podem ser desconsiderados, Freud operou diversas mudanças teóricas que resultaram numa concepção do aparelho psíquico em 3 instâncias, o eu, o isso e o supereu e mais a realidade externa. O foco desta perspectiva é a complexidade das relações conflituosas entre tais instâncias, sempre acentuando que o locus central dos conflitos está nas relações entre o eu e cada uma das outras instâncias, o que desencadearia tipos diferentes de angústias

É a partir desta perspectiva que Freud sugere que poder-se-ia pensar em três grandes grupos diagnósticos. Um deles seria composto pelos quadros clínicos em que o conflito psíquico aparece sobretudo nas relações entre o eu e o isso, tal grupo seria o das psiconeuroses, como a fobia, a histeria e a neurose obsessiva. Este grupo diagnóstico era o que mais interessava a Freud; já em "Psicanálise 'selvagem'" (id, 1910) e novamente em "Sobre o início do tratamento" (id, 1913), o psicanalista já indicava porque diagnosticar se um caso clínico era de psiconeurose importava: porque, para ele, a psicanálise só funcionaria como tratamento desse modo de sofrimento psíquico.

Para Freud, em grande parte de seu percurso, apenas psiconeuróticos poderiam fazer análise. O diagnóstico tinha função fundamentalmente diferencial, portanto, para se poder fazer uma triagem entre a quem vale a pena oferecer um tratamento psicanalítico e a quem não. O motivo de a psicanálise só ser possível com psiconeuroses, naquele momento de seu percurso, era que este quadro clínico e somente ele supunha duas condições de análise: 1) o psiconeurótico sofre de um conflito entre o eu recalcante e fantasias inconscientes ligadas a reminiscências, a lembranças movidas para o inconsciente. Logo, desrecalcar através da técnica analítica incidiria neste conflito tratando dos sintomas causados pelo retorno do recalcado e trazendo o material inconsciente para a consciência. Toda a prática de Freud e todo seu dispositivo analítico foram construídos para tornar esse tratamento da psivmconeurose possível. 2) A técnica analítica procede sob transferência e na transferência daquelas mesmas fantasias inconscientes para a figura do psicanalista: esta é a fonte do material analítico recolhido durante a análise e é, ao mesmo tempo, o terreno sobre o qual a intervenção do analista se faz, incidindo sobre a vida afetiva do paciente em ato. Aliás, é porque o paciente psiconeurótico utiliza da transferência de sua fantasia para a relação com o outro ao invés de se deparar com o que não é capturado do mundo externo pelo seu arsenal defensivo, que Freud precisou retificar, em "A perda da realidade na neurose e na psicose", que não só os psicóticos, mas também os psiconeuróticos ou simplesmente neuróticos (trata-se aqui da mesma coisa) se defendem de índices de percepção da realidade externa. Em suma: o recalcamento e a transferência das fantasias são condições necessárias para que se possa fazer análise. 

Cena de O franco atirador (Michael CIMINO, 1978), na qual Christopher Walken interpreta um traumatizado de guerra

Isso não impede Freud de se interessar por outros tipos de sofrimento psíquico, pesquisá-los e mesmo estimular seus discípulos a ensaiar o tratamento psicanalítico com eles, coisa que vemos ser feita em sua introdução a um volume escrito por seus discípulos para pensar o tratamento de neuroses de guerra, que não poderiam ser pensadas como psiconeuroses clássicas (id, 1919), como também, mais tarde, veremos em "Construções em análise" (id, 1937) o próprio Freud tentar esboçar ideias para um tratamento psicanalítico das psicoses - o que levanta suspeitas de que passou a considerar a possibilidade de transferência em quadros clínicos não psiconeuróticos. 

 É nessa medida que interessa elucidar outros dois grupos diagnósticos. Um deles é o grupo das psicoses como a esquizofrenia ou a paranóia: nelas, o conflito psíquico que sobressai não é entre um eu recalcante e o isso/inconsciente, mas sim entre o eu e a realidade externa, da qual ele quer se defender. Nas psicoses, o eu rejeita algo da realidade externa, destrói o registro (diferentemente do recalque, que mantém o registro alocando-o no inconsciente), retirando sua libido dela para si mesmo, aumentando seu narcisismo ao mesmo tempo em que o mundo externo se torna desinvestido ou mesmo hostil. No momento em que restabelece laços com o mundo externo, eles não se dão através de uma submissão, mas sim de uma imposição do modo de funcionamento e dos conteúdos do isso ao mundo externo - estou me referindo aqui tanto à alucinação como projeção de conteúdos inconscientes quanto ao delírio como discurso construído a partir das imposições intransigentes da pressão do isso e que é compreendido por Freud como uma tentativa de ligar o desejo à realidade, uma tentativa de restabelecer contato.

Mas haveria também um terceiro grupo diagnóstico: o daqueles cujo conflito se situa bem mais nas relações entre o eu e o supereu. Como o supereu é pensado como uma parte do eu que se diferencia da outra, na dissolução do Complexo de Édipo (id, 1923, 1925), a ponto de funcionar como uma instância em conflito com o eu de onde emergiu, Freud inclui neste grupo diagnóstico não só os quadros de conflito entre o eu e o supereu, mas também outros tipos de conflito do eu com partes dele mesmo que foram cindidas. Como exemplo maior destes quadros Freud cita a melancolia, na qual o objeto perdido é incorporado ao eu, sublinhando que ela precisa ser pensada de modo diferente das outras psicoses (p.e.: o melancólico não experimenta os ataques do supereu como externos [tal como as vozes escutadas pelo esquizofrênico ou as figuras persecutórias do paranoico], mas como o peso acachapante de sua consciência moral). Por isso, passa a usar o termo neuroses narcísicas para se referir a este terceiro grupo. De fato, aqui está a grande novidade do artigo "Neurose e psicose", afinal, antes Freud já fazia a distinção entre neuroses e psicoses, mas entendia as neuroses narcísicas como psicoses tais como as outras, como se pode ler em "Sobre o narcisismo: uma introdução" (id, 1914).

Silêncio (Johann Heinrich FÜSSLI, 1799-1801)

O próprio conceito de supereu se desenvolveu, em parte, a partir das reflexões freudianas sobre a melancolia, na qual o sadismo daquele sobre o eu é facilmente reconhecido e o qual Freud descreveu como uma verdadeira cultura da pulsão de morte. As vantagens da designação do quadro diagnóstico 'neuroses narcísicas' como diferente das psicoses parecem ser as seguintes:

Não só a melancolia, mas outros tipos de sofrimento nos quais o que está em pauta é a incapacidade do eu em sustentar seu narcisismo, seu amor por si, a sua imagem erótica defendida do isso e da realidade externa, podem ser pensados nessa categoria diagnóstica. Vale aqui lembrar que na teoria da psicose de Freud não se trata de uma dificuldade de investimento libidinal no eu; muito pelo contrário, na paranóia - psicose modelo para Freud (id, 1911) - o eu é superinvestido, o que explica, por exemplo, tanto os delírios megalomaníacos quanto os de perseguição. Desse modo se vê a diferença para a melancolia, as depressões ou os quadros de neurose traumática apresentados em Além do princípio do prazer (id, 1920): em todos eles, se o eu não está destituído, ao menos está brutalmente empobrecido em seu narcisismo. Aliás, exatamente por hoje poderem ser pensadas sob a mesma lógica descrita neste ensaio de 1920 - o da irrupção de uma quantidade indomável de energia desligada no eu, ou seja, pulsão de morte -, as chamadas neuroses atuais poderiam também ser compreendidas como neuroses narcísicas (JUNQUEIRA & COELHO JÚNIOR, 2006). Freud insistia que as neuroses atuais (neurastenia, neurose de angústia e hipocondria) não seriam psíquicas; sustento que isso se dava por ele fazer coincidir a ideia de psíquico à de representação mental, apesar de seus avanços teóricos e técnicos que indicavam a existência da pulsão de morte como energia desvinculada de representação. Talvez por isso, em seu já tardio e posterior à invenção do conceito de pulsão de morte Um estudo autobiográfico (id, 1925), tenha sido mais autocrítico sobre o assunto.

Camila Junqueira e Nelson Coelho Júnior chegam mesmo a sugerir que os ditos casos limites, limítrofes ou borderlines podem muito bem ser pensados como compondo este grupo das neuroses narcísicas também, pelos motivos já apresentados a respeito da incidência da deserotização e da autodestrutividade do eu (op. cit.). 

Essa divisão tripartite em três grandes grupos diagnósticos, proposta por Freud, se beneficiaria de ser mais abrangente do que o que antes eram grupamentos fragmentários e, principalmente, de indicar imediatamente onde está o conflito psíquico a ser manejado no tratamento. O tratamento das psiconeuroses teria como base de intervenção a outra cena, a do Inconsciente como o que se diz no sintoma, e, por isso, é nele que a interpretação do desejo inconsciente a partir das formações do inconsciente ganha lugar. É por conta da psicose que Freud tentará dar relevância às construções em análise, dentre elas o próprio delírio como movimento de cura. Lacan ainda trará valiosas contribuições para o tratamento da psicose, em particular a tomada do psicanalista menos como um intérprete e mais como um secretário do alienado (LACAN, 1955-56). Mas nem sua obra nem a de Freud dedicam muitas linhas a se pensar as particularidades da clínica das neuroses narcísicas. 

Sándor Ferenczi 

Serão outros autores que se debruçarão e ainda se debruçam sobre este terceiro grupo, muito frequente, aliás, nos consultórios e ambulatórios psicanalíticos de hoje em dia. Eles ensaiarão modos de intervenção diferentes da interpretação e da construção. É o que vemos, por exemplo, nos casos de  traumatizados, de Sandor Ferenczi (1929, 1933); das depressões, de Melanie Klein (1956); de 'Falso self', de Winnicott (1972); a partir dos quais Maria Torok elaborou a noção de cripta (1968); de problemas no desenvolvimento pensados por Piera Aulagnier (1975); de narcisismo de morte, por André Green (1988); de revisitação da melancolia por Teresa Pinheiro (1995) e por Marie-Claude Lambotte (1997); de depressão, como abordada por Pierre Fédida (2001) e Maria Rita Kehl (2009); referentes ao informe, de Sylvie Le Poulichet (2003); ou de sofrimentos narcísicos, como abordados por Júlio Verztman (2012). Este é o terreno que mais desafia os psicanalistas, pois não está mapeado e estabelecido do mesmo modo como estão os da neurose e da psicose. Por isso, as obras desses autores são importantes: marcam balizas para o pensamento e expressam esforços, tateamentos que delineiam uma práxis clínica em construção. Ora vemos o psicanalista ocupado com o ambiente propiciado ao paciente, ora com o silêncio, ora com o enquadre, ora com o empréstimo de fantasias etc. Mas algo parece ser quase consensual: se o psicanalista do neurótico,  na transferência, é um intérprete e o do psicótico é um secretário, o do melancólico é uma testemunha. O que evidencia outro tipo de tratamento, certamente. 

Antes de terminar este texto, quero falar alguma coisa sobre as perversões. O leitor pode estar se perguntando onde elas estão, nesta divisão tripartite. Freud estava ativamente ocupado com o problema das perversões quando "Neurose e psicose" foi escrito. Em 1919 publicou "Bate-se numa criança", em 1920, o caso da jovem homossexual, em 1924 mesmo "O problema econômico do masoquismo" e um pouco depois, em 1927, "O fetichismo". Portanto não é possível crer que Freud abandonou a categoria perversão, nem que foi negligente quanto a ela no artigo em questão, pois numa breve frase ao final do artigo menciona as perversões, por sinal. O que parece se depreender de "Neurose e psicose" é que as perversões não se encaixam em nenhum dos três grupos. 

Se na tradição psiquiátrica francesa, herdada pela psicanálise francesa, especialmente a de orientação lacaniana, a divisão diagnóstica tripartite mais conhecida seria a de neurose, psicose e perversão, não é assim que Freud organiza seu esquema. Mas resta a pergunta: onde situar as perversões no esquema de Freud? Se levarmos em conta o que ele mesmo escreveu em "Bate-se numa criança", "O problema econômico do masoquismo", no texto sobre a jovem homossexual e naquele sobre o fetichismo, os casos que o levaram a pensar as perversões vieram de sua clínica com pacientes psiconeuróticos. Se a perversão foi apresentada inicialmente numa relação de negativo com a neurose (FREUD,1905), no entanto, isso não parece querer dizer que ou alguém é neurótico ou é perverso na obra posterior de Freud. O mecanismo de defesa tipicamente perverso apresentado no texto de 1927 é a verleugnung; este mecanismo indica que ao mesmo tempo em que algo da realidade é rejeitado (tal como na psicose), é reconhecido e reparado através de um constructo fantasístico (tal como na neurose), como é o caso do fetiche que ao mesmo tempo em que parece rejeitar a castração da mulher, a afirma ao mostrar que só com a prótese fetichizada a mulher pode ser vista pelo perverso como fálica

Cena de fetichismo em Veludo Azul (David LYNCH, 1986), com Dennis Hopper e Isabella Rosselini

Ora, se o mecanismo perverso é o uso concomitante e conjugado dos mecanismos neuróticos e psicóticos, a perversão coloca um problema na nosologia freudiana. Alguns creem ser preciso abandoná-la e preferir a divisão neurose-psicose-perversão, outros preferem conceber a perversão como algo que se acopla a uma psiconeurose ou a uma psicose ou a uma neurose narcísica. As querelas não terminam...pois tudo depende da experiência clínica de cada psicanalista e da escuta da singularidade de seus pacientes, o que necessariamente coloca dificuldades às generalizações, o que, ainda bem, por sua vez, protege a psicanálise, ao menos em parte, do uso de suas categorias diagnósticas para fins de normalização e de identitarismo - o qual, aliás,  opera numa lógica semelhante à do fetiche. O diagnóstico pode perfeitamente operar como um fetiche.

Quando um psicanalista está ocupado demais com filigranas diagnósticas, quando está sempre conseguindo encaixar pacientes em diagnósticos precisos e quando passa a escutar a histérica e o obsessivo e não sujeitos singulares, eu diria, como Freud em 1911 a respeito do abuso dos símbolos na interpretação de sonhos: está se afastando demais do método psicanalítico...

Em psicanálise há uma tensão entre fazer o diagnóstico e, assim, parar de escutar, por um lado, e, por outro, a escuta do sujeito do inconsciente. Ao menos existe esta tensão em psicanálise: ela não existe na psiquiatria, nem na psicologia cognitivo-comportamental; elas NUNCA escutam o sujeito. Quando o fazem, entram em crise. Quando o psicanalista o faz, começa uma análise. 

Comentários

  1. O que me faz pensar que psicanálise é um cosmo além das minhas possibilidades! Muito bom texto embora muito psicoanalítico 😳

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