A felicidade de Wim Wenders

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Ainda está em cartaz, nos cinemas, o último filme de Wim Wenders, Dias perfeitos (2023). Lindo filme que, creio, recoloca em cena uma discussão antiga, batida e, no entanto, sempre atual, a respeito da felicidade. O filme é uma sensível crítica ao sonho hegemônico de felicidade, repetidas vezes encenado nas telas de nosso mundo contemporâneo, seja nos sonhos noturnos e devaneios, nas imagens de propaganda comercial, nas fotografias, na internet, na TV ou no cinema. Desse modo, Dias perfeitos é um filme construído contra ou apesar do imaginário reiterado pela maior parte dos filmes que chegam aos nossos olhos. E, ao ser um olhar diferente a respeito da felicidade, reabre discussões encetadas também no campo psicanalítico.

O que se lerá a seguir, inclui muita informação sobre o filme. Quem não gosta de spoilers antes de ver a obra, esteja já advertido.

Com roteiro assinado por Wenders e Takuma Takasaki, Dias perfeitos nos apresenta o cotidiano de um homem de meia idade, japonês, limpador de banheiros em Tóquio. Se alguém espera que, através da condição do protagonista, Hirayama - interpretado magistralmente por Koji Yakusho -, Wenders denunciará, ao público, a miséria humana, no sentido de causar no público algum tipo de indignação ou piedade pelo homem que realiza um trabalho que ninguém mais quer fazer, se surpreenderá. Não que essa dimensão da abordagem esteja absolutamente ausente, mas o filme não é sobre isso. O que faz a vida de Hirayama interessante ao público é que, mesmo levando em conta que ele, de fato, trabalha com algo que também parece ser considerado inferior pelos próprios usuários dos banheiros públicos do filme (e não só por eles), mesmo que tenha uma vida extremamente modesta em termos econômicos - para padrões japoneses -, mesmo considerando a rotina repetitiva de seus dias, mesmo considerando o pequeno tempo de lazer que lhe sobra, mesmo considerando os pequenos fragmentos de eventos mais ou menos dolorosos de sua vida a que temos acesso ao ver o filme, o personagem parece estranhamente feliz.

Cartaz de divulgação de Dias perfeitos (Wim WENDERS, 2023)

Hirayama mora sozinho e pouco fala com os outros, somente o necessário; acorda todo dia no mesmo horário, escova os dentes, faz a barba, apara o bigode, veste seu uniforme de trabalho, rega as plantas carinhosamente, pega as chaves e moedas, toma café de uma máquina, sai para o trabalho em seu carro no qual escuta fitas cassettes com rock dos anos 60 e 70, limpa banheiros públicos com um esmero japonês durante o dia todo, só pausando para almoçar um sanduíche e fotografar árvores que observa dali e, antes de voltar para a casa e ler um pouco algum livro interessante e dormir sonhando em preto e branco, terá ainda jantado na mesma birosca e se lavado em um mesmo banho público. Em vários momentos entre essas atividades, por mínimos instantes, contempla e às vezes interage com pequenas imagens delicadas que lhe atiçam o interesse, como, por exemplo, as sombras das árvores balançando ao vento ou o gestual esquisito de um mendigo louco, ou ainda a moça que também come um sanduíche no mesmo parque em que almoça. Não sem algumas variações sobre o mesmo tema, esta é sua rotina - a qual lhe parece boa. 

Suspeito, aliás, que a fruição destas cenas como boa não é apenas a de Hirayama - é também de Wim Wenders. A fruição do diretor alemão, através de seu olhar interessado, fica evidente na curiosa exploração que faz dos diferentes tipos de banheiro público japonês, nas particularidades da cultura japonesa (lutas de sumô transmitidas pela TV, potes com hashis nos bares para uso dos fregueses, as roupas das colegiais) ou na escolha das músicas de que o protagonista gosta - sabemos que Wim Wenders é um grande fã de Lou Reed. E Wenders, como um grande cineasta, consegue fazer com que o público comungue desta fruição.

Em dois momentos do filme, Hirayama, no entanto, se mostra triste e choroso: a) após sua irmã cobrá-lo por não visitar algum homem hospitalizado (seria seu pai, irmão, filho?), além de manifestar tristeza por ele ter esta profissão de limpador de banheiros, dando a entender que ele poderia estar numa situação mais respeitada social e economicamente e que esse é o desejo dela. b) o outro momento é a linda cena final: resumidamente (e, por isso, sem revelar detalhes importantes), após uma noite em que um homem que mal o conhece o aborda contando que está com um câncer já em metástase, Hirayama lida com a situação convidando o homem a brincar de 'pique-pega de sombras'. A brincadeira consiste em tentar tocar a sombra do outro no chão com os próprios pés, enquanto o outro se movimenta tentando evitar o toque - momento em que os dois riem e relaxam. Na manhã seguinte, dirigindo seu carro, ouvindo, em seu toca-fitas, Perfect Day (1972) de Lou Reed, chora contido e ri contido alternadamente até se tornar menos contido. 

Cena de Dias perfeitos em que Hirayama joga o jogo da velha com correspondente anônimo, em um banheiro público 

O que isso quer dizer? Que sua felicidade é uma fuga dos problemas? Que, apesar dos problemas, ele é feliz? Que os problemas e a tristeza fazem parte de sua felicidade? Por ora, quero insistir na estranheza causada por Hirayama aparecer feliz, no filme, para nós, o público. O que causa estranheza aqui, para nós brasileiros, ao menos, talvez seja o fato de que estamos habituados com certas idealizações da felicidade que parecem não tornar concebível a vida deste homem como sendo feliz. Listemos algumas: 

1) a concepção tradicional católica de felicidade é a da felicidade após a morte, em Cristo, para a qual este mundo aqui e os prazeres da carne são o caminho para a perdição. O preparo para a felicidade no Reino dos Céus se daria através da mortificação da carne e do eu, da renúncia aos prazeres (FOUCAULT, 2020). Não é o caso de Hirayama, que tem pequenas e breves experiências de prazer cotidianamente e se contenta com elas, aparentemente sem culpa católica.

2) a concepção evangélica neopentecostal de felicidade - construída já na modernidade capitalista - já reconhece a possibilidade de felicidade aqui neste mundo, e não somente no além vida, a partir da teologia da prosperidade, por exemplo. Nela, os frutos do trabalho seriam a evidência de que o cristão está agraciado por Deus. Como já nos acostumamos a ver, é muito comum, por exemplo, um jogador de futebol 'atleta de Cristo' louvar a Deus de modo contente após fazer um gol - foi Deus quem o agraciou com o gol; o que fica silenciado é que um gol perdido parece que evidenciaria que Deus está distante dele. A Graça recairia sobre os prósperos, enquanto os desfavorecidos economicamente o seriam porque estão distante de Deus e, portanto, da felicidade (GARRARD-BURNETT, 2011). Hirayama, mesmo que trabalhe com afinco, dedicação, amor e dignidade (como quereria um bom protestante [WEBER, 1908]), não parece expressar seus momentos felizes somente no trabalho, mas seu lazer, improdutivo, também o é, o que nada tem a ver nem com a moral protestante histórica, nem com a teologia da prosperidade. 

Cena de Dias perfeitos em que Wenders nos faz contemplar banheiros públicos de Tóquio 

3) no neoliberalismo - ou seja, hoje - a felicidade parece ser buscada na tentativa de transformar a si mesmo, efetivamente, sem restos, em exímio vendedor de si, em produto oferecido ao consumo de muita gente e, ainda, em produtor orgulhoso de que seu produto é um sucesso; isso se daria através de uma gestão racionalizada de si para fins comerciais, na qual as estratégias de marketing pessoal parecem ser o que há de mais requintado no assunto. O produtor e os consumidores buscam aferir se o produto vai bem no mercado objetivamente: felicidade é sucesso, sucesso é lucro, logo, números altos de seguidores, fotos repletas de sorrisos em viagens de férias, likes são cifras a serem multiplicadas. Certamente Hirayama não cabe neste sonho de felicidade, ele nada tem a ver com isso, ele não vende nada nem quer fazê-lo, ele dá - eu diria que Dias perfeitos é, no frigir dos ovos, uma crítica a esta concepção de felicidade, que é a que mais se tenta disseminar mundo afora.

4) A abordagem niilista, para a qual não há felicidade, não faz sentido diante de Hirayama, que é feliz. 

5) A abordagem ingênua, como se dizia antigamente, 'Poliana', deve ser considerada aqui, apesar de tola, tendo em vista que, caso o cineasta não fosse o inteligente Wim Wenders, Dias perfeitos poderia ter virado um filme 'Poliana', pois alguém poderia dizer que ser feliz é uma questão de escolha, que basta acreditar para ser feliz e que foi precisamente isso que Hirayama fez. Mas não é disso que se trata no filme, ou ao menos não se trata somente disso, pois a felicidade supõe sim uma crença, uma aposta, mas não esse passe de prestidigitação simplista. Aliás, os dois momentos angustiados do protagonista são mostrados de modo que não é possível para o público crer que "agora passou e ficou tudo bem".

Por outro lado, se Hirayama estava fugindo dos problemas e ensinou um desconhecido, no fim do filme, a, de certo modo, brincar de não pegar a sombra, a tristeza destes momentos não diz tudo a respeito de Hirayama. O desconhecido é só mais um de uma lista de pessoas a quem ele ajuda a lidar com problemas, com gestos simples, se mostrando disponível para elas, sem buscar nada ou pouca coisa em troca, como sua sobrinha, a criança perdida no banheiro, a americana que não sabe usar o banheiro japonês, seu subalterno no trabalho, a namorada dele ou mesmo uma pessoa não vista com quem brinca de jogo da velha secretamente. Estes outros nem precisam ser humanos, aliás  - o desvelo com que Hirayama recolhe mudas de plantas e cuida delas para que se desenvolvam revela melhor sua atitude do que a fuga de seus problemas. Se a segunda existe - e ela existe - a solidariedade para com os outros e os problemas deles conta na descrição da felicidade do protagonista também: e isso não se sustenta como fuga, mas como uma atitude corajosa e ética nos mínimos detalhes da vida. Hirayama zela a si mesmo zelando os outros.

Wim Wenders 

Este ponto é importante pois, caso o filme - ao mostrar que um limpador de banheiros públicos de Tóquio, com uma vida repetitiva e restrita financeiramente, pode ser feliz - reforçasse uma narrativa na qual a felicidade é um estado de constante alegria, sem manchas, sem sombras, apesar de ser alcançado tampando o sol com a peneira ou, como se preferir, dourando a pílula, o filme não apresentaria uma crítica às concepções hegemônicas de felicidade: ele seria uma peça de ideologia conservadora na qual se tenta fazer o oprimido se contentar com seu lugar, se tornando dócil e útil, o que, aliás, parece ser o efeito daquelas fórmulas de felicidade acima listadas. Ora, no filme, Hirayama é um sujeito útil e mais ou menos dócil, mas sua felicidade não aparece como um assujeitamento - e sim como um ato de resistência ao poder e, por isso, também como afirmação corajosa de si. Sua resistência não é a daquele que diz 'não', mas daquele que investe no seu estilo, que aposta nas suas escolhas, no seu modo de fruir, sobrepondo às determinações do mundo externo uma camada ou uma área de interferência sua. Pois ele não só zela os outros, mas também cultiva experiências que não compartilha com mais ninguém e que dão à sua vida cotidiana o caráter feliz, ao estetizá-las: a) ao ouvir a dona do bar cantando, fecha os olhos com deleite, para a experiência ser só sua; b) o cultivo zeloso de suas plantas ocorre dentro de casa, onde ninguém mais vai; c) as fotos que tira, de árvores, após a revelação, passam por uma seleção estética, a partir da qual, apenas as de valor são guardadas e arquivadas com um cuidado obsessivo; d) é um grande prazer, no banho, fazer bolhinhas com o nariz, de baixo d'água; e) as contemplações de sombras de árvores são experiências solitárias e quietas (mesmo que, em certo momento do filme, se veja colocado na situação de compartilhá-las com sua sobrinha, o que também não aparenta ser nenhum problema, apenas não é necessário); f) sua leitura dos inúmeros livros que tem na estante é interessada, ele vive aquele momento.

Em Mal-estar na civilização (1929 [1930]), Freud se debruça sobre o tema da felicidade. Concebe a experiência do prazer como sendo possível somente por contraste com o desprazer, de modo que o primeiro seria o alívio do segundo; por isso mesmo, com seu típico humor ácido, nos lembra o quão insuportável seria uma sequência de dias felizes: eles logo deixariam de ser felizes por perderem o referencial contrastante do desprazer e azedariam, perderiam toda a graça. Uma outra passagem, desta vez de Psicologia das massas e análise do eu (id., 1921) parece indicar posição semelhante, por outras vias: ali Freud retoma a parábola do porco-espinho de Parerga e Paralipomena (1851), de Schopenhauer, parecendo aceder à moral da história do filósofo pessimista. Se o leitor não conhece esta parábola, a resumo assim: 'Os porcos-espinhos são mesmo infelizes, não é? No inverno, em busca de calor, se aproximam, mas a aproximação os faz espetarem-se, gerando, em seguida, um afastamento, que os colocará, novamente, distantes do calor. Em seguida, tentarão repetir a aproximação que acarretará outras agulhadas, afastamento e assim por diante'. Em suma: para lidar com nosso desamparo fundamental, buscaríamos o amor do outro, mas o outro nos traz desprazer, levando-nos ao também desprazeroso afastamento, de modo que nunca conseguimos aquele bem-estar procurado. Tanto no texto de 1921 quanto no de 1930 Freud pensa o prazer em uma relação alternada com o desprazer, de modo que o primeiro nunca dura muito. 

Voltemos a Mal-estar na civilização. Costuma-se ler esta obra como tendo um teor pessimista, especialmente porque, para Freud, sempre haverá algo da ordem do mal-estar numa civilização que se quer preservar, afinal uma vez que há a pulsão de morte, ou a direcionamos para fora agredindo o outro humano, trazendo mal-estar para ele - e, às vezes para nós mesmos -, ou a voltamos contra nós mesmos através do sentimento de culpa que incide sobre quem se dedica a preservar os outros de sua própria agressão. Todavia, pretendo demonstrar que não é porque Freud sustenta a impossibilidade de eliminar o mal-estar da civilização que sua posição merece ser chamada de pessimista, como foi a de Schopenhauer.

Porcos-espinhos

Se a concepção do prazer como em contraste com o desprazer está ali presente, também encontramos no mesmo livro Freud se dedicando a fazer uma lista de tentativas que a humanidade inventou para tentar lidar com o mal-estar, e viver de modo mais feliz, na qual se encontram, por exemplo, o uso de drogas, o amor, a arte, o trabalho. A mensagem de Freud não é 'nada disso traz felicidade', mas sim 'nenhuma destas fórmulas de felicidade vai servir para todos'. É por isso que o psicanalista, a seguir, arremata: cabe a cada um construir seu modo de ser feliz. O importante aqui não é somente que nenhuma fórmula tem efeito universal, mas sim que o assujeitamento diante de uma fórmula externa retira a participação do sujeito da construção de sua felicidade - ou seja, se o sujeito não se expressa enquanto desejante, se suas fantasias não participam da construção de sua experiência, o efeito do recalcamento ou de outras defesas contra o desejo será de tal ordem que não se poderá mais falar em nada da ordem da felicidade. É por isso que Freud dá à arte ou à atividade estética, de um modo geral, um lugar elevado: como ele já defendia em "Escritores criativos e devaneio" (id.,1908), o artista, através de sua criação, tal como a criança através de seu brincar, não inibe seu desejo, mas, ao contrário, modifica o mundo através dele. 

Talvez por isso os sonhos de Hirayama sejam representados por Wenders em preto e branco, e sejam uma sobreposição de fragmentos visuais e auditivos do que ele viu no dia anterior. Me explico: aquilo que Freud chamava de trabalho do sonho (id., 1900), a elaboração onírica, ou seja, a operação de condensações e deslocamentos de representações psíquicas enformando um material para que os desejos inconscientes superem a censura moral e encontrem expressão no Consciente, parece ocorrer, com Hirayama, não durante o sono, mas durante o dia seguinte, em ato, na atividade cotidiana. Hirayama, tal como a criança que brinca e o artista, não elabora suas fantasias no 'interior', mas na brincadeira, na obra, na relação com o mundo exterior. Retomando: de noite, o que vemos como seus sonhos são puros fragmentos do que lhe despertou interesse, sem cor; e de dia, em vigília, vai dando colorido e nexo a esses fragmentos ao fazê-los ecoarem nas suas atividades laborativa e lúdica cotidianas, juntando-os a experiências que são ao mesmo tempo as mesmas, mas com pequenas diferenças. 

É ainda por isso que Freud, para sublinhar seu argumento, faz menção à solução que o protagonista de Cândido, ou o otimismo encontra para o problema da felicidade (VOLTAIRE, 1759): cultivar seu próprio jardim. Da mesma maneira que Voltaire, Freud não é um pessimista, é apenas um crítico do otimismo; ele relaciona esta passagem final do texto do pensador francês à gratificação banal do trabalho cotidiano em detrimento das ideias megalomaníacas e 'filosóficas' de felicidade proferidas pelo otimista Pangloss, estas sim com um tom um tanto conservador (personagem que traz em si uma crítica não muito disfarçada a Leibniz). O que Cândido deixa de lado é uma fórmula de felicidade como algo a se conquistar de uma vez por todas, uma bonança alcançável ou uma resignação completa. No lugar disso, o jovem abraça um trabalho cotidiano investido de amor e cuidado, no qual continuidade e descontinuidade, vida e morte, intervenção direta e laisser-faire estão intrincados o tempo todo: o do cultivo de um jardim cujos frutos lhe alimentarão e manterão vivo. De certo modo, essa posição de Freud retoma o que ele já trabalhou brevemente em "Sobre a transitoriedade" (FREUD, 1916), texto no qual ele se contrapõe a um poeta - Rilke - que acreditava que não era possível fruir da beleza de uma flor na medida em que sabia que ela morreria, a beleza que era transitória não podia ser amada. Para Freud é exatamente porque é transitória, frágil, marcada pela finitude, que a flor e a vida devem ser motivo de fruição. Uma absoluta desidealização da beleza e da felicidade já está presente neste argumento: não em detrimento da felicidade; ao contrário, liberando-a da idealização, ela pode se experimentar em eventos efêmeros, pequenos, passageiros, do mesmo modo que faz o jardineiro, que não deixa de cuidar das plantas, lutando por fazê-las florescer, mesmo sabendo que morrerão um dia: trabalhar e amar - seriam índices de que uma análise vai bem.

Jardim japonês 

Como Maria Rita Kehl diz numa entrevista:

Freud considerava a capacidade de amar e trabalhar como a síntese da saúde mental. Mas eu arriscaria acrescentar que é a capacidade de amar, trabalhar e criar. Tudo bem, criar também está ligado a trabalhar. Mas criar não é necessariamente nem trabalho, nem amor, e nem é preciso ser um artista para criar (KEHL, 2017).

Na medida em que o leitor acompanhou meu raciocínio até aqui, eu só posso concordar com Kehl se preferirmos o termo felicidade a saúde mental, e este acréscimo do "criar" nos faz ensaiar também uma aproximação a seguir. Sabemos das diferenças que existem entre Winnicott e Freud; o primeiro não concorda com a concepção da condição inicial do humano como desamparada, também não sente nenhuma necessidade de uso do conceito de pulsão de morte, mas o que quero frisar em seguida sugere uma aproximação dos pontos de vista dos dois autores, sem desconsiderar seus fundamentos teóricos em parte distintos. 

Para Winnicott, tal como para Freud, a capacidade de brincar está intimamente ligada à de ser criativo. E, para o autor, antes de Kehl, criatividade é sinônimo de saúde mental, ou experiência feliz (WINNICOTT, 1971). A capacidade de brincar supõe que o sujeito veja continuidade e não somente uma barreira entre ele e a realidade bem como em sua própria existência; supõe que ele se sinta confiante de explorar os objetos como se eles fossem, ao mesmo tempo, objetos externos e algo que diz respeito a ele, à suas fantasias; é nesse espaço transicional, espaço ao mesmo tempo externo e de abordagem e expressão das próprias fantasias, que o sujeito é capaz de se sentir existindo, de sentir que sua existência importa, que o que ele faz ou diz é relevante. Para que o sujeito se relacione com os objetos tomando-os como objetos transicionais num espaço transicional, é preciso que o ambiente seja propício para tal experiência. O ambiente suficientemente bom seria aquele no qual o sujeito foi provido de cuidados e gratificações suficientes de forma que não desiste mais de seus desejos e fantasias diante dos obstáculos que a realidade lhe apresenta; ele continua a apostar neles e é esta aposta que sustentará sua exploração criativa do mundo. Se os objetos transicionais primeiros são os brinquedos preferidos, como bonecas, ursos de pelúcia, paninhos etc., a tomada da própria linguagem como espaço transicional permitirá a experiência cultural humana como lugar da experiência criativa do humano e, por conseguinte, de sua felicidade.

Maria Rita Kehl

Ainda um comentário sobre o ambiente suficientemente bom, antes de prosseguir meu raciocínio. Talvez seja preciso dizer que não é por acaso que o filme se passe no Japão. Ele se torna crível no Japão porque, como se sabe, o povo japonês é um povo extremamente preocupado com a limpeza e com o cuidado coletivo com a limpeza: basta lembrarmos o que somente a torcida japonesa faz em jogos de Copa do Mundo e Olimpíadas, mesmo quando visitantes em outros países (como aliás aconteceu aqui no Brasil, na Copa de 2014 e nas Olimpíadas de 2016) - após o término da prática esportiva que foram assistir nos estádios, antes de partirem, os japoneses se organizam em mutirão voluntário, recolhendo todo o lixo deixado no estabelecimento (não só por eles, mas também por outros de outras nacionalidades e torcidas) e destinando-o às lixeiras adequadas. Digo isso porque, mesmo que o limpador de banheiros de Tóquio seja uma profissão desvalorizada, há um caldo cultural que dá dignidade a seu trabalho - além do quê, por conta da preocupação nipônica com limpeza, não se vê, no filme, nenhum banheiro público imundo, como se vê mundo afora; não há dúvidas de que são sujos, focos de infecções, mas nem se comparam com o que se vê, por exemplo, por aqui. É preciso ainda dizer o seguinte: no Japão, de acordo com o filme, um limpador de banheiro público não vive de modo indigente, ele tem recursos para ter um carro, pagar sua gasolina e ter uma vida simples, mas na qual não lhe faltam comida, um teto e mesmo uns poucos trocados que ele usa para comprar livros, por exemplo. Sabemos que esta realidade não se repete na maioria dos países - ou seja, a situação político-econômica e cultural japonesa serviu de ambiente suficientemente bom para que Hirayama pudesse preservar sua criatividade e não experimentasse a realidade externa como puro impedimento a seus desejos. Dito isso, ainda assim o personagem parece diferente também dos outros japoneses do filme, seu modo de ser não é necessariamente reconhecido como criativo por eles; dessa maneira, deve haver algo diferente na vida de Hirayama que tornou possível esta vida criativa e feliz, mesmo considerando o ambiente japonês - do que só podemos cogitar, porque o filme nada informa sobre o assunto.

Vale lembrar que quando seu subalterno pede demissão e todo o trabalho desse tem de ser executado naquele dia por Hirayama, este acaba trabalhando dobrado e, por isso, até muito mais tarde. O efeito disso, além do cansaço do personagem principal, é o surgimento de um obstáculo à manutenção de sua rotina que tanto lhe apraz, e certamente a sensação de injustiça por ter de trabalhar mais do que o combinado. O interessante é que Hirayama se irrita e informa a gestão que esta é a última vez que executará um trabalho que não é o seu. No dia seguinte vê surgir uma nova subalterna e a rotina volta a ser o que era. Esta passagem é importante para nos mostrar que quando o ambiente deixa de propiciar condições para ele ter sua vida feliz, ele reage, coloca seus limites; não é um ser passivo e subalterno que aceita qualquer coisa ou se adapta às circunstâncias.

Hirayama brinca. Sua criatividade não se expressa na produção artística, mas sim na sua capacidade de brincar, ou seja, de tomar a realidade externa não como um dado que se impõe em sua monolítica externalidade, mas sim como um campo onde se pode testar objetos para poder se ver o que se pode fazer com eles, a partir das fantasias que nele se 'jogam', expressando assim um sujeito ativo, vivo e desejante. A brincadeira do pique-pega de sombras ou o jogo da velha são exemplos óbvios. Mas as bolhinhas debaixo d'água são brincar; a mímica que o protagonista faz imitando o mendigo louco também; a sua própria insistência em se comunicar sem falar, mas por gestos também, dentre outras de suas esquisitices que vemos no filme e que lhe dão o aspecto feliz.

Capa de Transformer (Lou REED, 1972), álbum onde se encontra Perfect day

Se o cultivo do jardim não é um trabalho banal - e sabemos o valor que os japoneses dão à jardinagem -, não há dúvidas de que o cultivo do próprio jardim não o é igualmente. Mas a concepção winnicottiana de espaço transicional já quereria dizer que o jardim que o sujeito cultiva é, ao mesmo tempo um jardim externo e o próprio jardim, não é? A subjetividade é retirada de uma perspectiva interiorista para ser pensada na relação com o mundo, com os outros. A psicanálise, enquanto experiência, pode ser encarada, por esta via, então, como um cultivo do próprio jardim, ou, como chama Foucault, uma prática de si (FOUCAULT, 1981-82), na medida em que ao atuar e falar de si e se relacionar com o psicanalista, o sujeito está, de novo, em um playground (FREUD, 1914), no espaço transicional - o analista é abordado ao mesmo tempo, como objeto externo e interno; para tratar disso Freud recorreu, como se sabe, ao conceito de transferência (id., 1912). Nesta experiência, no entanto, ao pôr a própria neurose na transferência com o analista, com a ajuda deste último, o paciente pode modelá-la, transformá-la e, com isso, modelar-se e transformar-se. A isto Freud chama de elaboração (id., 1914).

Sabemos que, em alemão - a língua de Freud -, de modo mais evidente do que em português, mas também nas nossas línguas latinas, elaboração (Durcharbeitung) remete a trabalho/labor (Arbeit); deste modo, o próprio jardim sendo cultivado é uma estetização da própria existência, cotidiana, na qual o sujeito se implica eticamente reconhecendo seu envolvimento desejante no processo de elaboração. Esta perspectiva parece fazer jus às aparentes posições contrárias de Freud em Mal-estar na civilização: só seriam contrárias se concebêssemos a felicidade como absoluta ausência de desprazer, puro prazer ou até mesmo satisfação pulsional integral (ou gozo [LACAN, 1968-69]). Não creio que Freud se interesse por este tipo de concepção de felicidade. Felicidade não precisa ser entendido como sinônimo de êxtase, nem como absoluta calmaria. Mas se felicidade disser respeito ao investimento no mundo através do trabalho/obra, a referência ética e estética não é mais só nem principalmente a continuidade do prazer, mas o envolvimento do sujeito, através de seu desejo, no processo. 

Com esta perspectiva, creio que poderíamos compreender Hirayama como um feliz esteta de si e da existência, que luta cotidianamente para cuidar de seu jardim (também literalmente, no caso, aliás), de modo que as dores e problemas não são o avesso da felicidade, mas sim o material sobre e a partir do qual o trabalho investido de cuidar de si e dos outros se faz continuar. A angústia deflagrada nas duas cenas de choro do protagonista não é o fim da felicidade, mas o material sobre o qual o homem cultiva um si - deste modo, a cena final fica muito mais bonita e um tanto heróica, o que combina tanto com a abordagem heróica que o freudiano Lacan dá à sustentação do desejo como ética da psicanálise (id., 1959-60) como com as lindas canções de Nina Simone (Feeling good [1965]) e Lou Reed (Perfect Day [1972]) que escutamos no close do choroso e sorridente motorista.

Voltaire (Jean-Antoine HOUDON,1778)

Comentários

  1. Que análise!!! Não é a primeira vez que me encanto com a leitura de um texto de Pedro Catapan, mas não posso deixar de agradecê-lo. Obrigada Pedro.

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