Philippe Sollers e o Governo Lula 3

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Depois de uma longa pausa e, inaugurando as atividades deste blog neste ano de 2024, retomo minha escrita aqui.

Os assuntos a que este blog se destina estão em seu próprio título: psicanálise, arte e cultura. No entanto, se o leitor passar os olhos no que já foi publicado neste meio, verá que, além destes campos, há uma repetida incidência da política como assunto. Isso se deve, talvez, por dois motivos interrelacionados: 1) o blog foi inaugurado num momento em que a experiência cultural brasileira foi tornada tema de debate político e o mesmo pode ser dito das experiências artística e psicanalítica. 2) Não se deve crer que o ponto '1' subentende que seria possível que haja cultura, arte ou psicanálise apolíticas; elas só existem como exercício teórico abstrato ou ofuscamento a serviço de alguma ideologia; apenas quis dizer que disputas ideológicas capturaram de modo incisivo esses campos cobrando dos indivíduos alinhamento e posicionamento. Dizer que estes campos sempre são também políticos não quer dizer necessariamente isso, mas é esta situação em que ainda vivemos, na medida em que, por exemplo, o fascismo do século XXI - tal qual o fascismo histórico, aliás -, exige do partidário uma visão de mundo total, na qual os campos da cultura, da arte e da psicanálise devem se submeter à coerência da direção do movimento. Mas é possível relacionar cultura, arte e psicanálise com política de outros modos; cito dois exemplos: a noção foucaultiana de micropolítica e sua concepção genealógica de saberes e poderes pensa tais relações fora do campo ideológico (FOUCAULT, 1975-76); quanto a esta, já a empreguei em outros textos deste blog e não a utilizarei hoje. 

O outro exemplo é a posição que interessa desenvolver hoje, aproveitando o fato de que sua apresentação escrita completa 50 anos em 2024. Já tratarei dela, mas adianto que diz respeito a uma tarefa proposta pelo escritor Philippe Sollers na comunicação "A propos de la dialectique (thèses)" (1973), um dos trabalhos apresentados no colóquio Psicanálise e política (Loucura e sociedade segregadora), ocorrido em Milão e fonte do material publicado no livro Psychanalyse et politique (1974), organizado por Armando Verdiglione, preciosidade na qual se encontram contribuições de autores da envergadura do próprio Sollers como Serge Leclaire, Félix Guattari, Julia Kristeva, Jean Oury, Octave e Maud Mannoni. Tive o privilégio de ter acesso a este material por conta da generosidade da amiga Sonia Altoé, que possui o volume em sua biblioteca e me permitiu consultá-lo - e sou grato a ela por isso.

Philippe Sollers

Antes de destacar o que me interessa da comunicação de Sollers, quero situar o leitor a respeito do que me motiva a isso além da data redonda de 50 anos da publicação. Após um ano, dois meses e alguns dias do governo do presidente Lula, eu ainda não me manifestei a respeito de como ele tem lidado com a interlocução entre os campos da cultura, das artes, da psicanálise e da política - ao contrário do que me dediquei a fazer a respeito do governo Bolsonaro: o leitor encontrará inúmeras intervenções neste blog destinadas a criticar como o ex-presidente e seus asseclas manusearam os assuntos acima listados. Chega a hora da crítica ao governo Lula.

Agora sim, vejamos o argumento que me parece o fundamental de Sollers em sua comunicação: segundo o autor, enquanto o marxismo e a psicanálise não sustentarem a empreitada da dialética em sua radicalidade - eu acrescentaria hegeliana, apesar de o escritor não mencionar o filósofo alemão - o fascismo não estará desarmado. O que ele quer dizer é que o mote fundamental da dialética, aquela do entrechoque do subjetivo e do objetivo, não foi devidamente empregado, quando não foi até mesmo evitado ou bloqueado. Ora, a dialética subjetivo-objetivo é o fundamento da Fenomenologia do espírito (HEGEL, 1807) e é por isso que insisto que Sollers visaria, no fundo, fazer entrar a força da obra de Hegel com menos timidez e resistência nos campos da psicanálise e do marxismo. Como continuidade de seu argumento, Sollers ilustra os esquemas dos modos majoritários de lidar com o campo político no cenário internacional de 1974 (e veremos que alguns destes modos ou permaneceram ou se reergueram de lá para cá):

- Da parte do que o autor chama de filosofia ou ideologia burguesas, ou seja, na direita liberal, haveria dois modos preponderantes de lidar com o campo do político. O positivista-mecanicista que apaga a história em favor de um certo modo de pensar e praticar as 'ciências humanas' (incluindo aí certo uso do estruturalismo, formalista, que toma o campo da linguagem como um campo neutro de trocas) que ignora ou exclui o sujeito em favor de uma objetificação do humano, tornando, assim, a psicanálise irrelevante. O outro diria respeito a uma espécie de espiritualismo que utiliza estrategicamente de um nietzscheanismo e de um heideggerianismo, com tons aristocráticos e arcaicizantes, como meio de excluir Marx como referência para o pensamento político. Portanto, ou se exclui a psicanálise ou se exclui Marx: jamais  se os põe um diante do outro.

Uma das lives em que Jair Bolsonaro bebia copos de leite junto de seus aliados, repetindo o gesto dos supremacistas brancos estadunidenses

- No próprio campo da esquerda marxista, Sollers detecta, seja no dogmatismo doutrinal, seja no revisionismo vigente naqueles tempos, um abandono do processo dialético que deveria ser o fundamento mesmo do materialismo histórico que o autor reconhece presente somente até Lenin. Stalin e Mao Tsé Tung, cada um a seu modo, eliminam a dialética até a instauração do pensamento totalitário: o campo do subjetivo é eliminado em favor do objetivo. E no dito marxismo ocidental, aquele dos partidos clandestinos ou não, vigia um revisionismo histórico e idealista, na medida em que o campo material-econômico se tornou o único relevante para se fazer seja a reforma, seja a revolução. O marxismo daqueles tempos, como se sabe, em geral considerava a psicanálise coisa de 'pequeno-burguês'; o subjetivismo era uma excrescência liberal-burguesa.

É o cenário acima descrito o que fez com que, por um lado, o comunismo tenha dado as costas ou mesmo eliminado a psicanálise e os psicanalistas, de um lado; e, de outro, a sociedade liberal-burguesa, só tenha abraçado a psicanálise enquanto ela se adequasse ao consultório privado, como profissão liberal, para cuidar do cultivo da alma privada dos indivíduos através de modelos de aparelho psíquico a-históricos.

E, no entanto - segue P. Sollers -, um perigo rondava esta configuração dos poderes e ideias. O fascismo. A América Latina de Pinochet e da nossa Ditadura Militar, era, para ele, a prova de que o fascismo estava vivo. Mal sabia ele que, no que diz respeito exclusivamente ao Brasil, aquela ditadura, mesmo com apoio de passeatas, no início, por Pátria, Família e Propriedade, que evocam o fascismo italiano, mesmo com perseguição política aos comunistas, com assassinatos, tortura e censura, hoje parece menos semelhante ao fascismo histórico italiano do que o fascismo brasileiro do século XXI, no qual a tortura não é mais segredo, mas algo a se exaltar publicamente como valor, do mesmo modo que a eliminação de inimigos e minorias, da mesma forma que a publicização de símbolos e valores de supremacia branca, racismo, homofobia, transfobia, misoginia, simpatia pela estética nazifascista e discursos de descaso pelas mortes por COVID-19. É também algo muito mais presente no fascismo de hoje do que na suposta simpatia do regime militar de 64-85 pelo autoritarismo de Mussolini a constituição de grupos paramilitares defensores do movimento de extrema-direita nacional e internacional, o forte apelo de uma grande camada da população (que se traduziu em voto), a perseguição micropolítica - não só pelo governo, mas pelo 'vizinho' - dos 'desviantes' morais, estéticos e religiosos e o culto pela força violenta como solução que culminou num armamento de parte significativa das população. O fascismo é forte hoje tanto aqui quanto, aliás, na sua Europa.

Alfred Adler

Se Lacan denunciou como o modelo a-histórico e a-político de psicanálise sustentou um fascismo interno à I.P.A, (como se pode ler em sua carta a Rudolph Loewenstein de 14 de julho de 1953), Sollers denuncia, nesta comunicação, como um certo modelo de arranjo do campo político que parece querer prescindir do psicanalítico, mantém o fascismo incubado, prestes a emergir (e hoje, 50 anos depois, emergiu). Sollers lembra que em 1945 o fascismo foi derrotado "do exterior", pela guerra, mas não "do interior". Salvo Wilhelm Reich (1934), para o autor, não houve marxista que tivesse compreendido a psicanálise como instrumento potente para o desvelamento e desmontagem do fascismo. Se nem a burguesia liberal nem o marxismo tornaram possível um campo em que subjetividade e objetividade pudessem ser pensadas em relação uma com a outra, o fascismo o fez, à sua maneira. A burguesia sustentou uma psicologia sem política; o marxismo retirou a psicologia da política - mas o fascismo e seus derivados se sustentam exatamente numa política que é ancorada e afetante da subjetividade - como se via no entusiasmo dos arianos por Hitler e de sua capacidade de tocar em afetos profundos do Volk

Mas o entrelaçamento fascista de campo psi e campo político não é dialético, é mais um amálgama que elimina o espaço de atrito e movimento entre o pequeno e o grande, o singular e o plural, o pensamento e o ato, o povo e o líder, o subjetivo e o objetivo. O que Sollers propõe é que, ao contrário disso, apenas levando a dialética à sua radicalidade subjetivo-objetivo, é que seria possível dar continuidade ao que Reich buscou, mas de que também se afastou ao desmontar sua potência quando migrou para o que Sollers nomeia como um "substancialismo metafísico" (SOLLERS, 1974, p. 30), a teoria dos órgones. Ali Reich se afastou da psicanálise, mas tendo deixado uma contribuição de grande vulto; ao contrário de Alfred Adler, que também quis, em certo momento, associar psicanálise e socialismo para, em seguida, se afastar bastante da primeira e, em parte, do segundo. A contribuição de Adler, ao reduzir tudo ao protesto masculino, não permite pensar o fascismo como o fez Reich, e, de quebra, reduz a contribuição de Marx, desbotando sua teoria da luta de classes numa luta, no fundo, sempre do indivíduo (ADLER, 1956). 

Tal como outro conterrâneo interessado em articular marxismo e psicanálise - Louis Althusser (1965) -, Philippe Sollers se interessa mais é pela teoria de Jacques Lacan porque refonhece o esforço deste psicanalista, antes mesmo de Lacan fazer Marx entrar de modo explícito em seu ensino nos seus seminários de 1968-69 e 1969-70, por sustentar como eixos fundamentais de sua práxis, os seguintes dois pontos: i) A orientação de uma dialética subjetivo-objetivo, presente, ao menos, desde o que ficou conhecido como esquema L (LACAN, 1953-54), no qual Lacan demarca a diferença entre o eu narcísico, imagem objetalizada para o olhar do Outro e o sujeito como aquilo não capturado pela imagem que o Outro investe como destino de seu amor, mas que, ainda assim, insiste sob o efeito desta erotização, como desejante. Aqui encontraríamos terreno fértil para se pensar o modo como o fascismo só pode ser pensado nesta dialética eu/sujeito, olhar amoroso-desejante do Outro/erotismo desviante, sentido ofertado/nonsense, unicidade/parcialidade e ii) A localização da psicanálise como experiência a se dar no campo da linguagem, onde se situa a função da fala (LACAN, 1953) interessa Sollers porque ele reconhece na língua um terreno onde se travam batalhas históricas cruciais - sendo, aliás, ali, onde ele, como escritor, atua. 

Dentre as intervenções a respeito da comunicação de Sollers, realizadas no debate que a seguiu, destaco a de Julia Kristeva que, além de uma grande referência intelectual para os campos dos estudos literários e da psicanálise, era sua esposa e, talvez, pela intimidade com o pensamento do parceiro, foi capaz de destacar pontos cruciais do argumento dele. Para ela, naquele momento, a questão da linguagem citada ao final da comunicação de Sollers, é a questão-chave na luta contra o fascismo: o campo da linguagem é, por excelência, aquele em que subjetivo e objetivo dialetizam o tempo todo, como a noção lacaniana de sujeito dividido entre sujeito da enunciação e sujeito do enunciado sublinha (LACAN, 1964). Kristeva pontua que a linguagem é normativa, ou seja, ela necessariamente engaja o sujeito numa relação de poder e o fascismo poderia ser pensado como um retorno do recalcado não como lapso, sonho ou sintoma, mas como recodificação das práticas e da linguagem. Talvez um bom exemplo disso, hoje em dia, em tempos de fascismo brasileiro, seja o recurso legal adotado pela polícia carioca para matar a torto e a direito: o auto de resistência. 

Para a dupla Sollers e Kristeva, é preciso fazer o sujeito entrar na política como algo refletido, pensado e criticado para se desmontar o fascismo. Mas não o sujeito do pensamento idealista, o ser universal intocado pela história que encontramos já em Descartes (1637). Também não o sujeito burguês, o tal homem do humanismo novecentista, cheio de qualidades europeias e condição moral do imperialismo (que ainda é também o sujeito do marxismo revisionista). O sujeito que interessa é aquele criado, transformado, recriado e sempre remodelado na criação literária e na artística: a arte é o laboratório de subjetividades que se constituem em relação à materialidade do texto e é ela que parece servir de modelo ou modo de ligação da psicanálise e sua escuta do sujeito do inconsciente, não-todo capturado pelo poder, e o marxismo e sua ocupação de intervir nas relações de poder de modo a tornar possível a emancipação. É no trabalho, na elaboração deste sujeito em relação a si e em relação ao poder que seria possível, através da sua expressão, se tecer uma posição ético-política. 

Talvez tenhamos um bom exemplo disso no cenário literário-musical brasileiro: se a literatura e o discurso de esquerda desinteressado no sujeito parece encontrar seus limites de alcance na vida cultural brasileira, se o discurso e a prática da psicanálise de consultório universal-burguês idem, há pelo menos um artista brasileiro com incidência muito maior, de escala nacional, e cuja obra tem forte participação na construção do gosto, das simpatias e antipatias, do desenvolvimento dos espíritos crítico e político, ético e estéticos dos brasileiros, que moldou toda sua produção dialetizando o objetivo e o subjetivo. Me refiro a Chico Buarque de Hollanda. O subjetivo, fortemente influenciado pelo lirismo de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, mas também com forte sotaque rodrigueano e freudiano, se dialetiza com o objetivismo das condições históricas e materiais da civilização brasileira que ele encontra, com destaque para o discurso de denúncia de injustiças fortemente marcado pelo marxismo. Talvez sua mescla de subjetivismo e objetivismo já estivesse sendo gestada na representação histórica do brasileiro como homem cordial, promovida por seu pai, Sérgio, em Raízes do Brasil (1936); não sei. O importante é que a capacidade da obra de Chico de sensibilizar os brasileiros, de fazê-los pensar e criticar, é um bom exemplo de como o terreno literário-artístico é mesmo um campo mais importante, na luta contra o fascismo, do que o próprio marxismo e a psicanálise, ao menos enquanto estes se mantiverem alheios à dialética subjetivo-objetivo.

Chico Buarque de Hollanda e Lula

Não se trataria nem de fazer um freudo-marxismo, nem de submeter Freud e Marx à prática e teoria literárias. A intervenção de Sollers se esclarece, talvez, na proposta de que, de um lado, a psicanálise seja afetada pelo pensamento político que revela como a linguagem não é neutra, mas já recortada pelo poder, pela luta de classes - e acrescento eu: pelo racismo, pelo machismo e outros atavismos de nossa história e realidade simbólico-imaginária. E, de outro lado, fazer com que o marxismo dê lugar à subjetividade, aos afetos, às insistências sintomáticas, à compulsão à repetição, a divisão mesma do sujeito, como condicionantes da vida e, por extensão, do discurso e das práticas políticas. 

Agora creio poder fazer a proposta de 50 anos atrás se projetar sobre a realidade brasileira de 2024. Se o movimento dos psicanalistas de considerar o efeito da política sobre a linguagem, da história e seus traumas sobre o modo de articular palavras - e, por extensão , pensamentos - dos sujeitos em análise parece incipiente para alguns, é preciso também dizer que o movimento é muito maior do que há 30 anos atrás. As guerras de gueto entre os escolismos psicanalíticos brasileiros arrefeceram (FIGUEIREDO, 2023) e os psicanalistas têm tentado se articular transversalmente em diversos coletivos, grupos de estudo, cartéis, pesquisas universitárias etc. que façam aparecer a luta de classes, o colonialismo, o racismo, o machismo, a transfobia, o ocidentalismo dentre outros marcadores históricos das formas de subjetivação brasileiros como assuntos a se pensar e trabalhar, dentro e fora das formações de psicanalistas e de suas práticas clínicas. Por outro lado, fica a pergunta se o pensamento de esquerda sob influência marxista se abre para o problema do sujeito, tal como a psicanálise o pensa.

Ao menos dois grandes intelectuais, um estrangeiro e outro brasileiro, surgiram, de lá para cá, que consideraram pertinente a proposta de Sollers - se é que a conheceram. De qualquer modo, o esloveno Slavoj Žižek e o brasileiro Vladimir Safatle, que nascia no mesmo ano em que Sollers fazia sua comunicação, avançaram tanto o pensamento marxista quanto o psicanalítico ao trabalharem a partir da dialética subjetivo-objetivo e nos apresentaram instrumentos teóricos de esclarecimento do fascismo bastante pertinentes. Mas meu texto de hoje não é um texto sobre os intelectuais e sim uma tentativa de avaliar o governo Lula 3 até aqui. O governo Lula trabalha a partir desta dialética?

Julia Kristeva

Tendo em vista as informações que tenho do modo de proceder deste governo que se iniciou em 2023, parece que não. Após uma vitória magra nas eleições presidenciais e o surgimento de uma renovação do congresso nacional mais próxima à extrema-direita do que jamais aconteceu desde a criação de nossa constituição de 1988, Lula tinha um importante desafio político pela frente: se sua promessa, ao montar uma frente ampla pela democracia, era salvar o Estado democrático de direito do golpismo fascista, seu governo parece proceder de modo tímido quanto ao assunto. Aparentemente Lula tem apostado no desenvolvimento econômico - mais emprego, mais dinheiro no bolso do povo - como principal política inibitória do fascismo. Como se a prosperidade e a justiça econômica fossem suficientes para operar transformações ideológicas e subjetivas. Podemos ainda acrescentar como destaques do Lula 3 até aqui uma política externa que tenta reconstruir a destruição de laços com a justiça e o multilateralismo efetuada pelo presidente anterior, mas que pouco influi no jogo posicional dos brasileiros em relação ao fascismo doméstico, e uma atuação investigativa e/ou repressiva contra os articuladores da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, cujo efeito principal é o de inibir comportamentos, mais do que permitir a elaboração subjetiva do fascismo. Parece pouco. Talvez as eleições municipais deste ano me desmintam, veremos.

Parece que Lula não aprendeu com seus governos passados. Se Lula 1 e Lula 2 foram exitosos em fazer uma importante parte da classe baixa emergir para a classe média e uma parte da classe média baixa ascender à classe média strictu sensu, apostando no progresso ético e político como decorrentes do progresso econômico, sabemos também que já no início do governo Dilma Rousseff e, de modo agravado, em seguida, a derrocada destas classes ao estado anterior ou ainda pior fez se desenvolver, desde ao menos 2013, um discurso útil à aliança fascismo-neoliberalismo que se apresentou como força indiscutível no país. Parecia que aqueles governos do PT - Lula 1, 2 e Dilma - apostavam suas fichas em que os eleitores ficariam gratos pelas condições de possibilidade de desenvolvimento econômico aprimoradas naquelas gestões públicas, mas o que vimos foi a força de uma outra interpretação histórica, creio que condicionada pela incidência sedutora do fascismo e negligenciada - tal como sobreavisou Sollers - pela esquerda, que insistiu em desconsiderar a formação das subjetividades de modo mais complexo do que determinada pelas condições materiais da economia. Todos conhecemos a seguinte interpretação: o sujeito vê seu desenvolvimento econômico como mérito próprio, motivo de orgulho de sua vontade, competência e determinação, colocando para traz da coxia seja o governo, os contatos, a herança e a sorte; porém, este mesmo sujeito vê sua derrocada como causada pela "robalheira lá de cima", "se não fossem os tais políticos corruptos, 'eu, que me formei em engenharia, não estaria dirigindo Uber', 'eu que consegui adquirir minha casa própria com muito custo, não estaria desempregado'". Logo, a paixão narcísica pelo valor de si parece ter falado mais alto e a castração do sujeito foi vista como perigo externo e não marca constituinte de si: o esquema perverso-fascista se completou com a fetichização do líder de oposição, raivoso, sustentando discursos às vezes quase paranoides que defendem o narcisismo de sua dor de existir, de seu desamparo.

O que estou vendo até o momento é a repetição do modus operandi: Lula repete o mesmo acerto parcial. Suas políticas até aqui adotadas são fundamentais, mas este acerto parcial vira erro quando negligencia a força do fascismo, que não prospera só na pobreza, mas que tem grupos e instituições que viabilizam fantasmas organizadores dos afetos, do desejo, da existência, numa palavra, tratam-se de grupos que operam também - e talvez até principalmente - no campo da subjetividade e não exclusivamente da melhoria material. E não se trata somente de doutrinação de ideias, mas de gestão de afetos e defesas psíquicas, como a constituição de objetos fóbicos, fetiches, delírios paranoicos de grandeza e perseguição, ritos obsessivos de expiação de culpa, formações reativas, respostas maníacas - todo um repertório do qual os psicanalistas têm muito a dizer. Enquanto estes fantasmas e configurações defensivas não forem trabalhados, como já dizia Sollers, o fascismo não será trabalhado de dentro e, direi eu, prosperará. Mais dinheiro e mais emprego podem sempre ser significados de modos que destituem o governo Lula de seus méritos, como já se viu antes. 

Comentários

  1. Está cada vez mais difícil associar coerência com comportamento de sipostos lideres politicos

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