O susto e o estranho: comentário psicanalítico sobre A sagração da primavera
- IF YOU WANT TO READ THIS TEXT IN YOUR LANGUAGE, SEARCH FOR THE OPTION "Tradutor" (Translator) IN THE TOP LEFT OF THE SCREEN -
![]() |
Sagração (Deborah COLKER, 2024) |
Nos próximos dias, de 21 a 24 de março, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, a Companhia de dança de Deborah Colker apresentará a sua versão para o balé de A sagração da primavera (STRAVINSKI, 1913), composição musical revolucionária do russo Igor Stravinski, feita para ser apresentada conjuntamente ao balé desenvolvido especificamente para esta peça, cuja coreografia foi dirigida, originalmente por ninguém menos que Vaslav Nijinski. Infelizmente não consegui ingressos e não tenho ideia do que a maior coreógrafa brasileira, Colker, inventou desta vez com Sagração (2024). Ainda assim, creio que é possível, aqui, tecer alguns comentários a respeito da estética da obra original, seu lugar na história da música e da dança, e algumas reflexões psicanalíticas que ela me provoca.
O tema da música e do balé é o seguinte: em conjunto com o pintor, escultor, historiador e poeta conterrâneo Nikolai Rerich (anglicizado para Nicholas Roerich), o compositor russo Igor Stravinski decidiu se inspirar na tradição pagã russa, pré-cristã, para construir sua obra. Se a primavera remete ao momento do ciclo da vida em que a criação emerge como força diante da morte invernal (e nas condições extremas do típico inverno russo, o valor da primavera como vitória da vida se apresenta de modo ainda mais heróico), o fio condutor desta obra é a celebração da primavera como entidade e experiência sagradas dos pagãos - mas será que somente deles? -, através de ritos que indicam a veneração e o temor pelas forças cósmicas da vida e da morte, bem como a expressão da brutalidade do não tão dissociável campo do sagrado e do profano: o clímax de A sagração da primavera representa um momento em que os anciãos da comunidade representada escolhem uma jovem a ser sacrificada com a morte, num rito de celebração da vida, como uma dívida, como um preço a se pagar pela graça, pela dádiva que a Natureza concede à sociedade dos homens. Se a primavera é o momento de fazer nascer da Mãe Terra os frutos que alimentam os homens, estes últimos sacrificam uma jovem que ainda não é mãe, mas é fértil, como contrapartida: "se a Natureza nos dá os frutos de sua força vital, nós lhe retribuímos sacrificando uma vida e Lhe dando para comê-la de volta". No entanto, tais ritos, que podem, a partir dos enunciados precedentes, serem compreendidos como um fenômeno de troca e, portanto, utilitarista, sob uma chave interpretativa liberal, semelhante àquela que saiu da pena de John Locke (1689-90), como o estabelecimento da paz e da ordem a partir da instituição basal do comércio, não podem de modo algum se resumirem à pacífica troca em A sagração da primavera.
Digo isso porque o rito e o sacrifício expressos na forma da dança e da música modernas de Nijinski e Stravinski são apresentados como experiências que beiram o irracional ou cuja racionalidade não é a da troca, mas, tal como Georges Bataille desenvolveu em sua obra provocativa, em particular em A parte maldita (1949) e O erotismo (1957), anos depois, se trataria de uma racionalidade do excesso. Poder-se-ia dizer de quem está sendo sacrificado e de quem sacrifica, no balé em questão (o que aliás se desdobra nas relações autor-executor e executor-público), o mesmo que Jacques Lacan disse da estátua O êxtase de Santa Teresa de Ávila, esculpida por Gian-Lorenzo Bernini (LACAN, 1972-73, BERNINI, 1647-52): 'Como não ver que estão gozando?'. A economia do excesso, da transgressão e do sagrado desenvolvida por Bataille dá bem mais conta de cernir a experiência estética de A sagração da primavera. Trata-se de produção de gozo, não de apaziguamento - e sabemos como - mesmo com diferenças - o pensamento de Bataille terá efeito sobre a renomeação que Lacan dará ao famoso objeto a, em seu O Seminário livro 16: de um Outro ao outro (LACAN, 1968-69): de a causa do desejo, para outra definição a partir da qual tal invenção do psicanalista passará a também ser compreendida e ajudará a pensar o gozo nas economias psíquica e cultural modernas; como um mais-de-gozar que as movimenta.
![]() |
Georges Bataille |
Para tratar da economia do excesso, no entanto, Bataille não busca defini-la como um fenômeno moderno; ao contrário, para ele se trata de algo que existe há muito tempo e que o homem moderno não quer ver. Bataille a remete a uma figura do primitivo à qual as experiências do sagrado e do profano estão relacionadas, semelhante àquela que aparece em Stravinski. Este primitivo diria respeito, para eles, não tanto ao moderno e bem mais àquilo que não queremos ver, que concerne a nós modernos, mas que está lá, ainda, mesmo assim. O balé de Stravinski-Nijinski, portanto, ao mesmo tempo em que se interessa pelo primitivo, não o idealiza ao modo de um Jean-Jacques Rousseau (1775), nem o inferioriza ou repudia, ao modo do colonialismo europeu eugenista da Bèlle Époque; ele o apresenta como brutal, mas também como uma fonte inspiradora seja de novas experiências estéticas modernas, como uma espécie de revelação de uma verdade profunda que habita o homem moderno e da qual ele nada quer saber oportunizando um momento crítico; no caso de A sagração da primavera, o machismo, a ordem patriarcal e o sacrifício mortal das mulheres para que os homens se sintam apaziguados em sua condição, por um lado, e os excessos excitatórios que os movem e alimentam tanto seu erotismo quanto sua violência, bem como seus ritos, por outro.
Neste sentido, já se destaca um primeiro fator para chamarmos a obra de revolucionária: ela incide na cultura eurocêntrica como uma crítica cortante, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, prevendo-a de algum modo no que diz respeito à irrupção de um excesso assassino ali onde se crê que ele estava superado. Ela sublinha como o caldo de cultura onde se estabeleceu o cristianismo e a modernidade é muito mais grosso que o verniz que os dois representam. Como Norbert Elias (1939) ou Adorno & Horckheimer (1944) desenvolverão mais tarde, a civilização não é algo que elimina a barbárie. Não se tratam de opostos como água e óleo, mas, ao contrário - tal distinção é problemática: tanto a barbárie continua na civilização quanto também é verdade que naquilo onde só se via barbárie há processos civilizatórios. De certo modo, ao menos dois outros gênios daquela época, além de Stravinski, já intervinham com obras que apontavam para a mesma revisão a respeito da diferença entre primitivo e moderno, barbárie e civilização. Um deles, como Stravinski, era um artista, mas nesse caso, artista plástico, o maior daquele século: o ainda jovem Pablo Picasso. A arte tribal africana e a arte pagã mediterrânea são revisitadas e apropriadas pelo artista espanhol, exercendo uma função em sua estética cubista análoga àquela do paganismo na música de Stravinski e na dança desenvolvida por Nijinski para A sagração da primavera.
Em Picasso não se trata de impor os valores ocidentais cristãos e modernos aos povos que não o são, mas o contrário. Trata-se de restabelecer as invasões bárbaras no campo estético e evidenciar que ou nunca deixamos de gostar (e de gozar), de nos interessar por aquilo que a educação moderna nos disse que era ultrapassado ou incivilizado e ruim, de mau gosto, como podemos muito bem encontrar valor, sabor e saber naquilo que o discurso oficial insiste em considerar defeituoso, primitivo, incipiente, pouco elaborado. Com Picasso, pela primeira vez, a arte dos negros ganha, entre brancos, um estatuto de sofisticada - abrindo caminho, por exemplo, para a recepção, entre brancos, do samba e do jazz como música de qualidade.
![]() |
Cabeça de mulher (Pablo PICASSO, 1907) |
O outro gênio é, obviamente, Freud. Em 1913 e, assim, ao mesmo tempo em que era encenada pela primeira vez A sagração da primavera, o psicanalista terminava e lançava um ensaio já parcialmente tornado público em 1912, Totem e tabu. Neste trabalho, podemos encontrar a hipótese de uma cena horrorosa, bárbara, que está na base da constituição da civilização e que, por trás de todo verniz civilizatório seria a condição estruturante desta mesma civilização. É a primeira dentre outras versões da acepção freudiana de que não é possível fazer uma separação entre barbárie e civilização como uma ultrapassagem, uma dominação, o alcance de um patamar perene. Em Freud, a civilização é um modo de lidar, mas também de preservar a barbárie que há em cada um de nós bem mais do que um outro da barbárie. Modo análogo ao de sua teorização das relações entre os princípios do prazer e da realidade: não são opostos, o segundo é um modo de fazer o primeiro continuar a funcionar (id., 1911).
No caso de Totem e tabu, a barbárie aparece no assassinato do próprio pai pelos filhos, seguido de um banquete canibalístico, o qual, por sua vez, é seguido pelo remorso dos irmãos. É este remorso, mesmo que ou talvez porque aquele pai gozava do corpo de todos, que restabeleceria a vontade feroz desta figura que ficou conhecida entre os psicanalistas como o pai da horda primeva, agora, depois de morta, transmutada em lei.
Tal lei, que faria nascer a civilização, seria aquela da interdição da tomada da mãe e das irmãs como objeto de gozo, bem como condenaria o parricídio e o canibalismo. Com isso, Freud indicaria que a lei civilizatória é a repetição de duas violências bárbaras: a do assassinato do pai, ou seja, o reconhecimento de que o pai está morto pelo ódio dos filhos e, ao mesmo tempo, a continuidade do gozo deste pai no próprio assujeitamento dos filhos à sua lei. Uma cultura calcada na violência, uma paz estabelecida sob bases violentas que subentende, na repetição da violência de nossa civilização, que tal ato inaugural jamais foi superado, elaborado, esvaziado de afeto. Sua repetição contínua, seja na experiência coletiva, seja no supereu (id, 1923), indica que os tempos bárbaros continuam na civilização. Não é isso o que Freud tentou mostrar ao reconhecer o Complexo de Édipo, no qual os desejos incestuosos e parricidas se entrecruzam na triangulação familiar, como estruturante da subjetividade moderna? Não é esse gozo endogâmico e mortífero que é encenado ao fim de A sagração da primavera, dos homens sobre a mulher-mãe-irmã da comunidade, gozo que está barbaramente no cerne de nossa cultura?
A Primeira Guerra Mundial veio consagrar Picasso, Freud e Stravinski (e Nietzsche, que veio antes deles, e quem, com suas figuras-noções conflitantes, inerentes às origens da civilização europeia, de Apolo e Dionísio já orientava os movimentos críticos por vir [1872]). A violência não foi superada, apenas estava canalizada para alguns lugares específicos ou mais distantes: por exemplo, contra as colônias, através do imperialismo (ARENDT, 1951). Na Primeira Guerra, a violência do Atlântico Norte se dobrou sobre si mesma, desmontando a insistência da civilização branca de se ver somente apolínea, cristã, progressiva e moderna, para ter de reconhecer em si o dionisíaco, o pagão, o atávico e o que a modernidade não queria ver, mesmo a modernidade psicanalítica: só a partir daí Freud passou a aceitar a hipótese de uma pulsão de morte, previamente esboçada por Alfred Adler (NUNBERG, 1906-08). A pulsão de morte, que pode se desdobrar em destruição talvez não tenha mesmo nada a ver com ganhos civilizatórios utilitários, nem mesmo com a vingança contra o pai ou sua lei, ela é, a partir de Além do princípio do prazer (FREUD, 1920), puramente destrutiva, inclusive e primeiramente, do próprio corpo, ela concerne ao que é brutalmente fora do campo do sentido, ela indica, bem mais do que a excitação sexual, o excesso mesmo de gozo do qual nenhum processo civilizatório se livrou.
A ferida narcísica do homem branco ocidental provocada por sua vergonhosa Primeira Guerra Mundial deveria ter sido suficiente: o colonizado - preto, indígena, oriental - não lhe é inferior; aquilo que ele chamava de seu passado primitivo, sua história esquecida, supostamente superada, retornava em ato (a história não é mais uma vitória do hoje sobre o ontem, mas a produção do hoje pelo ontem, como mais tarde a genealogia de Foucault tentará mostrar [1971]); aquilo que ele chamava de mulher só era inferior por efeito de sua dominação machista, por seu erotismo o qual ele próprio não domina por temer seu desejo que revela sua divisão psíquica, como Freud já acusava em seus textos sobre a psicologia do amor (FREUD, 1910, 1912 e 1918 [1917]). Aquilo que o homem branco ocidental chamava de paz nada mais era do que o uso da violência em certos grupos ou regiões do mundo; aquilo que ele chamava de progresso, nada mais era do que dominação. Mas sabemos que tal ferida narcísica não foi deixada aberta, a elaboração não se fez e no entre guerras a ela foi oferecida a sutura delirante do nazi-fascismo. Mais recentemente ela foi reaberta - e novamente a dor é tamanha que a "besta loira" (NIETZSCHE, 1886) já encontra modos de escondê-la de novo.
Mas A sagração da primavera é revolucionária também em termos estritamente estéticos, nos campos da música e da dança. A aproximação com Picasso reaparece quando se toma o aspecto estético-formal da composição musical. A sagração da primavera é, de certo modo, uma composição cubista musical, no sentido de que ela oferece uma sensorialidade múltipla, complexa, de diversas perspectivas simultâneas da experiência musical, tendo por efeito final a marca da descontinuidade e do desmembramento - o que alude, em forma, ao gozo do assassinato final da jovem virgem. Escuta-se concomitâncias de ritmos complexos e diferentes, executados por diferentes instrumentos que dialogam com seu contrário: os ostinattos que incidem aqui e acolá na composição. Nem sempre estas concomitâncias são harmoniosas, às vezes elas são desencontradas. Esse desacerto se escuta também nas dissonâncias. Não só os intervalos tensos proliferam, os ritmos variam de modo agudo e também o andamento, o qual, tal como o volume da execução oscila de modo abrupto inúmeras vezes, provocando no público aquele efeito que tanto interessava aos modernistas: o choque, o susto. Mistura-se a isso a sensualidade de fragmentos melódicos russos, bem como a escolha sedutora de certos instrumentos, como, por exemplo, no início, o oboé, cujo timbre e melodia tocada propositadamente livre insinuam, ao mesmo tempo, tranquilidade, graciosidade e a sensação de que algo estranho paira no ar - como diria Freud, há uma relação íntima entre o familiar e o estranho (FREUD, 1919).
![]() |
Igor Stravinski |
Estas duas situações estéticas - do susto e do estranho - são objetos da reflexão freudiana. Cada uma remetendo a algo da ordem do inconsciente. Enquanto o ensaio "O estranho", mesmo que abrindo portas para outras reflexões, pesa a mão sobre uma estética psicanalítica clássica, compreendendo a sensação de estranheza não como um encontro com o puramente diferente, mas, muito pelo contrário, um retorno do material recalcado, daquilo que nos habita e do qual nada queremos saber conscientemente e, no entanto, desejamos. Já o susto toca no inconsciente atroz e silencioso da pulsão de morte. Ele é melhor elaborado a partir de 1920 e indicaria - ele sim - a surpresa absoluta, a incapacidade de encontrar no próprio repertório simbólico condições de interpretar e dar sentido à experiência afetiva que não desejamos. O susto é o afeto que indica que houve um trauma. Que o excesso excitatório da experiência não foi dominado; que, ao contrário, será preciso realizar um trabalho de elaboração para se ampliar o campo simbólico e estético do sujeito e/ou do público. A provocação gerando choque e susto nas artes de vanguarda era buscada justamente por este efeito: gerar no público, ao mesmo tempo, desconforto por se ver criticado em seus valores e abertura a reordenar seu mapeamento valorativo da realidade. Estas vanguardas do início do século XX - com destaque para o surrealismo ou para as obras literárias de Stefan Zweig e Thomas Mann - encontraram na psicanálise uma disciplina que os estimulava a jogar com esta estética que se poderia chamar verdadeiramente de revolucionária (tal como a própria psicanálise): lançar o outro numa experiência em que ele precisaria reconfigurar seu campo simbólico-interpretativo para dar conta das afecções que o acometem seria fazer uma revolução subjetiva ora operando o estranho do desvelamento do recalcado, ora operando o susto do que não cabe no arsenal representacional estabelecido.
Tratemos agora da coreografia. Antes de tudo, é preciso dizer que a Companhia de Deborah Colker completa 30 anos de existência e a encenação de A sagração da primavera é o modo escolhido, pela mesma, de celebrar este aniversário. Talvez isso se deva, por um lado, pelo fato de que dançar A sagração da primavera significa entrar num rol bastante prestigioso de artistas que ousaram coreografar e dançar obra tão desafiadora por conta de todo o problema rítmico que ela impõe a quem a dança: lembremos que Stravinski misturou andamentos e divisões rítmicas extremamente complexas. Menciono dois grandes nomes, no campo da dança moderna, que fizeram história com a peça musical de Stravinski. A começar pelo próprio Nijinski, o primeiro coreógrafo da obra, de quem já escrevi neste blog, o inventor do balé moderno. O que se se sabe da coreografia de Nijinski para esta peça é pouco; a documentação é incipiente, mas o que as poucas fotos e relatos de jornal informam é que o bailarino russo, num diálogo com a música, acentuou os movimentos bruscos do ar ao chão, denotando violência - e, na parte final, no momento sacrificial - a dança se assemelhou bastante às contorções histéricas tratadas pelos psicanalistas a ponto de, na estreia, alguém do público ter gritado, raivosa ou ingenuamente - sabe-se lá - pedindo que um médico acudisse os bailarinos. Nijinski destituiu o balé da pureza formal clássica e lhe impôs o erotismo e a violência à flor da pele como uma espécie de retorno do recalcado da dança, tal como a conversão histérica fez, antes, com o corpo feminino (NUNES, 2000), numa representação que delineia muito bem a questão histérica, tal como Lacan a apreendeu (LACAN, 1969-70). A histérica seria, para além da sintomatologia corporal, aquela que, num movimento duplo, presente em sua queixa, denuncia a violência do poder patriarcal sobre seu corpo mas, ao mesmo tempo, demanda dele um domínio fálico sobre seu gozo. Parece ser também o movimento da jovem na cena de sacrifício dançada: enquanto goza dançando, se submete ao sacrifício ordenado pelos homens anciãos; ela morre numa opulência de gozo, onde é difícil depreender com clareza com o que goza: com o assujeitamento ao poder masculino ou com o fato de que ainda goza apesar do assujeitamento do poder masculino?
Retomando a história das encenações coreografadas da obra de Stravinski em questão, vale citar ao menos uma outra. A construída pela magistral Pina Bausch, em 1975, da qual uma parte pode ser vista no filme Pina (WENDERS, 2011). Novamente os excessos de erotismo e violência são o mote do repertório gestual, dessa vez culminando numa cena final de linchamento coletivo que funciona como alusão a uma história ainda não prevista por Nijinski, mas que já marca a da alemã Bausch, nascida em 1940: o nazismo como fenômeno de massa. A experiência nazi-fascista trouxe, de modo diferente da Primeira Guerra Mundial, uma outra perspectiva a respeito de como a barbárie continua na civilização. A barbárie não continua apenas nas alcovas da subjetividade individual, recalcada ou escondida; não existe apenas na operação imperialista diante de povos distantes, nem apenas num excesso nunca dominado, que resta pulsando. Ela aparece também no cerne da experiência cultural moderna: a massa. Os fenômenos de massa do fascismo e do nazismo exprimiam um furor coletivo e destrutivo direcionado aos subjugados e marginalizados pelo poder; evidenciavam como a alguns se facultava gozar do corpo dos outros de modo aterrador e autorizado coletivamente. Se o nazismo culminou na eliminação dos 'párias' de modo industrial, ele não começou assim. Em seu início, as S.A., grupo paramilitar do movimento nazista, estimulavam e praticavam linchamentos e humilhações públicas. Foi a ascensão das S.S. que fez se desenvolver o modo asséptico de assassinato de loucos, deficientes físicos, comunistas, judeus, homossexuais, ciganos etc. O fascismo italiano nunca abandonou a truculência dos linchamentos, por sua vez.
O grande cineasta Fritz Lang, ao fugir para os E.U.A., num período anterior à industrialização do assassinato na Alemanha, tentou denunciar o fenômeno nazifascista do linchamento coletivo, da massa, em seu Fúria (1936), prevendo o que se intensificaria. Bausch o retoma e encena A sagração da primavera lembrando aos alemães o que aconteceu e que perdura como fantasma na Alemanha até hoje - e alhures. Porém, ultrapassando o problema do antissemitismo, ao encher o palco de bailarinos negros, Pina Bausch toca em um tipo de racismo que nós, brasileiros, conhecemos mais de perto. Ao fazer isso, ao mesmo tempo em que a coreógrafa dá um passo mais à frente do de Nijinski, ela dá as mãos ao gesto de Picasso de abrir-se ao negro como o elemento transformador do branco ao se misturarem os dois.
O que se pode depreender de tudo isso é que há três modos de lidar com o que há de 'primitivo' em nós:
1) o tipicamente moderno - recalcá-lo. Em nome de valores estabelecidos como transformadores da sociedade para um progresso, para uma melhoria, decide-se que é preciso eliminar - ao menos do campo de vista - tudo que os refutaria. Mas o recalcado retorna, nos ensinou a arte de vanguarda e, evidentemente, nos ensinou Freud (1915) - e esse retorno não é agradável, é descontrolado e incomoda, desconcerta.
2) reconhecer que ele existe tentando amalgamá-lo ao moderno: é o modo fascista por excelência. Nesta maneira de proceder, cria-se uma junção entre o moderno e o primitivo de modo a justificar a incidência do primitivo no moderno como liberação da hipocrisia civilizatória, mas que de fato é utilizada para fazer certo grupo reforçar sua dominação criticada pelo discurso moderno, justificando valores pré-modernos.
3) reconhecer que ele existe, extraindo dele material a ser cotejado, criticado, remodelado em face dos valores modernos, de modo que os modernos abandonem sua hipocrisia e reconheçam seja a diversidade que insistem em esconder, seja a violência que sustentam à revelia de sua imagem, bem como, se lancem a lidar com o magma primitivo que insiste. Esse é o modo de proceder da psicanálise e da arte de vanguarda modernista da primeira parte do século XX, da qual A sagração da primavera é uma das mais significativas obras.
![]() |
A sagração da primavera (Pina BAUSCH, 1975) |
O cenário cultural brasileiro de hoje oferece a Deborah Colker a possibilidade de utilizar a obra de Stravinski para intervenções e discussões semelhantes àquelas de Nijinski e Pina Bausch. Veremos o que ela, Colker, que, junto de Fernanda Montenegro, forma a dupla das maiores mulheres artistas brasileiras em atividade, fará.
Bem, espero saber o que ela terá feito a partir dos comentários de alguém que terá assistido à sua apresentação. Pelo que li na imprensa, Colker tem, de fato, uma perspectiva preocupada com as discussões que tentei esboçar neste texto, pois montou sua coreografia inspirada nos povos originários brasileiros, podendo desencadear, para o homem branco que se julga europeizado e civilizado, efeitos interessantes, na medida em que este último, apesar de perpretar dois traumas àqueles povos - nas palavras de Claude Lévi-Strauss em seu Saudades do Brasil (1994) -, o do genocídio e o da imposição de sua cultura, não quer saber nada sobre isso. Outra intervenção de Colker é, pelo que li, sobre a própria música de Stravinski que, se em 1913, causava susto ao gosto clássico, hoje assusta porque ganhou o adjetivo de clássica. Assim, Colker fez, bem no espírito cubista da origem da obra, uma bricolagem na qual se escuta, além da reprodução da execução da peça musical de Stravinski conduzida por Herbert von Karajan, excertos de samba e da música de alguns povos originários, restabelecendo, talvez, o choque que a primeira obra buscou.
Causa susto? Ou será que é o estranho retorno do recalcado de nossa história?
![]() |
Deborah Colker |
Comentários
Postar um comentário