100 anos de masoquismo primário

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Há 100 anos Freud publicava o artigo "O problema econômico do masoquismo" (FREUD, 1924), texto importante na reformulação teórica da clínica psicanalítica desencadeada pela observação de que repetimos compulsivamente experiências de desprazer. Esta constatação levou Freud a considerar a possibilidade de haver uma pulsão de morte, em Além do princípio do prazer (id., 1920). O artigo de 1924 dá prosseguimento às reconfigurações conceituais iniciadas quatro anos antes, naquele trabalho, mas demarca mais um passo fundamental. Meu interesse hoje é demonstrar a potência deste texto psicanalítico para pensarmos a experiência político-cultural atual.

Ano passado tentei demonstrar como o livro de Freud que fazia seu centenário naquele ano trouxe uma complexidade à concepção de aparelho psíquico não antes ensaiada. Me refiro a O eu e o isso (id., 1923), que hoje é um clássico do autor e da psicanálise. Um texto incontornável para qualquer psicanalista. Comparado a ele, o artigo sobre o masoquismo é uma obra menor, o que se evidencia, aliás, no fato de que é desconsiderado ou mesmo ignorado por muitos psicanalistas, diferente do primeiro. Ainda assim, creio que há neste texto tomado como menor pontuações fundamentais que vale a pena sinalizar.

A começar, "O problema econômico do masoquismo" retifica de uma vez por todas a teoria apresentada em Além do princípio do prazer. Ao contrário da tendência de diversos cursos de graduação em psicologia espalhados pelo país - incluindo aquele no qual dou aulas, o da Universidade Federal Fluminense (UFF), de Rio das Ostras -, de ensinar a teoria psicanalítica como um sistema psicológico, todo conceito teórico no campo psicanalítico, desde Freud, e na sua obra de modo explícito, sempre foi um modo de organizar o pensamento a respeito da clínica e da técnica psicanalíticas; somente isso ou, talvez, tudo isso. Mas a cada vez que a experiência clínica impôs uma revisão da teoria porque o observado e escutado não se apresentava conforme à teoria, mudou-se a teoria e, às vezes, a técnica também. Em Freud, a teoria da psicanálise não é jamais uma cama de Procusto. Todos os avanços das teorias psicanalíticas e de suas diversas vertentes se fundaram em percepções clínicas diferentes, tendo em vista experimentos técnicos e/ou diferentes subjetividades que ali apareciam para fazer análise. A retificação da teoria presente no artigo de 1924 é apenas uma dentre diversas que se pode ler nos textos freudianos - neste caso, efeito de um acúmulo de experiências consideráveis, mas entre as quais se destacam a clínica das experiências traumáticas, a reação terapêutica negativa e e a revelação de fantasias sexuais de assujeitamento humilhado ao outro. Vejamos do que o artigo trata.

Madonna Litta (Leonardo DA VINCI, 1490) 

Em 1920 Freud supunha que a pulsão de morte, a pulsão de morrer, pura excitação desligada de representação ideativa, ao buscar descarga, estava, em última instância, sob a vigência do princípio do prazer. O que estaria além do princípio do prazer seria a compulsão à repetição como esforço psíquico para dominar eventos traumáticos. No entanto, já no início do trabalho de 1924, Freud reconfigura sua teoria. O princípio do prazer, a partir deste artigo, continua a ser o princípio regulador das pulsões de vida, mas não das de morte. Ou seja, nossa tendência a buscar prazer e evitar desprazer está intimamente ligada ao impulso por fazer ou preservar laços, por nos ligar ou manter ligados a objetos de investimento libidinal (desde os objetos do mundo externo, passando pelas representações mentais e por nosso próprio eu); com isso, Freud organiza seu pensamento de modo a mostrar que o prazer só é experimentado numa relação com algum objeto/representação; não há prazer sem vínculo. O princípio do prazer não significa mais uma tendência à descarga, mas sim uma tendência de evitar o afeto do desprazer e de repetir o afeto do prazer. Prazer e desprazer não necessariamente podem ser mais resumidos ao binômio descarga/acúmulo de excitação; tratam mais da qualidade da experiência do que da gestão das quantidades. 

O desejo, conceito pivô de toda a experiência psicanalítica, é sempre definido por Freud como o movimento por reencontrar um objeto perdido (id., 1900). Deste modo, uma vez que remete ao vínculo com o objeto, o desejo se declina na esfera do princípio do prazer, do erotismo, da pulsão de vida, mesmo que, em última instância, o objeto esteja perdido desde sempre, o que faz do desejo um desejo de sempre outra coisa, só podendo ser saciado, de fato, na morte, o que o articularia também com um além do princípio do prazer (LACAN, 1957-58, 1958-59,1959-60). É preciso ainda dizer que o desejo se sustenta na fantasia, pois ela torna possível inserir o sujeito num certo circuito de modos de se relacionar com os objetos, de maneira a mantê-los numa distância suficiente para que ele continue a buscá-los, sustentando-o porque insatisfeito.

Esta reconfiguração teórica teve ainda outro efeito importante: a pulsão de morte não é mais pensada a partir do princípio do prazer, mas sim do que Freud chama, a partir da teoria de outra psicanalista, Barbara Low (LOW, 1920), de princípio do Nirvana. O princípio do Nirvana, segundo Freud, designaria a tendência a reduzir a excitação psíquica a um nível zero, ou seja: descarga total, satisfação pulsional integral, morte. A tendência a descarregar excitações, portanto, agora, designaria os efeitos do incômodo psíquico gerado pelas excitações desvinculadas (a pulsão de morte) que, se não encontram nenhuma descarga, tornariam o aparelho psíquico saturado, o sujeito angustiado, a existência insuportável. A descarga da pulsão não mais deve ser considerada sempre como prazer - é a ela que Lacan vinculará um termo alternativo, que justamente remeterá à pulsão de morte e ao que está além do princípio do prazer: o gozo (LACAN, 1963).

Chupando o polegar (Nina Marie PARK, 2015)

A ligação aos objetos própria da pulsão sexual (de vida), o erotismo, desde Três ensaios sobre a sexualidade (id., 1905), é considerada por Freud como um efeito da intervenção de um outro humano que, por sua vez, investe o corpo do bebê com sua libido. A imagem paradigmática é aquela da mãe oferecendo seu seio para nutrir o bebê, porém seu seio não significa nem para si mesma apenas um órgão para nutrir bebês; ela mesma tem seu seio como zona erógena, como órgão de volúpia. Dar o seio ao bebê é um bom exemplo de como a pulsão sexual do bebê se inscreve em seu corpo como efeito do investimento sobredeterminado do outro, do qual o bebê nada ou pouco compreende, mas mesmo assim se abre para o enigma do campo do sentido e da significação. Para a mãe 'o seio é órgão erótico e nutriz', 'o bebê tem de sobreviver', 'é prazeroso cuidar do bebê', 'é uma obrigação moral da mãe dar de mamar', 'a boca do bebê excita o mamilo' etc.; tudo isso afeta o bebê junto do leite e do mamilo quente.

Caso não se vincule as excitações aos objetos, morrer se torna uma solução para a brutal incapacidade de lidar com o traumático da excitação pulsional (de morte). É nesse sentido que Freud nos apresenta o que foi hipótese, agora, de modo mais assertivo: há sim um masoquismo primário que fundamenta a continuidade de nossa existência, apesar do desamparo insuportável gerado pela prevalência inicial da pulsão de morte em relação à pulsão de vida. É o investimento do outro humano o que tende a balancear as coisas, 'injetando' erotismo na criança e, assim, fazendo-a continuar a viver, mas o efeito deste investimento do outro é duplo: ele excita o corpo e, ao mesmo tempo, oferece a ele a possibilidade de vinculá-lo a um objeto. Pulsão de morte e pulsão de vida incidem no corpo do bebê. 

Novamente, de certo modo, este movimento estava já descrito nos já mencionados Três ensaios, onde Freud reconhece o investimento do outro no corpo do bebê como condição de emergência de um autoerotismo. Depois que uma parte do corpo é excitada pelo outro humano, ela se torna uma zona erógena, fonte da excitação, demandando descarga para uma pressão constante, a força pulsional. Como o objeto externo que excitou a região do corpo nem sempre comparece para abrandar essa pressão, o próprio corpo é tomado como objeto a ser utilizado pela pulsão, defensivamente diante da falta de controle sobre o mundo externo. É assim que se instauraria o autoerotismo, como por exemplo a substituição do seio pelo dedo como objeto a se chupar. Pois bem, a hipótese de um masoquismo primário traz luz sobre o fenômeno do autoerotismo da seguinte maneira:

A ilustração, do sonho que lhe deu a alcunha de 'Homem dos lobos', feita pelo próprio (Sergei PANKEJEFF, 1915)

O investimento do outro sobre o corpo do bebê evidencia a ação das duas pulsões, de vida e de morte, por parte deste outro quanto por parte do bebê. O outro visa descarregar suas excitações tomando o bebê como objeto ao mesmo tempo em que busca estabelecer vínculo de amor com ele, por um lado. Por outro, o bebê recebe o seio - para permanecermos no exemplo -, ao mesmo tempo como algo de excessivo, fora de seu controle, traumático, sem sentido e também como algo de que pode fazer uso, ao se vincular a ele, para descarregar a excitação causada pelo encontro.

Deste modo, a excitação desagradável (pulsão de morte) e a tendência à descarga (princípio do Nirvana) gerados pelo acontecimento oportunizam a possibilidade de se buscar no mesmo acontecimento um vínculo (pulsão de vida) e a extração de algum prazer (princípio do prazer). É disso que se trata no masoquismo primário: a primeira experiência, que poderia ser exclusivamente vivida como horrorosa e sentida como dor, é tornada também uma experiência de prazer no corpo e laço com o objeto ou sua representação investida no autoerotismo. O fiel da balança, o que faria a flutuação de somente dor para prazer e dor seria, no entanto, a qualidade da intervenção do outro, anterior ao momento autoerótico. Quando me refiro à 'qualidade da intervenção do outro', eu poderia daí fazer derivar uma teoria ferencziana a respeito das linguagens da ternura e da paixão (FERENCZI, 1933), uma teoria winnicottiana da mãe suficientemente boa  (WINNICOTT, 1973), uma teoria laplancheana da teoria da sedução generalizada (LAPLANCHE, 1970) ou uma teoria lacaniana do Outro como traumático (LACAN, 1968-69). Basta, no entanto, indicar que esta 'qualidade' remete a como se configura a subjetividade deste outro primordial (em geral a mãe), que fantasias o sustentam e que lugar dá ao bebê em sua fantasia, marcando assim que tipo de relação estabelece com ele.

O masoquismo originário indica um primeiro momento de fusão pulsional, um primeiro momento em que se imiscuem pulsão de vida e pulsão de morte. É esta mistura o que sustenta a vida como eterno conflito entre as pulsões, entre vínculos e rupturas, entre erotismo e horror, entre desejo e gozo. Se a descarga pulsional aquém ou além do princípio do prazer designa o campo do gozo, o desejo se declina na fusão pulsional, pois se ele remete a uma falta do objeto, também remete à tentativa de reencontro do mesmo. O desejo, como movimento entre os objetos/representações,  supõe, portanto, a ação das duas pulsões: vínculo, abandono e busca de um novo vínculo. 

Cena de O livro de Jó (William BLAKE, 1826)

É também por conta da fusão pulsional que costumamos encontrar prazer junto a descargas pulsionais e desprazer na intensificação da tensão; mas experiências como o prazer na excitação sexual, por um lado, e a descarga pulsional sem nenhum prazer do ataque epilético ou do surto psicótico, por outro, nos mostram que a nova teoria dá mais conta da experiência que a antiga. Não se trata mais de prazer = descarga e desprazer = tensão; tratam-se agora de duas buscas independentes, a de prazer e a de descarga, mas que a fusão pulsional, fundamental na constituição da vida psíquica, iniciada no masoquismo primário, torna interrelacionadas.

No texto freudiano, encontraremos outros dois tipos de masoquismo, além do primário ou erógeno: são eles o feminino e o moral. Ambos são secundários, não fundamentais na constituição psíquica; são tardios e podem não existir ou não ter nenhum destaque na realidade psíquica de determinados sujeitos, apesar de serem razoavelmente frequentes a ponto de configurarem tipos clínicos. Pode-se dizer que a abordagem do tema destes dois masoquismos é uma terceira etapa numa elaboração desenvolvida primeiramente na discussão teórica do conhecido caso clínico do 'Homem dos lobos' (FREUD, 1918 [1915]) e depois em "Bate-se numa criança" (id., 1919) a respeito das fantasias originárias e sua relação com uma posição masoquista diante do traumático, o que remete ao que Jean Laplanche chamou de traumatofilia (LAPLANCHE, 2002), mas sobre o que não me debruçarei hoje.

É como se Freud quisesse dizer que a partir do trauma se desenvolve um masoquismo erógeno, primário, mas este, por sua vez, num segundo tempo lógico, se declinaria na configuração de uma fantasia que tenta ordenar algum sentido mínimo para o tal evento traumático, uma primeira interpretação possível a respeito da posição que o sujeito ocupa em relação ao outro e a seu gozo. Esta interpretação pode ser masoquista: ocupar o lugar, na cena de violência, de alguém que quer se submeter a esta mesma agressão porque sentiria prazer com ela (masoquismo feminino) ou porque se sentiria culpado, justificando, assim, o mal causado pelo outro como punição merecida (masoquismo moral).

A cantora Madonna, nos tempos do álbum Erotica (1992)

O masoquismo chamado de feminino remete, deste modo, à típica tomada, em nossa cultura machista, da posição da mulher no ato sexual como uma posição apassivada - interpretação composta por significações construídas a partir da interpretação masculina da experiência -; não se trata de uma passividade de base, fundamental, diz respeito bem mais ao que se espera, tradicionalmente, da mulher na sua relação com o homem: uma escolha ativa de se apassivar a ele, a seu poder, a seu suposto falo, em nome do gozo sexual. Enquanto o homem se imporia no ato sexual, nossa tradição machista espera que a mulher desempenhe um papel submisso, que ela abandone o prazer ativo em nome de uma posição masoquista. Acontece que é perfeitamente possível que homens também ocupem este lugar na fantasia e no ato sexual, o de se submeter passivamente ao outro que performa uma falicidade, como por exemplo se vê na relação do sujeito conscientemente masoquista com sua dominatrix. 

Este masoquismo feminino é o masoquismo de que Freud já falava tanto nos Três ensaios como em "A pulsão e seus destinos" (FREUD,1915), seja em casos de perversão masoquista, como se pratica nos clubes de sadô-masô, seja em casos comuns de masoquismo neurótico, em parte imposto pela cultura (como em algumas vertentes dos monoteísmos judaico, cristão e muçulmano, mas também na cultura japonesa, em que se diz explicitamente que a mulher deve se submeter e se sacrificar por seu marido como a um senhor), em parte como estratégia de aposta em algum gozo possível diante da repressão à expressão do desejo.

Já o masoquismo moral é manifestamente dessexualizado, porque diz respeito a um erotismo inconsciente na lida com instâncias representativas de autoridades. Ele se ilustra bem na atitude de se humilhar, se condenar e se oferecer inconscientemente à agressão, seja do pai, do professor, do chefe ou de outras figuras de poder no mundo externo ou internalizadas. É razoavelmente comum em quadros neurótico-obsessivos, melancólicos e em quadros clínicos graves nos quais se percebe o fenômeno clínico da reação terapêutica negativa (esta última não se trata de uma resistência comum ao tratamento, mas da incidência de um sentimento inconsciente de culpa que agrava o quadro do paciente a cada vez em que se esperaria um alívio dos sintomas através do desrecalcamento). Este tipo de masoquismo indica que o sujeito ocupa um lugar preciso na relação com o outro e com o gozo. 

Fanny Pistor (a Vênus em peles) e Leopold von Sacher-Masock

Enquanto o masoquismo primário remete ao Outro primordial traumático e ao gozo que se produz neste encontro, o masoquismo feminino se desloca para o outro como parceiro sexual e para o gozo do ritual de dominação, enquanto o masoquista moral goza se humilhando e se oferecendo como objeto do açoite moral diante da autoridade internalizada do Outro parental, tornada  superegóica, derivada da dissolução do Complexo de Édipo

A bem da verdade, já no masoquismo feminino Freud reconhece a participação do sentimento de culpa. Adviria, diante do outro, a culpa do sujeito por sua masturbação infantil - portanto, por uma conquista de independência parcial em relação ao outro, através do autoerotismo. E seria por esta mesma razão, como parte da punição, que o sujeito manifestaria impotência sexual, a não ser que se submetesse ao ritual humilhante diante da dominatrix.

Ambos os masoquismos secundários estão ainda calcados nessa condição de base fundamental do masoquismo primário - é ainda dele que provém a condição fundamental de conjugar dor e Eros. Todavia, declinado em submissão escolhida pelo sujeito, conscientemente no masoquismo feminino, inconscientemente no masoquismo moral, o que no masoquismo erógeno aparecia como potência enriquecedora, condição de possibilidade de transformação subjetiva, de alargamento da experiência diante de uma alteridade não dominada, nestes outros masoquismos se torna enrijecimento subjetivo, estratégia de cercear a experiência de modo a não se ter nenhuma surpresa: o masoquista moral é o eterno culpado, o lixo humano em qualquer situação a priori; o masoquista feminino já domina ao mesmo tempo uma modalidade de gozo e a ação do outro delimitando-o seja como devoração, espancamento anal, castração fálica, ser copulado ou mesmo dar à luz um bebê - não importa, cada designação destas subentende uma cena a se repetir em diversos cenários, servindo de significação aplicável a diversos contextos. Nestas encenações, o masoquista feminino sabe como agir, seja com um jogo de sedução pantomimado onde finge passividade, seja com a fria prática do ritual e do contrato sadô-masô, tão enfatizada por Gilles Deleuze em sua leitura de A Vênus em peles (DELEUZE, 1967; SACHER-MASOCK, 1870). 

A Madalena arrependida (DONATELLO, 1433-35)

Repito: o denominador comum destes masoquismos é o aspecto erógeno fundamental do masoquismo primário, a capacidade de encontrar erotismo até na dor. O outro que me invade, que me machuca, que me causa dor, que me manipula, é também um objeto preferencial de meu erotismo. Esta é a base trágica de toda experiência enriquecedora da subjetividade, ao contrário, por exemplo, de uma assimilação homeostática, uma assimilação do mesmo, narcisista que prevalece em nossa cultura há algumas décadas (LASCH, 1979). Nem esta tendência homeostática e narcísica, nem as posições de masoquismo feminino ou moral sustentam a riqueza do encontro sempre perturbador com a alteridade que faz de nós sujeitos abertos à mudança. 

Uma experiência artística, cultural, política, intelectual ou o que seja só nos enriquece se, de algum modo, incomoda o aparelho psíquico e o força a remanejar sua economia libidinal e de significação de modo que ele agora tenha a tarefa de tentar encontrar algum prazer onde não há e produzir algum sentido onde não há ainda: esta é a base, em última instância, do que chamamos de pensar - e não é por acaso que no ano seguinte Freud escreveu "A negativa" (FREUD, 1925), exatamente tentando explicar o que é o nosso pensamento. 

Caso não haja abertura à experiência sem sentido e incômoda, caso o que se perceba não porte nenhum desconforto ou dor, se ele é absorvido 'facilmente' porque já está codificado como prazeroso e já comporte sentido compreensível, ele não muda o sujeito em nada. Não é esta a experiência das ditas bolhas na internet? Dos encontros pré-selecionados via Tinder? Não é essa a experiência da cultura de tolerância, que na verdade é uma cultura de aceitação do que não incomoda e afastamento do que incomoda (ŽIŽEK, 2004)? Que experiências culturais coletivas, hoje, possibilitam verdadeiramente este incômodo necessário para o aparelho psíquico funcionar e trabalhar, mais do que enferrujar? Esse contexto de empobrecimento da experiência tem efeitos políticos: a polaridade quase paranóica, sem nenhuma disposição a reconhecer humanidade no outro.

Cartaz de divulgação do single Venus in furs (VELVET UNDERGROUND, 1967)

Sobre este assunto, penso o mesmo que defendia há vinte anos (CATTAPAN, 2002): a arte ainda permite esta experiência de abertura. Não é isso o que fazemos ao ler livros, poesias, ver filmes, fotografias, quadros, esculturas, ouvir músicas que nos seduzem ao mesmo tempo em que, ou talvez exatamente porque causam incômodo nos ligando a eles de modo indelével e enigmático? Nossos mais marcantes encontros com obras de arte não têm o efeito de, ao mesmo tempo nos vincular ao objeto estético e abrir nossa subjetividade a uma excitação que nos impõe um trabalho de ressignificação, de elaboração da nossa experiência estética-subjetiva e moral?

Também vejo na própria psicanálise uma experiência que se funda na sustentação desta abertura, no caso, abertura a esta alteridade chamada de o inconsciente, nos recolocando diante do Outro de nossas fantasias fundamentais, como também da  alteridade mais radical do trauma a que elas respondem. E também na psicanálise o tempo de elaboração desta abertura tem seu lugar de destaque (FREUD, 1914). É por isso que este blog existe, aliás!





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