Em tempo: um alerta e uma justa celebração

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Antes do Natal chegar, infelizmente, ainda é tempo de más notícias - para o campo psicanalítico e, também, para a sociedade brasileira em geral, ao menos à parte dela que de algum modo se relaciona com o campo psicanalítico, dos curiosos, passando pelos interlocutores, chegando nos atuais e futuros pacientes ou analisantes, como queiram.

O Movimento Articulação, para quem não sabe, é um movimento organizado pelas 23 mais representativas instituições de psicanalistas do Brasil há mais de 20 anos. Foi criado como força política organizada para fazer frente, já há mais de 20 anos - repito -, contra as diversas tentativas de regulamentar a psicanálise, torná-la profissão, torná-la instrumento seja do poder estatal, das grandes corporações financeiras, da moral religiosa, do positivismo científico mais orientado para o que Jacques Lacan chamou de discurso universitário (1969-70) etc. Dentre os psicanalistas das instituições que compõem o Articulação há uma pluralidade significativa: há freudianos ortodoxos e não ortodoxos, ferenczianos, kleinianos, winnicottianos, lacanianos 'millerianos' e 'melmanianos', outros ligados à escola francesa não-lacaniana, há os pós-estruturalistas etc. Todos têm ao menos duas coisas em comum: 1) obviamente, a psicanálise como ofício e 2) o que nos importa mais aqui: todos, de acordo com toda a história da psicanálise em todo o planeta, que conta já 130 anos (se a contarmos desde a "Comunicação preliminar" de Freud e Breuer [1893]), se posicionam de forma veementemente contrária à regulamentação da psicanálise como profissão e, por conseguinte, também contra a formação do psicanalista num curso de graduação universitário.

No final de 2021, ao movimento psicanalítico brasileiro - hoje, um dos principais do mundo - chegou a notícia de que uma universidade particular no Paraná iniciava a oferta de um curso de graduação em psicanálise, ainda por cima através de Ensino à Distância (EAD). O movimento repudiou como pôde tal insensatez, construída de fora do campo psicanalítico, pois não há psicanalista que apoiaria tal instituição. Há, talvez, gente que faz uso da alcunha 'psicanalista', mas aí já se trata, talvez, quem sabe?, de um problema ético, moral ou mesmo criminal. O Movimento Articulação tem, desde então, tentado conversar seja com parlamentares seja com o Ministério da Educação (MEC) a respeito do assunto. O Movimento Articulação trouxe uma notícia lamentável neste fim de ano:

Publicações do Movimento Articulação; foto retirada do site da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)

Além da já mencionada universidade no Paraná, há ainda algumas outras que já oferecem cursos de graduação em psicanálise! Quatro em São Paulo, uma na Paraíba, uma no Rio Grande do Sul e mais quatro no Paraná! A maioria começou simultaneamente em fevereiro deste ano. Parece um movimento organizado. 

É uma situação extremamente grave. Os psicanalistas têm de se posicionar, falar aos quatro cantos do país, falar na grande mídia o que pensam sobre este movimento organizado de fora do campo psicanalítico cujos efeitos podem ser o de suplantá-lo por um engodo. No que diz respeito à tentativa recente de Natália Pasternak e seu esposo Carlos Orsi de degradar a psicanálise à categoria de pseudociência, os psicanalistas souberam se organizar brilhantemente e ocupar importantes espaços na grande mídia para rebater os fracos argumentos neopositivistas do casal, de modo que, como se diz, os dois ficaram 'mal na fita'. É hora de fazer o mesmo a respeito destas tentativas mercadológicas - e, às vezes, intimamente ligadas a certos grupos religiosos, que querem funcionar nas brechas da lei - para fazer valer uma ética e uma relação de poder que nada têm a ver com a psicanálise. Por exemplo: o exercício da cura gay. Outro exemplo: a atribuição de notas e avaliações através de pontos ao desempenho do psicanalista em formação. Mais um exemplo: a adoção do diploma como garantia de saber.

Anna Freud 

Se nada for feito para barrar estas graduações em psicanálise, em breve os indivíduos graduados pleitearão também uma regulamentação da profissão, se organizarão em conselhos e teremos criado condições factíveis para a morte da psicanálise no Brasil. Será o último passo em direção à morte da psicanálise, mas alguns passos foram dados até mesmo de dentro do movimento psicanalítico, é preciso reconhecer, mesmo que ele tenha se retificado diversas vezes quanto a esses passos em falso - que como todo ato falho revelam um acerto e não um erro, eles revelam um desejo inconfessado que se evidencia por um instante: o melhor seria tornar tal desejo consciente para elaborá-lo, não é, psicanalistas? Me refiro, antes de tudo, à progressiva normalização da psicanálise que se deu de modo acentuado entre 1920 e mais ou menos o meio dos anos 1950, mas que, aqui e acolá, persiste apesar das importantes críticas que tem recebido de dentro e de fora do campo psicanalítico.

A própria Anna Freud, sempre acusada de ser, ela mesma, uma agente da normalização da psicanálise ao construir um tratamento de crianças por uma via pedagógica, lastimava, já ao final da década de 40, que 'não se fazia mais psicanalistas como antigamente'; seu aparente conservadorismo aqui não era a tentativa de estabelecer uma ortodoxia, mas, muito pelo contrário, era a constatação de que a ortodoxia vigente nada tinha a ver com os anos românticos e de luta, os iniciais da psicanálise. Os primeiros psicanalistas eram marginais da ciência respeitável, da universidade, do clube dos cidadãos de bem, do Estado e da moral burguesa. Freud, Ferenczi, Rank, Abraham, Andreas-Salomé, Spielrein, Klein, a própria Anna, dentre muitos outros, eram figuras subversivas. E isso, indica Anna Freud, deveria ser importante. Acrescento eu: porque a psicanálise é necessariamente subversiva.

Lacan, alguns anos depois, atacará o mesmo problema, acusando o tipo de formação e prática psicanalíticos vigentes em seu tempo de normalizadores. Mostrou diversas vezes como a International Psychoanalytical Association (IPA) havia se tornado uma instituição hierárquica de silenciamento dos subversivos em nome de uma formação que orientasse para a identificação com o analista, o qual, por sua vez, se identificaria ao seu analista e assim por diante. Formava-se um exército de eus, um grupo de mesmos, de normais, considerados 'analisados' e curados porque eram reconhecidos pelos mandarins da instituição como seus semelhantes ou servos. 

Jacques Lacan 

Outros problemas tiveram de ser enfrentados no campo psicanalítico e ainda o são, tendo em vista a normalização burguesa de uma parte significativa das formações psicanalíticas (que a graduação só iria tornar ainda mais repetitível): a histórica exclusão dos comunistas, dos leigos, dos homossexuais, dos negros, dos indígenas, dos pobres. As tais formações por graduação acenam a esses excluídos, buscando arrebanhar um público consumidor de bens educacionais. Porém, o que oferecem não é uma mudança do campo psicanalítico, mas uma reversão das lutas intestinas do movimento psicanalítico em prol da normalização extrema na figura do consumidor, indivíduo sagrado e repetitível do neoliberalismo. Ou seja, aparentam ser libertárias, mas formam seu contrário: padronizam. 

Os poderes normalizadores não agem só de fora, mas atravessam as instituições analíticas, operando também de dentro. Por isso, aliás, Freud escreveu, dentre outros trabalhos, seu "As resistências à psicanálise" (1925). A história da psicanálise, em todos os sentidos, é uma história que deve sempre considerar a constante resistência à psicanálise, incluindo aí a resistência do psicanalista (FREUD, 1914). Mas ainda é na própria análise, na supervisão e na troca com os pares nas instituições que os psicanalistas têm conseguido pôr em discussão - com dificuldades - as resistências internas das seguintes instituições: o eu e a associação a que faz parte.

O verdadeiro teor subversivo da prática e da formação psicanalítica deve ser sustentado contra as resistências normalizadoras dentro das instituições de psicanálise que, como se espera de um processo analítico, devem tornar consciente o conflito entre o desejo subversivo e a manutenção da bela imagem feita para salvaguardar um suposto amparo por parte do Outro. Não é no disciplinamento universitário que encontraremos forças para mais uma vez fazer valer o teor intrinsecamente subversivo do campo e da experiência psicanalíticos.

Prefiro, hoje, aproveitar a oportunidade desta discussão reatualizada e lembrar de uma figura histórica do campo psicanalítico, cuja principal obra faz 100 anos; trata-se de um personagem a ser celebrado e indicado como um bom representante do aspecto absolutamente subversivo da psicanálise. Obviamente não estou falando de Freud, sabemos do aspecto brutalmente subversivo de sua obra, mas ele é sempre e justamente lembrado. Se O eu e o isso, de Freud, faz 100 anos e foi justamente celebrado - também aqui neste blog, aliás -, é preciso também celebrar outro importante livro que também tem seu centenário em 2023 e que tem relações estreitas com a obra-prima de Freud acima referida. Me refiro a O livro d'Isso, de Georg Groddeck. 

Georg Groddeck 

O uso do termo isso para fazer referência ao Inconsciente é invenção de Groddeck, não de Freud, mas o pai da psicanálise percebeu a sagacidade de Groddeck e adotou o termo a partir de seu livro do mesmo ano. O termo isso indica eloquentemente este aspecto de nossa existência que escapa à nossa possibilidade de dizer eu, meu, mim, todavia ainda assim temos de reconhecer que se refere a nós mesmos, como na frase "Eu não sei o que é isso que acontece comigo!" para indicar um sintoma. O isso de Groddeck não é idêntico ao de Freud (por exemplo, nele também se encontra o que Freud chamará de supereu), mas sua obra é evidentemente psicanalítica e subversiva: seja de outros campos, seja dos costumes, seja da própria forma 'livro de apresentação de uma disciplina científica', seja de alguns aspectos da própria psicanálise.

Se Ferenczi ficou conhecido como enfant terrible da psicanálise, o que dizer de Georg Groddeck? O médico alemão, como se lê nos comentários sobre sua relação com Freud feitos por Peter Gay (1988) e Elisabeth Roudinesco (2014), foi um psicanalista literalmente marginal, jamais se tornou membro da IPA, conseguiu manter, ao mesmo tempo, uma independência em relação à instituição e uma relação próxima, de respeito e influência mútua, com Sigmund Freud, o que lhe garantiu, apesar de esforços contrários, muitos leitores, pacientes e fama, irradiando de sua clínica em Baden Baden. Os esforços contrários foram encabeçados por aquele que parecia tentar transformar o freudismo numa doutrina, instaurando uma ortodoxia interna à IPA que a tornou intolerante a transformações e críticas por muito tempo: Ernest Jones. Foi Jones quem fez Ferenczi desaparecer como autor importante no campo psicanalítico, destruindo a credibilidade naquele 'louco'; foi Jones quem cuidou para que Groddeck jamais fosse incluído como referência nas leituras dos membros da associação e aconselhou Freud a se afastar do 'bruxo'. 

Tomemos O livro d'Isso como obra exemplar do modo de Groddeck praticar a psicanálise. Ali vemos, ao mesmo tempo presentes, um indiscutível conhecimento da obra psicanalítica existente - especialmente a de Freud -, uma aderência a ela, porém não sem inventividade e acréscimos originais efetuados pelo autor. Era ao mesmo tempo rigoroso e criativo, como se espera de um psicanalista e, diferente do rigor fomentado pelo tipo de formação inventado por Abraham e Eitingon (e enrijecido por Jones); este último parece mais com o rigor da repetição, não da radicalidade da experiência psicanalítica, a qual em si é uma trans-formação criativa, mas o rigor dos procedimentos que se vê de modo caricatural nas neuroses obsessivas (FREUD, 1909), nas fobias (id., ibid.) e nas perversões (id., 1927): ou seja, defesas diversas contra a radicalidade da castração e do desejo inconsciente (o que, aliás, é a única coisa que uma graduação universitária em psicanálise pode ofertar, por sua estrutura mesmo de funcionamento: ela é um procedimento defensivo).

Ernest Jones 

Eu disse que o livro de Groddeck é subversivo em vários aspectos - e, talvez, em alguns, ainda mais subversivo que Freud, que, na sua correspondência com Groddeck, pede, diversas vezes, moderação no modo de comunicar ao leitor as descobertas da psicanálise (1984). Sabemos que Freud temia, com razão, as resistências da academia à psicanálise e tentou de tudo para que ela fosse aceita e reconhecida pela comunidade científica, daí seu estilo de escrita que, do início ao fim de sua obra, é extremamente cuidadoso na argumentação, na tentativa de clareza, na comprovação de suas ideias, na demonstração da praticidade de sua invenção etc. sem, ao mesmo tempo, aliviar sua força subversiva: o Inconsciente (FREUD, 1900), a sexualidade infantil (id., 1905), o caráter perverso-polimorfo de toda nossa sexualidade (id., ibid.), a pulsão de morte (id., 1920) ou a referência ao eu como principal força de resistência ao tratamento (id., 1937) são ideias imediatamente subversivas e sustentáculos da experiência psicanalítica. Mas se compararmos o tipo de escrita de Freud com o de Groddeck, é preciso dizer que o segundo é mais ousado. Desde o início do livro em questão, este médico renomado demonstra não se importar para o reconhecimento da comunidade científica, num gesto de desafio que não encontraremos desta maneira em Freud - e talvez por isso seu texto não ostenta a forma da clareza do artigo científico, mas ao contrário, é composto por cartas ficcionais de um médico psicanalista a uma interlocutora e mais: o discurso lido nas cartas segue o preceito da associação de ideias, fazendo os conceitos psicanalíticos emergirem das lembranças, dos lapsos, dos comentários cotidianos, das expressões idiomáticas etc.

Dito de outro modo: Groddeck utiliza do próprio método psicanalítico, o da interpretação incidindo sobre as próprias associações livres do sujeito como modo de apresentar a experiência, os conceitos e a própria ética da psicanálise. Groddeck mostra em ato como a psicanálise é uma experiência singular, encarnada, da qual os conceitos emergem e não sobre a qual eles são aplicados como um saber aprendido na universidade. Seu discurso, no texto, é, de cabo a rabo, psicanalítico. De certo modo antecipa Lacan no que se refere à forma como se transmite a psicanálise: a escrita do psicanalista francês (e, antes, a do alemão), bem como seu discurso oral, são construídos de tal modo a se lançar tanto quem o profere como quem o lê ou escuta na experiência do Inconsciente e, por isso, ambos se expressam intencionalmente de modo antiacadêmico. Como será que serão utilizados nos tais cursos de graduação em psicanálise?

Esta forma também serve a Groddeck para outro propósito. Uma vez que o livro parece uma troca de epístolas entre um médico e uma leiga aparentemente bem comportada conforme a moral burguesa, ele permite ao autor algumas diabruras, intenção confessa no sobrenome do médico fictício: Patrick Troll. Troll é uma criatura da mitologia nórdica que pratica diabruras, prega peças, é um trickster tal como, em outras culturas o são, por exemplo, os duendes, os sátiros ou o saci pererê. Enfim, troll é o agente subversivo. Na medida em que Patrick é amigo íntimo da burguesa comportada, ele se permite ser sarcástico, debochado, irônico e, às vezes, grosseiro na apresentação de ideias subversivas da psicanálise de modo a mostrar ao leitor o que está sendo abalado por tais ideias: os costumes, a decência, a moral, a religião, a subordinação assujeitada aos líderes, a cultura da repressão e do silenciamento, a exigência de uma racionalidade cartesiano-consciente como condição de valor para uma ideia, a conformidade e o conformismo liberais etc. Não por acaso Groddeck era um leitor assíduo de outro troll da cultura alemã: Friedrich Nietzsche. 

Sigmund Freud 

A aproximação entre Groddeck e Lacan deve ser feita ainda no que se refere a um ponto crucial para o segundo. Trinta anos antes do famoso "Discurso de Roma" (1953) de Lacan, Groddeck já escrevia com todas as letras que o Inconsciente é estruturado como uma linguagem. Lacan apresenta seu programa, em "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise" (1953) - a versão escrita do "Discurso de Roma" -, como um retorno a Freud tendo em vista que os últimos slogans dos psicanalistas tinham sido de negligência da função da fala/palavra e do campo da linguagem para estudar o que consideravam como experiências anteriores ou exteriores à linguagem. Lacan será exitoso em mostrar como aquilo que parecia ser exterior à linguagem é já uma experiência atravessada pela linguagem, como, por exemplo, a pequena infância e a psicose. Lacan indica que nada mais fazia do que seguir a letra freudiana, sustentando-a contra movimentos que se distanciaram dela em nome de um conformismo ambientalista e normalisante. É verdade, Freud já nos indica esse caminho desde sua monografia sobre as afasias (FREUD, 1891), mas não creio que encontraremos em sua obra nada tão explícito sobre o assunto quanto as passagens de O livro d'Isso a seguir:

"...pode-se mesmo dizer que todo pensamento e toda ação consciente são consequência inevitável da simbolização inconsciente, que o ser humano é vivido pelo símbolo. 

Do mesmo modo, a obsessão com a associação é tão humanamente inelutável quanto o destino do símbolo; tanto mais quanto ela é, no fundo, a mesma coisa, pois associar equivale a alinhar símbolos (...)

Encontramos essa obsessão com a associação a todo instante. (...) Remexa um pouco na linguagem. (...) de repente se ergue, à sua frente, o edifício da linguagem." (GRODDECK, 1923, p. 45-46)

O argumento de Groddeck segue indicando que o isso associa e faz símbolos tal como a linguagem, nunca ficando claro se ele já é a linguagem ou a condição da linguagem, tal como aquilo que Derrida tenta pensar em Gramatologia (1967). É verdade que os símbolos em Groddeck se aproximam mais da noção de símbolo apresentada por Freud em A interpretação dos sonhos (1900) do que do simbólico lacaniano, mas Groddeck indica claramente que as leis de associação são as leis da linguagem e que não dominamos os símbolos, mas, ao contrário, somos dominados por eles. 

 Uma lição clínica na Salpêtrière (André BROUILLET, 1887)

Quanto à subversão que Groddeck enceta em outros campos e na psicanálise, me contento em mencionar o fato de que ele é reconhecido como o pai da psicossomática, que reconfigura necessariamente tanto internamente quanto a relação entre os campos da medicina e da psicanálise. A radicalidade que ele confere à incidência do Inconsciente - que, para ele, é ordenado pela ou tal como uma linguagem - aparece justamente ao atribuir ao isso a emergência de modificações na fisiologia do corpo humano, o que difere do acento que Freud dava ao fenômeno da conversão.

 Enquanto a conversão é um fenômeno que indica que o psiquismo sente, percebe e significa um corpo não pela anatomia científica, mas pela diagramação simbólico-imaginária que a cultura da vida cotidiana dá ao corpo humano, a psicossomática de Groddeck vai além: é possível a fisiologia ser transformada no real do corpo pelo isso. Uma conversão histérica nada altera da fisiologia do corpo, mas sim do domínio psíquico consciente sobre o corpo, por exemplo: a perna paralisada de Elisabeth von R. não tinha nenhuma disfunção fisiológica e, por isso, Freud pôde ter certeza de que a causa da paralisia era psíquica (BREUER & FREUD, 1895). Groddeck, por sua vez, já comenta o nascimento de uma espinha no rosto de uma adolescente como sendo uma espécie de autossabotagem no momento em que ela se lançaria no mundo dos bailes e flertes: ela, assim, estaria livre da competição e da rejeição; se um rapaz a beijasse mesmo enfeiada, seria uma grande vitória narcísica: se ninguém a quisesse, o motivo estaria na espinha, poupando a autoestima da menina de sofrer uma ferida narcísica dolorosa.

Groddeck fala em espinhas, mas também em pústulas, em gravidez, em menstruação desregulada; em enrubescimento, mas também em câncer. Note-se que, diferente de autores posteriores, ele não pensa o fenômeno psicossomático como efeito de algum déficit de linguagem, como algo que emerge da incapacidade de simbolização; ao contrário, ela é toda pensada como a expressão de uma discursividade altamente sofisticada, porém silenciada; ela significa. De certo modo, uma parcela daquilo que Freud entendeu como conversão já indicava alguns aspectos psicossomáticos: à guisa de exemplo menciono os vômitos histéricos a que ele sempre fez menção; eles são reais, diferente da perna paralisada ou da cegueira psicológica (FREUD, 1910). 

Joel Birman

Ou seja, não só os psicanalistas deveriam, então, levar em conta aquilo que vulgarmente se chama de "doença orgânica ou fisiológica" como causada pelo isso, como os médicos também, embaralhando as fronteiras entre corpo e espírito de uma vez por todas. Toda doença é psicossomática, no final das contas, minimamente porque nem psico nem soma jamais estão ausentes de uma existência.

Joel Birman sustenta que na história da psicanálise empreendeu-se aos poucos um recalcamento do corpo em benefício de um psiquismo desencorpado (2000). Esse movimento parece ter influência das pudicícias burguesa e religiosa, bem como do cartesianismo: três forças contra as quais a psicanálise emergiu como subversão. O conceito freudiano de pulsão foi criado como desafio intelectual-técnico à separação cartesiana entre corpo e mente e necessário para dar conta dos fenômenos da sexualidade e, mais tarde, da compulsão à repetição, mas, ao longo do tempo, passou a ser considerado por muita gente apenas como excitação da mente a partir do corpo, foi reduzido à noção de zona erógena, a fonte da pulsão (FREUD, 1915). Paralelamente, o apagamento das obras de Ferenczi, Reich e Groddeck também invisibilizou suas contribuições a respeito das reflexões psicanalíticas sobre o corpo, ou melhor, sobre a difícil dissociação entre corpo e mente. Do mesmo modo, a reiterada não-leitura por parte de muitos psicanalistas do desenvolvimento que Lacan dá a seu conceito de objeto a, nos anos 60 (p.e. 1962-63), e, de um modo geral, sua tentativa de pensar o real do corpo e o gozo (p.e. 1972-73), também são indicativos de uma preferência pelo que ficou conhecido como um 'Lacan do simbólico', dos anos 50, o que é, claramente, um reducionismo simplista orientado apenas para querer ver na obra de Lacan uma subjetividade espiritual - o que nada tem a ver com o ensino de Lacan ou com a psicanálise: tem a ver com o recalcamento do corpo por parte do leitor.

Groddeck foi uma destas 'forças da natureza' que trouxe o Inconsciente para o corpo com seu isso (ou teria ele dado corpo ao Inconsciente?) e, talvez 'por Isso' Freud, ao redesenhar a tópica psíquica que apresentara primeiro em O eu e o isso, desta vez na conferência intitulada "A dissecção da personalidade psíquica" (1933 [1932]), tenha feito uma alteração importante: não desenhou mais o isso aberto somente para o eu, mas também em seu fundo, para o que chamaríamos de 'somático'.

Estudo para três figuras na base de uma crucificação (Francis BACON, 1962) 

Nesse sentido, devemos celebrar a força subversiva da obra de Groddeck e tomá-la como uma demonstração, um exemplo daquilo que uma graduação em psicanálise extirpará de uma vez por todas do campo psicanalítico brasileiro, ressignificando o significante 'psicanálise' para algo como: uma psicologia bem comportada transformada numa técnica aprendida e aplicável. Mas sejamos francos: ela não funciona assim; mais honesto seria aplicar a psicologia cognitivo-comportamental para tais fins, ela serve para isso; quanto à psicanálise, se direcionada para este objetivo, fracassará. E desse fracasso, mais uma vez, poderá haver novamente psicanálise. Mas quanto tempo este período de latência durará? Quanto estrago terá feito?

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