O horror ao interminável: dos nudes na internet à Hecatombe nuclear

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Depois de um tempo sem escrever neste blog, volto com um apanhado de experiências fragmentárias, com as quais busco hoje compor uma bricolagem que faça algum sentido justamente a respeito de um conceito psicanalítico que remete tanto à fragmentação quanto à falta de sentido: me refiro à pulsão de morte.

As experiências fragmentárias a que me refiro são as seguintes:

1) uma notícia aterradora concernente à conduta de alguns alunos adolescentes do conhecido e respeitado Colégio Santo Agostinho, no Rio de Janeiro (mesmo se tratando de alunos do campus expandido da Barra da Tijuca, e não do mais tradicional no Leblon). O Santo Agostinho é conhecido por ser, ao mesmo tempo, um colégio de valores conservadores de moral católico-burguesa, bem como por ter a excelência em tornar os jovens da elite econômica carioca também membros de uma elite técnico-intelectual competitiva, capazes de tirar as melhores notas no ENEM e brilharem como profissionais de respeito adiante na vida, no que diz respeito à competência profissional. Foi de dentro da subcultura deste colégio que alguns rapazes adolescentes fizeram montagens digitais muito bem feitas, utilizando ferramentas da assim chamada Inteligência Artificial, ao alterarem fotografias de ao menos vinte meninas também alunas do colégio, para fazer com que o resultado final fosse o de imagens delas nuas, ocorrência semelhante ao que foi feito com fotos originalmente de biquíni da atriz Ísis Valverde. E esses conteúdos foram lançados na internet, ou seja: aos quatro ventos.

A polícia abriu inquérito e há rumores de que as famílias das vítimas abrirão processo contra as famílias dos garotos. Há ainda outras famílias de alunos que demandam a expulsão dos meninos que lançaram as edições no cyberspaço por conta da exposição humilhante de meninas adolescentes. Desta notícia poderíamos tecer diversos comentários; hoje me interessa comentar que, uma vez que algo é lançado na internet, mesmo que tente-se rastrear tais imagens e apagá-las, isso não só parece dificílimo, pois a cópia e redistribuição de uma imagem "viral" para diversos pontos da rede é prática comum (incluindo aí a deep web), como, na verdade, é da ordem do impossível, posto que uma vez que um computador registra algo, apertar o botão delete não apaga tais dados de sua memória, mas apenas da memória acessada pelo usuário. Como lembra Slavoj Žižek em O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2000), por isso mesmo, é perfeitamente possível o comando undelete, que torna um registro novamente acessível. Assim, somados os fatos de que um registro num computador é ineliminável e que o que é jogado na rede não pode mais ser contido, podemos dizer, ainda calcados no mesmo trabalho de Žižek, que o mundo digital nos colocou diante de uma repetição imortal assustadora, que virtualmente é impossível de ser terminada. Em suma, as imagens fake destas meninas nuas continuarão a circular, excitando pedófilos, e tornando a memória digital destas mulheres algo vergonhoso e difícil de se livrar, posto que não se pode jamais ter certeza que não voltarão ao longo de toda a vida delas.

Igreja e Colégio Santo Agostinho, campus Barra da Tijuca, Rio de Janeiro (Prima Arquitetura, 2015)

O funcionamento do computador acima mencionado, de um delete que não deleta de uma vez por todas, mas apenas tira de vista, nos faz lembrar de um interessante artigo de Freud: "Nota sobre o 'Bloco mágico'" (FREUD, 1925). Ali Freud não escreve sobre o computador e nem poderia fazê-lo, porque este ainda não existia. Outrossim se utiliza de um brinquedo de criança, o 'Bloco mágico', como instrumento didático para explicar tanto a tópica quanto a dinâmica do aparelho psíquico humano. Neste brinquedo, há uma tela superficial onde nada se registra, mas é com uma pressão externa sobre ela que se marca o que há abaixo dela, a areia ou cera, deixando neste fundo marcas que não podem ser apagadas caso a tela seja erguida; se o fizermos, o máximo que acontecerá será que não veremos mais as marcas na tela, mas elas continuam na cera. A tela é, aqui, uma metáfora do sistema perceptual-consciente e as marcas na cera ou areia seriam o inconsciente; ou seja, a memória pode ser retirada da consciência, mas não do inconsciente, nele ela se repete compulsivamente (id, 1914). Eis um dos motivos porque Freud insiste que o inconsciente é atemporal (id., 1915) e também está aí um dos motivos porque Freud, ao final de sua obra e ao contrário do que sempre disse, afirma que além de uma resistência do eu às mudanças, o psicanalista deve considerar também uma resistência do inconsciente presente na compulsão à repetição dos mesmos traços e trilhamentos de memória; estaria aí um dos motivos que podem tornar uma análise interminável (id., 1937).

Porém, se a compulsão a repetição que age como resistência à mudança e que marca uma característica do inconsciente já era indicada por Freud muito antes do computador existir, é preciso dizer que o campo digital-cibernético deu uma nova dimensão a este funcionamento compulsivo-interminável. É da ordem do estranho, do Unheimlich (id, 1919), o fato, por exemplo, de que gente que já morreu e tinha páginas de Facebook, contas de YouTube etc. e participações em grupos de Whatsapp, continua lá, nesses espaços, recebendo mensagens, likes e sendo vista. A internet tornou as assombrações, os fantasmas, figurais reais.

2) O show de Roger Waters no Estádio Nílton Santos, o Engenhão, mais uma vez teve um cunho político forte, mas, ao contrário do de 2018 que era raivoso contra o fascismo emergente no mundo, este, mesmo que continue o ativismo do anterior, teve - sobretudo na parte final - um tom mais melancólico. Em geral shows em estádios terminam com os artistas tocando grandes sucessos ou muito animados ou que valham como hinos que todos conhecem e cantam junto, fazendo com que o fim do espetáculo tenha um efeito jubilatório no público, gerando um alívio e uma sensação de encerramento da experiência. Não foi o caso deste show de 2023. As três últimas canções são bem tristes e nenhuma das três nem é um grande hino nem mesmo um sucesso do artista. A última é a canção de encerramento do álbum The Wall (PINK FLOYD, 1979), Outside the wall (WATERS, 1979), na qual a mensagem de esperança da letra é contrabalanceada pelas melodia, ritmo e harmonia frágeis, que mais lembram um hino fúnebre sussurrado do que outra coisa. A penúltima é uma composição nova, dolorosa e lenta, em homenagem ao recém-falecido irmão do cantor, baixista, violonista, guitarrista, pianista e compositor. Meu foco recai, no entanto, sobre a antepenúltima: Two suns in the sunset (Waters, 1983), a derradeira canção do derradeiro álbum com participação de Roger Waters no Pink Floyd - The final cut (PINK FLOYD, 1983):

Roger Waters na atual turnê This is not a drill (2023)

"In my rearview mirror, the sun is going down / No meu espelho retrovisor, o sol está se pondo

Sinking behind bridges in a mean way / Afundando por trás de pontes de um modo cruel

I think of all the good things that we have left undone / Eu penso em todas coisas que deixamos inconclusas 

Suffer premonitions , Confirm suspicions of the holocaust to come / Sofro premonições, confirmo suspeitas de que o Holocausto está por vir

The rusty wire that holds the cork that keeps the anger in / O arame enferrujado que segura a rolha que mantém a raiva dentro

Gives way and suddenly it's day again / Se solta e, de repente, é dia de novo

The sun is in the east even though the day is done / O sol está no leste, mesmo com o dia tendo acabado

Two suns in the sunset, Could be the human race is run / Dois sóis no crepúsculo, Poderia ser que a raça humana se foi

Like the moment when the brakes lock / Como no momento em que os freios travam

And you slide towards the big truck / E você derrapa em direção ao enorme caminhão

You stretch the frozen moments with your fear / Você estica os momentos congelados com seu medo

And you'll never hear their voices ,  And you'll never see their faces / E você nunca ouvirá as vozes deles, E você nunca verá suas faces

You have no recourse to the law any more / Você não pode mais recorrer à lei

And as the windshield melts, tears evaporate / E enquanto o para-brisa derrete, lágrimas evaporam

Leaving only charcoal to defend / Deixando apenas carvão para defender

Finally, I understand the feelings of the few / Finalmente eu entendo os sentimentos dos poucos

Ashes and diamonds, foe and friend / Cinzas e diamantes, inimigo e amigo

We were all equal in the end / Nós éramos todos iguais no fim" (Roger WATERS, 1983 - tradução minha)

O próprio título do álbum remete ao fim de uma era. The final cut pode ser traduzido de formas diferentes: 

a) o corte final é um termo típico e técnico de profissionais de edição - cinematográfica e musical - para se referir ao formato final do trabalho de découpage, gerando, enfim, a forma do filme/disco que será exibida ao público. A bricolagem a que fiz referência no início do meu texto reaparece aqui na montagem/edição e de modo explícito na imagem da capa desta obra, feita pelo próprio Waters. 

b) o corte final remete, talvez, também, a este álbum como uma intervenção última que, tal como cada álbum da banda em seu período mais criativo (de 1971 a 1983), teve um efeito de corte, de incisão afiada na experiência musical do público com a força de um acontecimento, de uma ruptura: surpreendendo e reposicionando a audiência em relação às suas expectativas quanto à música do Pink Floyd e ao rock em geral. 

Capa do álbum do Pink Floyd 'The final cut' (Roger WATERS,1983)

c) O corte final, enfim, remete, como se lê na letra da faixa com o mesmo nome do álbum, ao corte suicida, o corte dos pulsos, à dor melancólica que atravessa todo o disco cujo tema não é outro senão a tentativa de Waters de fazer o luto tanto da morte do pai, ocorrida na Segunda Guerra Mundial, quanto dos horrores da Guerra Fria, quanto ainda - talvez - do apogeu do Pink Floyd.

Two suns in the sunset, como Waters explica no show, antes de executá-la, e como se lê na linda letra acima traduzida, descreve a cena e os últimos pensamentos de um homem comum que, ao dirigir seu carro em direção oposta ao crepúsculo, vê um sol nascer diante de seu carro - é a bomba atômica explodindo e desencadeando o fim, dele e do mundo. No show esta cena é apresentada numa animação e, para meu espanto, ela dura quase a música inteira, tornando interminável o instante em que os corpos se desintegram em pó, como se pode imaginar ao ler o verso "You stretch the frozen moments with your fear / Você estica os momentos congelados com seu medo". Waters mostrou nesta canção e nesta animação, tal como no lindo poema A rosa de Hiroshima de Vinicius de Moraes musicado pelos Secos e Molhados (MORAES, 1954, musicado por CONRAD, 1973), aquilo que Christopher Nolan decidiu não mostrar em seu Oppenheimer (2023), cuja crítica publiquei, no dia 12/8/23, neste blog, com o título "A bomba e os mortos invisíveis de Oppenheimer": a destruição e o horror que uma bomba atômica significa e realiza. Mas Waters, através da letra e da animação exibida nos telões do show, torna aquilo que seria um momento provavelmente instantâneo, a explosão da bomba e suas consequências, em algo contínuo, que não cessa de acontecer. 

A nudez fake das colegas jogada na rede é um ato que, ao ser registrado no computador e lançado na internet se torna contínuo, infindável. A imediatez da bomba atômica devastando a Terra, na música e na animação de Waters, se torna um morticínio contínuo.

 
Cartaz estadunidense de Assassinos da Lua das Flores (Martin SCORSESE, 2023)

3) Assisti, no cinema, Assassinos da Lua das Flores (SCORSESE, 2023). Há muito a se dizer sobre esta obra de arte, mas hoje me atenho àquilo do filme que se entrelaça à discussão iniciada acima. E, com isso, inevitavelmente, comentarei o final da película - logo, sugiro que quem quer ver o filme sem spoilers, pare sua leitura aqui. Como muitos sabem, o filme trata de uma história real ocorrida há cem anos atrás: as estratégias de brancos estadunidenses de desposar indígenas proprietárias de terras ricas em petróleo e, em seguida, assassinar os membros das famílias em que entraram para se apossar de toda a riqueza, inescrupulosamente. Ao final da narrativa, brilhantemente interpretada por Leonardo di Caprio e Robert de Niro e executada por Martin Scorsese, o próprio diretor aparece na tela informando que a protagonista da trama, a indígena osage Mollie Kyle - também brilhantemente interpretada, por Lilly Gladstone - morreu de morte natural e em sua lápide consta apenas essa informação além da data de sua morte, sem nenhum acréscimo a respeito do contexto de vida e morte desta mulher. Scorsese acrescenta, chorando, que nada é dito a respeito dos assassinatos em massa dos osage e, em particular, de quase toda a família de Mollie. Nesse sentido, o próprio filme é uma tentativa de dar aos Kyle o enterro e as honras que eles mereceriam e aos brancos estadunidenses a possibilidade de elaborar seus atos seja em referência aos osage, seja em referência ao contínuo genocídio de povos autóctones daquele continente desde o século XVII. Tal como no bloco mágico, a memória não está na superfície, mas ela ex-siste (LACAN, 1972-73) e, para se encerrar um trabalho de luto infindável, para se elaborar algo que pulsa, lateja compulsivamente nas entranhas de brancos e indígenas estadunidenses, é preciso construir uma lápide adequada, um sepultamento e um velório que circunscrevam e terminem uma história.

Enfim, alinhavo minha experiência de ter visto este filme, a apresentação de Roger Waters e tido a notícia do episódio dos fake nudes de alunas do Santo Agostinho a algumas reflexões a respeito do conceito de pulsão de morte, originalmente proposto por Freud em Além do princípio do prazer (FREUD, 1920).

Nesta obra, mesmo que tendo sido pensada para dar conta do fenômeno clínico da compulsão a repetição de experiências que nos acometem e que não são nem nunca foram prazerosas (o que se constata de forma mais evidente nas neuroses traumáticas, mas que não é exclusivo delas), a pulsão de morte é apresentada a partir de um argumento biologizante. Ali a pulsão de morte bem como a pulsão de vida chegam a ser pensadas como estando presentes em cada célula de cada ser vivo. Enquanto a pulsão de vida é definida como a força que sustenta a vida, que sustenta a tensão própria da vida em oposição à descarga das excitações (por isso sendo considerada conservadora da vida), a pulsão de morte é concebida como a força que age contra a vida, contra o acúmulo da excitação, tendendo a levar o organismo a um nível zero de excitação, tal qual a matéria teria estado antes de haver surgido a vida, inorgânica - e, por isso, a pulsão de morte é também conservadora, neste caso conservadora de um estado anterior de coisas, de um estado anterior à vida, inorgânico. Note-se aqui que ela não é exatamente uma pulsão de morrer, mas sim uma pulsão de conservar algo da ordem do inorgânico, do não vivo. A partir de 1924, Freud a relaciona ao Princípio do Nirvana, ao princípio de descarregar toda a energia psíquica - uma morte psíquica, a redução da atividade psíquica a um nível zero de excitação. O Nirvana não é a morte física, mas sim subjetiva. Porém a comparação ao Nirvana termina aí, pois, aparentemente diferente da suposta iluminação espiritual, a pulsão de morte é aterradora, como veremos a seguir.

Três anos depois, portanto há cem anos, em O eu e o isso (id., 1923), Freud retoma a hipótese da pulsão de morte, porém desta vez não mais como uma hipótese e sim como uma convicção teórica, como uma necessidade teórico-clínica - o que, aliás, incomodou os psicanalistas que não abraçaram sua teoria do dualismo pulsional de Eros x Thanatos, ocasionando uma novidade no campo psicanalítico: pela primeira vez discordâncias cruciais entre Freud e seus discípulos não levaram a saídas do movimento psicanalítico, mas a linhas e abordagens diferentes. Em 1923, além de redobrar sua aposta na teoria da pulsão de morte, Freud também deixa de lado a argumentação 'biológica' e a substitui por uma outra, eminentemente psicológica mesmo, centrada em pensar a fenomenologia de quadros psicopatológicos como a neurose obsessiva, a histeria e a melancolia. É neste texto que ele sugere haverem fusões e desfusões das pulsões de vida com as de morte. De um modo geral, elas estão fundidas, a vida é vivida como um contínuo trabalho de ligar e desligar a libido, como uma experiência de transformação, marcada por transitoriedades e finitudes. Eros liga, Thanatos separa e 'vida que segue'. É na desfusão das duas pulsões que, no entanto, se compreendem certos quadros psicopatológicos, como, fundamentalmente a melancolia, a que Freud se refere, aliás, como uma cultura da pulsão de morte em um texto um pouco posterior, Inibições, sintomas e angústia (id., 1926).

Jean Laplanche

A desfusão pulsional indica as duas pulsões funcionando quase que exclusivamente em certos topos ou em certas dinâmicas psíquicas, sem imbricações que possibilitariam o contínuo ligamento-desligamento. O desligamento de si mesmo, a autodestruição, seria um indicativo da ação da pulsão de morte sobre o eu sem contraponto erótico suficiente para frear tal processo, por exemplo. O erotismo poderia estar, como no caso da melancolia, ligado quase que exclusivamente a uma instância ideal da qual o eu desistiu, perdeu a esperança de poder estar à altura de realizá-la, de modo que olha para si mesmo com desprezo e vê seu desejo se apagar.

Se Sandor Ferenczi foi fiel à teorização freudiana a respeito da pulsão de morte (p.e. FERENCZI, 1929), grandes psicanalistas posteriores tiveram de tomar decisões clínico-teóricas diversas, tendo em vista o real de suas experiências. Melanie Klein retomou a pulsão de morte conotando-a como um instinto de destruição do outro (KLEIN, 1952), Donald Winnicott rejeitou o conceito (WINNICOTT, 1975), Jean Laplanche o utilizou na condição de considerá-lo como referido ainda ao campo sexual, de modo que haveria pulsões sexuais de vida - ligadas - e de morte - desligadas (LAPLANCHE, 1970) e, finalmente, Jacques Lacan também tendeu a um monismo pulsional, no entanto não reduzindo a pulsão de morte ao campo sexual; para Lacan o sexual é já uma tentativa de elaboração do encontro traumático com o discurso do Outro, que se repete compulsivamente resistindo à redução a algum sentido único (LACAN, 1964). Mas me dedicarei aqui ao que Žižek elabora sobre a pulsão de morte na obra já citada neste post.

Antes, cabe fazer um comentário paralelo, mas que não deixa de ter uma relação com nossa discussão. Žižek é bastante influenciado pelo pensamento de Jacques Lacan e, no entanto, se interessa pela leitura de Jean Laplanche - o que é surpreendente dado que, historicamente, Laplanche foi o analisando e discípulo de Lacan que, segundo o último, o teria traído e levado à situação que ficou conhecida como sua 'excomunhão' da International Psychoanalytical Association (IPA): os efeitos destes acontecimentos podem ser vistos até hoje se considerarmos que uma enorme parte dos psicanalistas cujo coração palpita por Laplanche se recusa a se associar a lacanianos e vice-versa, de modo apaixonado, como se estivéssemos lidando com os brios de gente ainda viva ou com fatos de 15 anos atrás, quando tudo isso ocorreu de fato há mais de 50 anos! A situação se torna ainda mais estranha quando estes acontecimentos parecem engendrar repetições até mesmo em terras não francesas, como é o caso do Brasil (o que, em parte, pode ser entendido como uma composição filial de colônia, sem nenhuma independência em relação à metrópole importadora de pensamento, mas também de certos jogos políticos). Eu, cuja trajetória na psicanálise é freudo-lacaniana, fiz um mestrado 'laplancheano', mas sei que sou uma exceção nesta história, bem como é Žižek, pelo que se pode ler no seu livro já citado. É realmente uma pena que conflitos ético-político-afetivos entre dois grandes psicanalistas carreguem de modo soldadesco seus discípulos para suas fileiras adotando atitudes partidárias que não lhes permitem ver: 1) que certamente há diferenças nas obras destes autores, mas há muitos pontos em comum, 2) que as diferenças entre seus pensamentos enriquecem nossas formações clínico-intelectuais e não o contrário: por exemplo, pretendo ainda confrontar neste blog suas teorias sobre a sublimação, 3) que as crises político-afetivas entre estes psicanalistas são, hoje, desimportantes para - ao menos - a prática e o pensamento psicanalítico brasileiros, que deveriam estar ocupados com as subjetividades de seu tempo (LACAN, 1953) e lugar.

Slavoj Žižek

Psicanalistas deveriam, segundo Freud, fazer análise e, nela, teriam de fazer o famoso luto do pai, deveriam ainda fusionar Eros e Thanatos, de modo a deixar posições enrijecidas se remodelarem para frearem repetições e se abrirem para a possibilidade de Outra coisa, do novo: se a ética da psicanálise é a ética do desejo (id., 1959-60) e o desejo é desejo de Outra coisa (id., 1957-58), esta seria a atitude ética que qualquer psicanalista deveria adotar ao sustentar sua posição (id., 1969-70). 

Estendo um pouco mais este comentário paralelo: O que eu disse ainda agora não valeria também para Roger Waters, mesmo - é claro - não se tratando de um psicanalista? Afinal é ele quem nos convida, em seu show, a sairmos de nossas convicções e encastelamentos e irmos para o bar conversar genuinamente com as pessoas, trocar ideias e afetos com elas, experimentar empatia e mudança - essa seria sua nova forma de combater o fascismo, mais do que o antagonismo (a partir do qual o fascismo se alimenta e se fortalece)...e, no entanto, no mesmo espetáculo, quando Waters se dedica a contar a história de sua banda de origem, o Pink Floyd, exclui, apaga, tal qual fazia a imprensa stalinista, a imagem de David Gilmour das fotos exibidas, retira o nome de David Gilmour das estórias contadas, elimina o lindo solo de guitarra criado por  Gilmour da primeira canção do concerto (eleito pela revista Rolling Stone o mais bonito solo de guitarra gravado numa canção de rock), composta pelos dois, Comfortably Numb (WATERS/GILMOUR, 1979) - Waters chega a dizer que The final cut foi o último álbum do Pink Floyd, quando, na verdade, foi o último com sua participação, pois a banda continuou capitaneada exatamente pelo ex-amigo David Gilmour, que, na justiça, ganhou o direito de continuar a usar o nome Pink Floyd e a gerenciar os negócios da empresa Pink Floyd a revelia de Waters. Waters se sentiu traído e excomungado do Pink Floyd tal qual Lacan se sentiu em relação a Laplanche e à sua aliança com a IPA. O melhor seria laplancheanos e lacanianos trocarem, Waters e Gilmour conversarem, tal como Waters propõe que Putin e Biden façam, tal como qualquer psicanalista aposta e propõe que qualquer paciente faça, ao menos desde "Observações sobre o amor transferencial" (FREUD, 1915): 'antes de agir, vamos falar sobre isso', aliás, este é o cerne do tratamento.

Fechado o comentário paralelo, enfim, voltemos ao modo como Žižek se apropria do conceito de pulsão de morte. Leiamo-lo: "Onde está a pulsão de morte? Ela não está no anseio de morrer, é o nome para a vida eterna 'morta-viva', para o terrível destino de estar preso num ciclo infinito e repetitivo..." (ŽIŽEK, 2000, p. 312). Para o autor, a pulsão de morte se declina na satisfação, no gozo, da pura compulsão à repetição, enquanto a pulsão de vida remete ao campo do prazer. Diferente de Freud e suas metáforas biológicas ou Lacan e sua lamela - que é metáfora da libido, mas que Žižek, através da ideia de 'morta-viva' relaciona à pulsão de morte (LACAN, 1964) -, o autor esloveno escolhe a figura do morto-vivo como paradigmática da pulsão de morte: é a infinitude, a impossibilidade de parar um processo o que remete à experiência angustiante da pulsão de morte. É o caso das imagens mortas-vivas, eternas, tanto na realidade da internet quando na nossa mente (como na do personagem de Two suns in the sunset), nos lutos não feitos dos osages ou mesmo dos lacanianos e laplancheanos, bem como da separação insuperável de Waters e Gilmour. Histórias de fantasmas, como Hamlet (SHAKESPEARE, 1599-1601), nos remetem a um filho que não fez o luto de seu pai mas também de um pai que não aceita seu fim - e, desse modo, permanece fantasmagórico, um morto-vivo. A pulsão de morte é o instrumento teórico psicanalítico - propõe Žižek - para nos ajudar a dar conta dessa existência fantasmagórica, a respeito da qual o que se pode fazer é recolher as repetições de fragmentos sem sentido e oferecer meios de elaborá-las discursivamente, com conversa, com narrativa, com texto, com tessitura, até que signifiquem alguma coisa, que mude e, talvez, assim, morra. Mas há um gozo na própria repetição que precisa ser terminado - é aí que a bricolagem, a montagem, precisa encontrar um final, nem que seja pela exaustão ou por um corte final. Por isso uma análise também precisa de um fim, mesmo que seja interminável. Um corte não precisa ser em ato, pode vir em palavras, em discurso - os ritos servem para isso, sejam os ritos fúnebres, seja o 'rito' de encerramento dos encontros entre analista e analisando.

A vida só é possível quando se pode conceber um término, um fim, quando se pode morrer - o insuportável, acrescenta o psicanalista e filósofo esloveno, é a infinitude. Eu acrescentaria: muitos suicídios ocorrem para que o sujeito se livre de uma dor sem fim. Jorge Luís Borges, em O Aleph (1949), representa o Homero que conquistou a vida eterna não mais como um ser humano, mas como um monstro animalesco: o que marca a condição humana é a possibilidade de acabar - o que não acaba é mortífero, horroroso, insuportável. Não raro as figuras do suicida e do morto-vivo são associadas à melancolia, à cultura da pulsão de morte: o sofrimento melancólico não é diante da possibilidade da morte, mas sim da possibilidade de esta morte em vida durar.

 Precisamos elaborar os lutos não feitos, aparentemente impossíveis, que assombram a realidade psíquica - e também, hoje em dia, o cyberespaço que se apresenta, assim, como um campo melancolizante, onde a eterna continuidade, o eterno presente, não facilitam nem um pouco a possibilidade de transformação. 

Este quadro organizado pela Statista em 2019 nos mostra quantos perfis de pessoas mortas continuarão ativos no Facebook no ano de 2070

Comentários

  1. Nesses dias de guerras, assassinatos, desrespeito ao direito de viver de populações civis excluídas da paz fez-me bem lembrar que exatamente há 30 anos atrás o muro que separava as duas Alemanha foi aberto por um responsável politico sem que fosse disparado um tiro. Dia de festa, emoções na noite dos reencontros, olhares aturdidos de motoristas leste-oeste oeste-leste em Berlim.
    Um momento de paz, quiz acreditar que direitos humanos eram direitos aceitos e respeitados.

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