Veneza, século XVI: Arte, capitalismo e as raízes da estética neoliberal

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Danae e a chuva de ouro (TICIANO Vecellio, 1544-46)

Volta e meia, em textos recentes, me debrucei sobre a estética própria à cultura neoliberal, uma estética ostentatória, de imposição de uma imagem de potência fálica e, ao mesmo tempo, de objeto a ser adorado, consumido, atraente mas também ameaçador. Isso é abordado, por exemplo, em "Velozes, furiosos e narcísicos", de 11 de abril de 2023, bem como em "O naufrágio bilionário como verdade atuada", de 23 de junho de 2023 e ainda em "No subterrâneo do Village Mall: Banksy ou O agraciado veste Prada (e mais uma crítica a Pasternak)", de 4 de agosto de 2023, todos neste blog. Hoje testo uma hipótese a respeito das origens desta estética.

Na obra Titian,Tintoretto, Veronese: rivals in Renaissance Venice (ILCHMAN org., 2009), encontramos, além de reproduções em larga escala das obras destes três mestres do século XVI, Ticiano, Tintoretto e Veronese, interessantes ensaios a respeito da rivalidade entre os três. A partir do material e dos argumentos apresentados em dois desses ensaios, "Venetian painting in age of rivals" (ILCHMAN, 2009) e "Where the money flows: art patronage in  sixteenth-century Venice" (BROWN, 2009), pretendo discutir como, a partir da modernidade e do capitalismo, nós lidamos com o tema da singularidade - e como a psicanálise se posiciona em relação a ele.

Nos dois ensaios acima mencionados, somos situados a respeito de um momento inovador na história da arte ocidental: a imposição do estilo próprio do artista, em sua singularidade, como critério fundamental de valor da obra de arte - tanto em termos de valor econômico, quanto em termos de prestígio - o que se tornou, em seguida, um indicativo importante do que ficou conhecido como maneirismo. Ainda aprendemos nos ensaios em questão que o aparecimento do valor da singularidade do estilo do artista e de sua obra acontecem num território e tempo importantes: na cidade de Veneza, no século XVI.

São Roque em glória (TINTORETTO, 1564)

Ora, Veneza era, naquela época, o maior centro comercial e financeiro, de negócios e investimentos, da Europa, mesmo sendo estes tempos o auge dos impérios coloniais espanhol e português e o início da ascensão da Inglaterra no jogo político-econômico ocidental. Os autores sublinham a opulência da cidade, sua agitação, sua abundância e a grande riqueza de seus mercadores (o que o contemporâneo William Shakespeare também fez, com seu Shylock, em sua peça O mercador de Veneza [1596-98]). Diferente de outros lugares capitais como os ricos reinos de Espanha e Portugal, o poder econômico não se concentrava nas mãos do Rei; também diferente de Florença, em Veneza, a burguesia ascendente não se estabeleceu como dominação de um único grupo ou família sobre os demais, impondo um regime que inibia a competição econômica interna e estimulava somente a externa. Veneza, ao contrário, era uma república: o doge/duque que a governava era eleito dentro de uma casta de aristocratas, por seus pares, para um governo vitalício, obviamente em benefício de manter o status quo, qual seja, um equilíbrio de poder entre os diversos mercadores/aristocratas/clérigos/confrarias/oficinas, a nata de Veneza, e direcionar a expansão mercante da República Serenissima, o Estado mais cosmopolita entre os ocidentais naqueles tempos, para alhures com embaixadas político-comerciais-financeiras na Europa, no norte da África e no Oriente Médio. A população de Veneza se apresentava multiétnica e multicultural, muita gente para lá migrava atraída pelos negócios, pelas oportunidades econômicas, pela riqueza: ali havia italianos de várias regiões, alemães de além-Alpes, embaixadores dos países europeus mais ao oeste, eslavos, gregos, árabes, africanos e uma grande comunidade judaica.

Foi em Veneza, na esteira da competitividade econômica (que hoje os liberais chamariam de livre-comércio, oportunidades de empreender etc., vendo em Veneza um precursor do que viria a se tornar Nova York e os E.U.A. de um modo geral, no século XX, como modelo de sociedade capitalista a se imitar - ao menos no Brasil), que se desenvolveu um tipo específico de competitividade artística. Não quero dizer que não havia competição entre artistas antes - isso seria falso. Para citar apenas dois exemplos, no próprio período do Renascimento, mas anteriores à segunda metade do século XVI, dois episódios de grande rivalidade competitiva são sempre lembrados na história da arte italiana. Os dois em Florença: um no início do século XV e que de certo modo inaugura o próprio Renascimento e o outro no apogeu da arte florentina, na virada do século XV para o XVI, contemporâneo, portanto, de outra grande competição, desta vez exclusivamente econômica (mas que comporta também uma competição estética) e entre Estados: a colonização em parte pactuada, em parte disputada, entre Portugal e Espanha, dos territórios americanos.

No início do século XV, abriu-se concorrência entre projetos arquitetônicos para as obras de construção do teto da Basílica de Santa Maria dei fiori que contrabalanceou o que ocorrera na decoração das portas do Batistério em frente à igreja. Dois artistas, Filippo Brunelleschi e Lorenzo Ghiberti rivalizaram postulando os dois encargos, cada um representando uma direção artística diferente. Enquanto Ghiberti venceu o concurso para realizar a decoração das portas (1401), o projeto de Bunelleschi para o teto, sua famosa cúpula, foi o escolhido (1434). Ghiberti era um continuador e desenvolvedor do estilo gótico enquanto seu antagonista foi o primeiro renascentista propriamente dito, explorando a perspectiva, racionalizando o espaço, ocupado em demonstrar como a capacidade humana de utilizar seus próprios recursos - a razão que estrutura sua percepção e pensamento - poderia ser um valor estético tão adorado quanto a natureza e seus detalhes múltiplos, produto de Deus. Novamente, no início do século seguinte, os dois maiores nomes do Renascimento, Leonardo da Vinci e Michelangelo, disputavam um em frente ao outro, cada um pintando uma parede, a respeito de qual faria o mais belo afresco, o primeiro representando a Batalha de Anghiari, o segundo a Batalha de Cascina, para o Palazzo della Signoria (1504-06).

As bodas em Caná (Paolo VERONESE, 1562-63)

No entanto, em nenhuma destas competições, o que estava em disputa era a expressão de um estilo singular. Na primeira cena, estavam em disputa duas ideologias, duas visões de mundo, a medieval vitoriosa em 1401 e a renascentista já em 1434. Na segunda, o que estava em disputa era a habilidade técnica de cada artista bem como sua capacidade de melhor atender às demandas do contratante e se sagrar o maior artista de seu tempo.

As disputas em Veneza, na segunda metade daquele mesmo século, não eram primordialmente ideológicas e se eram disputas técnicas, não eram no mesmo sentido daquela ocorrida em Florença. Ticiano, Tintoretto e Veronese disputavam um mercado e, para isso, utilizavam de estratégias de mercado não utilizadas até então, que hoje são, na linguagem corporativa, enunciadas com palavras em inglês: networking, marketing, branding etc. Em parte essa novidade se deve ao desenvolvimento da pintura a óleo em tela, pois com ele duas coisas se tornaram possíveis nessa disputa: 

1) o óleo permite uma pintura em camadas e um uso das cores não possível na tempera (pintura em madeira, o que vigorava até então); as cores se tornam mais vivas; o traço do pincel não seca rapidamente, tornando possível pinturas menos desenhadas e sim mais orientadas para a exploração cromática. Aí está uma característica pictórica da arte veneziana daqueles tempos, ao menos desde Giorgione: a sensualidade das cores e das pinceladas mais fluidas, dando um toque quase empirista, 'realista', em comparação com a arte de Florença, marcada por um idealismo neoplatônico, mais interessada na forma pensada que na obra material realizada (ARGAN, 1984). Em Veneza, aos poucos passou-se a pintar de forma menos ocupada a realizar o esboço e mais em tomar o esboço como ponto de partida de uma realização nova e não prevista nele, a obra terminada. Neste contexto, as pinceladas se tornam muitas vezes perceptíveis na obra acabada - e os três mestres venezianos inventaram usos do pincel, marcas, que identificavam a singularidade de suas obras, o mesmo valendo na escolha da paleta. Ticiano preferia cores fortes e, com o tempo, experimentou uma transição das manchas no estilo de seu mestre, Giorgione (como em Retrato de um homem com barrete vermelho, de 1510), para marcas de pincel que mais pareciam obras inacabadas (como em sua Pietà, de 1570-76). Tintoretto preferiu as cores escuras, ocres e terrosas; quanto a seu uso do pincel, ele era, comparativamente, mais agressivo e marcado, com ziguezagues e rabiscos, tal como suas cenas turbulentas (por exemplo, O milagre do escravo, de 1548, para o estilo agressivo e A última ceia, de 1594, para sua paleta escura). Já Veronese preferiu cores pastéis, suaves com pinceladas elegantes e repetitivas, mas deixando rabiscos aqui e acolá, quase como assinaturas (p.e. São Jerônimo no deserto, de 1580).

Retrato de um homem com um barrete vermelho (TICIANO Vecellio, 1510)

2) a tela é facilmente transportável, é leve. Com isso, a obra pode ser feita, em segredo, na oficina do artista, causando, ao ser apresentada, o efeito de novidade surpreendente - tal como o lançamento de um novo produto no mercado. Antes, quando um pintor era contratado para embelezar as paredes de um edifício (um palácio, uma igreja), ele teria de trabalhar diretamente sobre os muros, seu trabalho era local, utilizando da técnica do afresco. O artista tinha de se mudar para o destino onde sua obra seria realizada e permaneceria; ficaria lá para trabalhar até terminá-la, de modo que ocupava grande parte de sua agenda com tal empresa. O óleo sobre tela mudou as coisas e Ticiano se beneficiou disso primeiramente. Ele pintava encomendas para a corte da Espanha, para locais, para a província, para o resto da Itália e também para o Sacro Império Germânico, tudo feito de seu ateliê, sozinho ou supervisionando seus alunos - ele nunca saiu de Veneza. Assim, a obra não era realizada sob os olhos e instruções do demandante; a demanda era, por isso, mais vaga - algo como 'um retrato equestre', 'uma cena alegórica do amor', uma 'cena bíblica que combine com o ambiente' -; a encomenda era, portanto, por um trabalho daquele artista mais do que por uma forma pré-discutida, determinada que se adequasse ao esperado. Agora se esperava o inesperado, ser surpreendido com a obra de um artista que conquistou tamanha fama e que, ao mesmo tempo, se pudesse reconhecer o estilo dele nela, o que garantiria sua procedência e seu valor. A obra de arte se valorou evidentemente como indicação do gênio do artista como criador singular que impunha seu estilo ao outro. O valor pendia para o autor mais do que para o tema ou para a adequação da obra ao espaço destinado a ela. As paredes e tetos do Palácio dos Doges (1580) não foram realizadas por Tintoretto como afresco, mas a óleo sobre tela, de modo que as obras chegavam prontas em seu destino, elas foram feitas em seu estúdio, causando surpresa tanto no público comum, quanto em seus concorrentes quando 'reveladas'; o mesmo se deu com seu São Roque em glória (1564) para o teto da Scuola Grande di San Rocco ou com a Alegoria da música (1556-57) de Veronese para a Libreria Marciana.

O uso do óleo sobre tela também esteve presente em outro importante, porém menor, centro comercial europeu: a recém-nascida Holanda. Ali também havia um desenvolvimento econômico evidentemente embrionário do capitalismo tal como o conhecemos, mas a organização comercial holandesa também era marcada pelos valores protestantes de sobriedade, austeridade e  trabalho dignificante da existência. Ao contrário do que se viu em Veneza, a pintura lá se tornou, em pouco tempo, próspera a partir de uma divisão em nichos de especialistas em decoração dos interiores das residências dos burgueses, os quais poderiam cultivar sua riqueza apenas em espaços nos quais ela não aparecia como mau gosto pecaminoso: longe dos olhos do público externo. O prazer do ócio sensual estava confinado ao espaço privado, o negócio e o trabalho orientariam o espaço público. Enfim, a sociedade holandesa, protestante e também capitalista e competitiva, organizou sua arte menos centrada na disputa pública por atenção, pelo olhar do outro e mais no olhar discreto, mais orientado para o trabalho cotidiano do que para a ostentação católica.

Portanto, a animação do prazer sensual através de imagens atraentes do mundo católico parece ser também uma condição de possibilidade para a emergência das obras de Ticiano, Tintoretto e Veronese.  Mas toda esta liberdade sensual expressada por estes artistas na construção e exibição de suas obras também se deve à situação política de Veneza que buscava manter a concorrência nos negócios como mola propulsora da República. Havia uma concorrência constante entre diversos pintores, concursos feitos por encomendas de nobres, de confrarias, da Igreja, de ricos mercadores, de estrangeiros etc. A concorrência e a vontade de conquistar fama, status e riqueza levou cada um deles a desenvolver diversas estratégias para prevalecer sobre seus rivais - desde modos escusos de conseguir a preferência em concursos fraudulentos, passando por jogos de favores, amizades, produções de obras impressionantes (em tamanho, formas, cores, originalidade) em espaços em que obras de algum de seus concorrentes já existisse exatamente para ofuscar estas últimas, até mesmo depreciação dos outros na opinião pública através de calúnias. Mas destaco, dentre as estratégias, uma que me interessa particularmente: estes artistas entenderam que criar um estilo original e singular, obras de arte que só poderiam ter sido feitas por aquele mestre, eram uma publicidade e tanto: elas, ao mesmo tempo, afirmavam um estilo único, o tornavam conhecido e rentável.

O milagre do escravo (TINTORETTO, 1548)

Poder-se-ia, assim, considerar que, no nascimento do capitalismo de concorrência liberal, nasceu uma característica marcante da arte moderna: a tomada da obra de arte como objeto único, de valor, cobiçado como singular e digno, enquanto fosse um sucesso comercial. Como se viu na afirmação do estilo próprio do artista por parte dos venezianos do Cinquecento, não se tratava somente do valor do objeto do trabalho, mas também da singularidade do estilo sublinhada pela obra. A subjetividade singular é, então, alçada à dimensão de valor social conquanto gere sucesso a quem a expressa. 

Se se pode ler A ética protestante e o 'espírito' do capitalismo (WEBER, 1904-05) como uma tentativa de articular o capitalismo liberal de uma figura como Benjamin Franklin àquela ética protestante austera já encontrada na Holanda do final do século XVI, genealogicamente, parece que precisaríamos dizer que na estética e no capitalismo venezianos se encontram raízes para o estilo neoliberal de subjetivação que conhecemos hoje em dia e que foi delineado por Michel Foucault como a tentativa de o sujeito ser empresário de si mesmo (FOUCAULT, 1978). O empresário de si mesmo modela a si mesmo como produto a ser vendido no mercado de trabalho. O psicanalista Joel Birman acrescentou a esta tese o seguinte, desenvolvido a partir da ideia de sociedade do espetáculo de Guy Debord (1967): que, ao se oferecer como produto, como objeto a ser colocado no mercado, o sujeito contemporâneo estetiza sua própria imagem, seu comportamento, sua performance, buscando atrair a atenção de algum consumidor e, assim, elevar seu valor - financeiro, mas também existencial (2000). Na Veneza do século XVI o valor do artista era avaliado pelo espetáculo proporcionado por sua obra, um objeto externo a ele - é verdade -, todavia este objeto só era particularmente valioso pois nele se depositavam marcações que indicavam quem é o autor daquele espetáculo, quem era o gênio por trás da obra, quem era a singularidade que ali desfilava. Ali começavam a se embaralhar três coisas que se amalgamaram de uma vez por todas na cultura neoliberal: o sujeito, sua obra e seu valor social. É verdade que se tratavam de artistas e não de pessoas comuns, mas a estetização da existência de nossos tempos é herdeira de um processo que ali se insinuava.

O próprio termo estetização da existência não necessariamente tem de remeter a este amálgama como nós o experimentamos no primeiro plano de nossa cultura, qual seja: julgar o sujeito pelos padrões hegemônicos de avaliação de nossa sociedade capitalista que, como Marx mostrou (1867), atingem uma objetividade adequada aos negócios com a marcação do valor monetário de troca, mas que escamoteiam o valor do trabalho. A psicanálise nos permite ainda acrescentar: escamotear o trabalho, o dispêndio de elaboração envolvido num processo, obnubila todo um circuito pulsional, toda uma cadeia associativa, toda uma fantasística por onde desfila o desejo do sujeito, sua marca aguda de diferença. A obra final oferecida ao olhar e ao consumo do outro expressa certamente uma fantasia, mas diríamos nós, uma fantasia egossintônica que retira a atenção daquelas que não encontrarão valor no olhar do outro (LAPLANCHE, 1999).

São Jerônimo no deserto (Paolo VERONESE, 1580)

Se desvincularmos o valor econômico garantidor de sucesso do valor de um objeto, poderemos fruir e reconhecer valor na existência de mais coisas que não somente aquelas. Ora, houve artistas modernos que produziram uma obra que se impunha com uma estilística singular aguçada e, no entanto, não comercializaram sua produção, seja porque não houve compradores interessados, seja porque decidiram que aquelas obras não deveriam ser levadas ao mercado. Os exemplos são inúmeros, mas posso ainda assim citar alguns dos mais conhecidos: Edgar Allan Poe e Franz Kafka na literatura. Van Gogh na pintura. As últimas composições de Beethoven, na música. Camille Claudel na escultura. No Brasil, podemos lembrar de dois artistas pacientes psiquiátricos cujas obras foram feitas em seus internamentos e que não foram destinadas à venda nem à fruição de um público de arte: Arthur Bispo do Rosário e Aurora Cursino dos Santos. É verdade que hoje conhecemos estas obras exatamente porque após a morte destes criadores elas foram inseridas no mercado das artes e ganharam muito prestígio e sucesso. Mas não foram criadas para isso, sua mola propulsora não foi o valor econômico - e, talvez, por isso, todas elas apresentem uma estética não muito bem ajustada ao mercado de seu tempo. Se, posteriormente, o mercado se apropriou delas, inserindo-as no sistema de trocas capitalista, isso não se deu sem o gosto dos consumidores ter sido mudado por efeito daquelas mesmas obras (bem como de outras direcionadas ao mercado). Quero dizer que estas obras nos mostram como a experiência estética de uma cultura não se amplia e transforma apenas 'de dentro', como foi o caso das obras de Ticiano, Tintoretto e Veronese, mas também 'de fora', ou, melhor, de suas margens.

O sucesso tardio destas obras de arte modernas nos ajuda a pensar na possibilidade de reconhecer valor no que não é imediatamente de valor comercial, nem é um retorno ao valor único medieval: Deus. Nelas também há uma singularidade que se afirma, mas que não é reconhecida publicamente como de valor de troca imediato. Seu valor está, dentre outros motivos, na ousadia de se afirmar esteticamente como estranho ao que se supõe que o outro espera ver. Ora, a psicanálise se alinha a esta posição ética e estética (FREUD, 1919). Quando Freud deixa de tomar os sintomas e atos falhos como defeitos ou erros do sujeito que quer performar bem e assume que eles também são expressões bem-sucedidas das fantasias carregadas de desejo e das modalidades de gozo do sujeito, ele lhes dá uma escuta, uma visibilidade, um reconhecimento, uma dignidade. Não se trata mais de retirá-los do mercado de trocas humanas para que a cena de venda e consumo de si funcione melhor, mas, ao contrário, se trata de encontrar valor no que não é inteiramente suscetível de se traduzir na fantasia mercadológica capitalista. Parte da experiência humana é afirmadora de uma singularidade não capturada no jogo do vareio de afetos, mas, nem por isso, deixa de existir. 

Qualquer psicanalista sabe que quando ao sujeito é autorizado expressar suas singularidades, suas idiossincrasias, suas esquisitices, seu estilo singular, no convite à associação livre e à interpretação em análise, sua captura num sistema de trocas que muitas vezes o faz sofrer vacila e ele encontra a possibilidade de um outro tipo de reconhecimento para além do objeto monetizável, o reconhecimento de si como sujeito singular.

A última ceia (TINTORETTO, 1594)

Deste modo, podemos voltar a Ticiano, Tintoretto e Veronese e propor que suas trajetórias artísticas indicam o quanto o moderno valor dado à singularidade nasceu conjugado com o capitalismo e a compactação da ideia de valor em valor financeiro. Mas, ao longo dos séculos, um processo se deu: foi possível reconhecer valor na afirmação da singularidade em si, mesmo que o valor financeiro não a acompanhasse. Esta segunda posição não é, todavia, a hegemônica, mas existe e se encontra, por exemplo, na ética que orienta o ofício do psicanalista e parte da crítica, filosofia, historiografia e prática da arte. Hoje é possível, até mesmo, retomar as obras destes mestres ávidos por fama, sucesso e dinheiro, pôr entre parênteses seus objetivos, e apreciar suas obras com interesse tão somente nas expressões estilísticas considerando-as valores em si. 

Assim, podemos dizer que o que está em pauta aqui é uma lógica semelhante àquela que Freud utiliza para pensar o desenvolvimento da pulsão em seus Três ensaios sobre a sexualidade (FREUD, 1905): segundo o autor, quando a mãe dá o seio, pela primeira vez, a seu rebento, além de nutri-lo ela o erotiza, ele sente prazer; de modo que ele buscará repetir tal experiência na segunda mamada e quando o seio não estiver presente ou não lhe for dado, buscará objetos substitutos através dos quais tentará reencontrar aquela experiência de prazer perdida. Seu erotismo, que inicialmente parecia intimamente cooptado pela nutrição, em não muito tempo se ligará, por exemplo, ao dedo, à chupeta, ao paninho. A pulsão, portanto, nasce apoiada na necessidade, mas tem - ao contrário desta -, como característica, uma pressão constante por descarga (id., 1915), o que faz com que se busque novos objetos, dentre eles muitos não mais propícios a suprir necessidades, mas sim a satisfazer parcialmente a pulsão e a possibilitar algum prazer. Numa lógica análoga, a afirmação da singularidade como valor parece ter nascido da disputa capitalista por prestígio e sucesso comercial no século XVI, mas nos séculos XIX, XX e XXI se distanciou de sua cola de origem e não está mais exclusivamente subsumida àquela, mesmo que a todo momento o capitalismo seja imperial e busque tudo abraçar e tornar cada novidade singular negociável economicamente (HARDT & NEGRI, 2000).

Tal analogia poderia ir mais longe se levássemos em consideração que é possível, psicanaliticamente, considerar a singularidade como enformada justamente a partir dos trilhamentos pulsionais construídos numa história de vida: fixações, defesas contra a pulsão, cadeias de objetos substituídos, fantasias de satisfação etc. Assim, inspirado nas reflexões de Derrida (1966) e Deleuze (1968) sobre assuntos que tocam o nosso tema, a subjetividade que interessa à psicanálise, considerada dividida entre um isso indomável e um eu alienado na realidade externa, no olhar do outro (FREUD, 1923; LACAN, 1949), seria pensada, seja em relação ao sistema biológico de satisfação da necessidade, seja em relação ao sistema capitalista de trocas, como aquilo que se repete como deriva diferencial em relação a tentativas de repetição de um mesmo.

Pietà (TICIANO Vecellio, 1575-76)

De certo modo, o texto de hoje serve também como uma retificação ética e ao mesmo tempo um reconhecimento do lugar importante na história que o desenvolvimento capitalista ocupa. Se foi dali que emergiu o sentido moderno de valorização democrática das diferenças, num primeiro tempo dialético, foi dali que, num segundo tempo, as multiplicidades passaram a ser capturadas por seu valor de mercado, sendo obrigadas a silenciar ou apagar as possibilidades de expressão para se sujeitarem a um denominador comum. Se o capitalismo teve como efeito a morte de Deus e do texto bíblico como valor único e avaliativo de tudo (como se percebe na estética medieval [ECO, 1987]), ele erigiu um único valor como substituto: o dinheiro. As expressões singulares que não são facilmente domadas por este valor, num outro tempo dialético, puderam ser reconhecidas em sua dignidade, como afirmações de uma subjetividade singular, com direito à existência como quaisquer outras: eis a força radicalmente democrática do percurso e intervenção de muitos artistas modernos e também da psicanálise.

Comentários

  1. O elogio deste olhar, capaz de apreender a importância da fatura artística não assujeitada ao ‘valor’ é crucial; mais que isso, é vital mesmo, ainda que sua temporalidade seja fugidia. VP.

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