Psicanálise, ciência e a questão do 'pseudo'
- IF YOU WANT TO READ THIS TEXT IN YOUR LANGUAGE, SEARCH FOR THE OPTION "Tradutor" (Translator) IN THE TOP LEFT OF THE SCREEN -
Tendo em vista a recente nova onda de acusações de que a psicanálise deveria ocupar, no campo epistemológico, um mesmo lugar nada glorioso de resíduo pseudocientífico, ao lado da astrologia e da homeopatia (por exemplo), onda decorrente da publicação e grande repercussão de Que bobagem! pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério (2023), obra conjunta de Carlos Orsi e Natalia Pasternak, muitos psicanalistas, psicólogos, psiquiatras, epistemólogos e jornalistas têm se manifestado de forma contundente contra tal ação. Não se trata somente de um ataque à psicanálise, mas também de uma ereção da ideologia positivista como única forma de cientificidade possível -, com isso, autorizando veladamente o estudo e administração da subjetividade que se pratica unicamente na psicologia cognitivo-comportamental, nas neurociências e na psiquiatria organicista, aliadas de uma poderosa indústria farmacêutica que não para de crescer desde a década de 1950.
![]() |
Paracelso, o alquimista (Quentin MATSYS, 1493-1541) |
Em dois textos anteriores já publiquei críticas a essa empreitada, sinalizando fundamentalmente o reducionismo positivista, bem como os problemas éticos e políticos que orientam tal atitude. São eles os textos "Psicanálise, velhice e solidão (e uma crítica a Pasternak)", de 20/07/23 e "No subterrâneo do Village Mall: Banksy ou O agraciado veste Prada (e mais uma crítica a Pasternak)" de 04/08/23; ambos neste blog. Desta vez escrevi um texto dedicado exclusivamente a explicitar ao leitor a posição psicanalítica sobre o assunto - me atenho à de Freud, principalmente, uma vez que é ele quem é mais criticado pelos autores.
Tomo, de saída, como referência o último capítulo do livro Psicopatologia da vida cotidiana (FREUD, 1901), intitulado "Determinismo, crença no acaso e superstição - alguns pontos de vista", uma das principais intervenções epistemológicas do autor. Porém, antes de extrair os argumentos fundamentais deste capítulo, quero situar o leitor em relação ao que concerne este livro.
Dando prosseguimento ao que fez no então recém-publicado A interpretação dos sonhos (id., 1900), que mais tarde se tornaria sua obra mais conhecida, o inventor da psicanálise se esforça novamente em provar para seu leitor que o conceito de inconsciente não somente ajuda mas parece necessário para se compreender certos fenômenos psíquicos da conduta humana. Freud havia tentado demonstrar que enquanto a consciência está ausente, ainda há trabalho psíquico - e mais: que este trabalho psíquico é movido pelo esforço de expressão de desejos que, ao que tudo indicava, o indivíduo em vigília não tinha dado a devida atenção ou que mesmo nem se recordava de tê-los sentido. O método da interpretação dos sonhos e descoberta desses desejos, todavia, não é um método de adivinhação: ele é um método que faz jus ao termo análise. O sonhador é convidado a desmembrar seu relato do sonho em partes e a associar livremente a respeito de cada uma delas - o que se sucederá é o seguinte: as associações referentes a cada parte do sonho convergirão em alguns pontos, o que exporá ao sonhador e ao analista um tema recorrente, mas que não se expressava de forma translúcida à consciência; esse tema é um desejo que Freud terá inevitavelmente de chamar de desejo inconsciente.
![]() |
Morfologia do crânio de Sigmund Freud (Salvador DALI, 1938) |
O motivo de não termos tido lembrança de tal desejo se deveria ao que se percebe reiteradamente com tal procedimento: que tal desejo é incômodo de se assumir conscientemente pois se refere a algum assunto moral controverso - sexualidade, narcisismo, agresividade (contra si ou contra o outro), por exemplo. Deste modo, Freud passa a postular haver um trabalho psíquico voltado a não nos permitir lembrar conscientemente de tais desejos, mantendo-os inconscientes - o que não os impede de, quando a consciência dorme, produzir, por exemplo, sonhos. Assim são apresentados dois conceitos muito importantes para toda a psicanálise: Inconsciente (o 'lugar' onde permanecem os desejos não lembrados por um esforço psíquico) e Recalcamento (o trabalho constante de retirada de pensamentos da consciência).
Antes trabalhando com casos psicopatológicos (BREUER & FREUD, 1895), Freud já havia descoberto o recalcamento e o inconsciente; no entanto, talvez se tratassem apenas de fenômenos mórbidos; a descoberta de que a estrutura do funcionamento do trabalho do sonho é semelhante à dos sintomas psiconeuróticos é o que verdadeiramente foi revolucionário, pois a partir daí a psicanálise passou a ser um campo de estudos da mente humana e não só da doença, além do mais, também a partir daí, tivemos de reconhecer que o inconsciente e o recalcamento são fenômenos psíquicos gerais e não só de um pequeno grupo de humanos chamados psiconeuróticos, afinal todo mundo sonha. A mente humana passou a ser considerada como marcada por uma divisão e um conflito psíquico irrevogáveis em seu funcionamento normal, e assim, necessariamente não pode ser mais compreensível a partir do postulado organizador da modernidade filosófica e científica clássica, aquele de Descartes de que a existência do eu consciente é identificada à existência do pensamento. Há pensamento inconsciente e o eu não sabe. Por isso outro psicanalista, Jacques Lacan, interveio sobre o cogito cartesiano reescrevendo-o a partir do acontecimento psicanalítico, em "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud" assim: "Penso onde não sou, logo sou onde não penso" (LACAN, 1957/1998, p. 521). É disso que se trata quando se fala, em psicanálise, de sujeito dividido.
Vejamos, agora, o que encontramos em Psicopatologia da vida cotidiana (op. cit.): que o inconsciente não está presente apenas em sintomas neuróticos ou na atividade psíquica durante o sono, no trabalho do sonho. Aqui Freud mostrará que o inconsciente participa da vida cotidiana, enquanto estamos saudáveis e em vigília; ele funciona paralelamente ao consciente. Como Freud mostra isso? Através de inúmeros fenômenos cotidianos realizados inequivocadamente pelo próprio indivíduo que não se reconhece subjetivamente neles: lapsos de memória, trocas de nomes, erros (não por ignorância, mas quando o sujeito sabe a correção), atos falhos, ações automáticas, memórias deturpadas, atos 'espontâneos' ou distraídos. Jung e Bleuler já haviam demonstrado que a escolha de números e nomes nunca é arbitrária, mas condicionada por ideias inconscientes (JUNG & BLEULER, 1906); mais tarde, a partir de pesquisas de Sandor Ferenczi, podemos incluir nesta série, também, os sintomas transitórios (FERENCZI, 1911-12). Freud experimentou convocar os indivíduos a analisar e interpretar tais fenômenos do mesmo modo como era feito com os sintomas e sonhos - e o resultado foi o de, novamente, fazer aparecer um desejo inconsciente associado a conteúdos incômodos (fundamentalmente ligados à sexualidade e/ou à agressividade). A estrutura da psicopatologia da vida cotidiana é a mesma dos sonhos e sintomas: e, assim, é preciso reconhecer que o inconsciente funciona o tempo todo, mesmo enquanto a consciência parece reger sozinha a psique.
![]() |
Natalia Pasternak e Carlos Orsi |
Se o leitor ainda tem dúvidas quanto ao assunto quando tenta encontrar o sentido de suas trocas de nomes, isso se deveria justamente ao trabalho de recalcamento que nos impediria de acessar o conteúdo inconsciente de tais trocas. Nossa mente resiste a acessar o que ela mesma ejetou da consciência. Mas basta fazermos o exercício de tomar as trocas de nomes realizadas por outras pessoas que veremos que aceitamos com muito mais facilidade que não se tratam de acidentes apenas, que algo inconsciente escapole ali, mesmo que aquelas pessoas não reconheçam isso, tal como o próprio indivíduo procede a respeito de si. Ora, vê-se que o sujeito tende a proteger a consciência de seus desejos inconscientes mas admite com mais facilidade que outros têm desejos inconscientes que se insinuam em seus atos e discursos, mesmo que eles não admitam isso. O melhor exemplo é o da troca de nome de quem se ama: ninguém reconhece como puro acidente a troca do nome do/a esposo/a ou namorado/a por outra pessoa - quem escuta esta troca reconhece que aquilo revela que o sujeito não assume seu dito, um não pensado conscientemente, e que se refere a algo desagradável.
Sendo este o conteúdo do livro de Freud, é muito interessante como ele o arremata no capítulo XII. Ali relembra o leitor que o funcionamento da cadeia de pensamentos consciente não se apresenta contínuo, mas descontínuo - mudamos de assuntos, ideias 'brotam' na mente, nossa percepção nos atrai para determinadas imagens. Mas o método de pesquisa psicanalítico demonstra que, ao contrário do que parece, há uma continuidade no fluxo associativo de ideias, mas nem todas são conscientes. Não há arbitrariedade no funcionamento do aparelho psíquico e as lacunas de memória do processo associativo indicariam onde está o material inconsciente evitado pela consciência. Enfim, a primeira pontuação de Freud, neste capítulo, é a de que é possível tratarmos o funcionamento psíquico como determinado por uma cadeia de associações, e que é possível demonstrar isso após uma análise do material feita pelo próprio indivíduo - isso seria muito mais rigoroso do que tomar a mente seja como uma entidade puramente espontânea ou como uma entidade que se autocontrola de modo transparente. Tanto uma posição como a outra, no entanto, parecem ser as ilusões que garantem ao pesquisador crer que sua mente é uma variável controlável em sua pesquisa científica, separando-a claramente de seu objeto de estudos, mas isso é falso: enquanto o sujeito não se ocupa de pôr em análise sua posição na pesquisa científica, permanecerá ignorante a respeito dos desejos inconscientes que a tornam tendenciosa. Portanto, a advertência freudiana é de uma preocupação condicionante da prática científica séria - e não anti-científica ou falsamente científica. Freud denuncia e cuida para que se garanta, de modo criterioso, o rigor da pesquisa, apesar da dificuldade inalienável de que nossa consciência não domina nossa mente, e ele o faz de modo honesto para consigo, para com o objeto e para com o destinatário da produção científica. Essa honestidade, diga-se de passagem, se repete em toda sua obra escrita, na qual se preocupa sempre em ser claro, expondo as dificuldades, os fracassos, os limites e as reformulações de seu pensamento e técnica.
A segunda pontuação importante de Freud, neste capítulo, é a de que apesar de nós, na vida cotidiana, não passarmos conscientemente o tempo todo tentando interpretar o sentido inconsciente por trás de cada ato ou palavra do outro, em um quadro psicopatológico isso acontece: a paranoia. O paranóico observa os mínimos gestos do outro, "...interpretam-nos e fazem deles a base para extensas conclusões" (FREUD, 1901, p. 251), geralmente atribuindo a cada gesto desses uma mensagem, um recado a ele mesmo - o nome psicopatológico desse modo de funcionamento do pensamento é delírio de auto-referência. Em suma, o paranoico rejeita a categoria do arbitrário, mas, ao contrário do psicanalista, para ele só não há arbitrário no outro, não em si mesmo. O paranoico se defende do determinismo de seu psiquismo, ou seja, de seus desejos inconscientes, mas não os recalca - ele os projeta no outro e por isso se sente capaz de interpretá-los, pois, de algum modo, ele 'sabe' deles (daí advém sua convicção na veracidade deles, pois eles dizem mesmo a verdade [não do outro, mas de si]). Ou seja, se paranoico e psicanalista reconhecem o determinismo da psicopatologia da vida cotidiana, o primeiro só o reconhece no outro (jamais em si) e interpreta o outro a partir das ideias que lhe vem à mente; já o psicanalista admite o determinismo psíquico como modus operandi da realidade psíquica, não da realidade externa: ou melhor, se há determinismo na realidade externa, o sujeito só é capaz de descobri-lo através da pesquisa metódica e científica, não projetando suas ideias.
![]() |
Jacques Lacan |
E mais, acrescentaria o rigor psicanalítico: o único determinismo psíquico que o sujeito - psicanalista ou não - é capaz de acessar é aquele tornado explicitado conscientemente através do método psicanalítico de partição do conteúdo evocado e subsequente associação de ideias até se chegar no material olvidado. Apenas o que é tornado explicitado conscientemente através da fala ou escrita servirá para preencher as lacunas da consciência e demonstrar o encadeamento inconsciente - seja ao psicanalista, seja ao paciente. Não há adivinhação, não há antecipação de conteúdo, não há projeção.
Além do paranoico, o supersticioso é outro tipo - no caso, não psicopatológico - que aposta no determinismo como explicação da experiência humana. Mas, novamente há uma diferença óbvia entre o pensamento supersticioso e o psicanalítico. O primeiro supõe que acontecimentos externos à causalidade de sua realidade psíquica têm efeitos determinantes sobre a vida psíquica do sujeito. Crer que se um gato preto atravessar a rua na frente gera azar, que se eu - um torcedor anônimo - não lavar a minha camisa, meu time de futebol, que acompanho pela TV, vencerá, ou crer que a configuração dos astros na data do nascimento indica um tipo de personalidade a se desenvolver são da ordem da superstição porque remetem a uma cadeia de influências não explicitada. Mais do que isso, remetem a uma cadeia de determinações de fatos extrapsíquicos capazes ora de alterar o sujeito, ora, ao contrário, uma cadeia de atos do sujeito capazes de alterar uma realidade que não tem nenhuma relação com aquele sujeito. O psicanalista, ao contrário, se recolhe para seu objeto de estudos - a realidade psíquica - e se dedica a tornar consciente a cadeia de associações que torna claro o determinismo; quanto à realidade externa, o psicanalista evidentemente admite que ela tem influência importante sobre o sujeito, mas é apenas o sujeito afetado é quem pode mostrar qual é a influência, explicitando-a ao psicanalista através de sua fala, ato revelador de sua realidade psíquica, o modo como ele interpreta e elabora o que a realidade externa lhe expõe. No final das contas, então, o psicanalista estará escutando e se ocupando é mesmo da realidade psíquica do paciente - é essa que ele escuta, é sobre ela que ele produz conhecimento, que ele descobre um funcionamento, uma estrutura. Ele assume sua ignorância quanto ao que não é desta ordem. As leis que regulam a subjetividade não são idênticas às leis que regulam a realidade externa, seja ela tomada como natural com suas próprias leis (objeto de estudo das ciências naturais), seja como social, também com suas próprias leis (objeto de estudos das ciências humanas). A natureza e a cultura incidem o tempo todo sobre o aparelho psíquico, de certo modo o determinam, mas o estudos das ciências naturais e humanas parece insuficiente para se compreender as leis de funcionamento dele.
"Não creio que um acontecimento de cuja ocorrência minha vida anímica não tenha participado possa ensinar-me algo oculto sobre a forma futura da realidade; acredito, porém, que uma manifestação inintencional de minha própria atividade anímica de fato revele alguma coisa oculta, muito embora seja algo que só pertence a minha vida anímica [não à realidade externa]; creio no acaso (real) externo, sem dúvida, mas não em casualidades (psíquicas) internas. Com o supersticioso acontece o contrário (...). Primeiro, ele projeta para fora uma motivação que eu procuro dentro; segundo, ele interpreta mediante um acontecimento o acaso cuja origem atribuo a um pensamento" (id., ibid., p. 253)
![]() |
Cartaz para a Turnê do Gato Preto (Théophile STEINLEIN, 1896) |
E Freud vai além. Propõe que o pensamento religioso, a crença em uma força sobrenatural, transcendental, metafísica, não é nada mais do que "a psicologia projetada no mundo externo" (id., ibid., p. 254). Propõe como operação da psicanálise "transformar a metafísica em metapsicologia" (id., ibid.). Freud aproxima, assim, paranoia, superstição e religião e as põe num lugar distante da psicanálise - e junta a elas estão as tais pseudociências e a magia. Quanto à psicanálise, a põe do lado da ciência, ao contrário de Orsi e Pasternak. Freud defende que a psicanálise não tem cosmovisão [Weltanschaung] própria, ela se alinha à Weltanschaung científica e moderna.
A cosmovisão científica e moderna a que Freud se refere é melhor descrita na última conferência que ele escreveu (id., 1932-33). Ali, conforme o que já desenvolvera em O futuro de uma ilusão (id., 1927), a explicará como não acabada, parcial, incompleta, reconhecedora dos limites do conhecimento (tanto em extensão, como no próprio modo de produção do mesmo), o que revela a sagacidade epistemológica, nem um pouco desavisada, deste pesquisador. A ciência não é apresentada como um campo de conquista e certeza sobre o real, mas sim como um saber parcial, que admite sua parcialidade e reformulação como valor - reformulação orientada pelas imposições que o real lhe coloca.
Desse modo, as críticas direcionadas à psicanálise que sublinham seja sua incompletude ou incerteza, na verdade, do ponto de vista científico-moderno de Freud, seriam elogios. Freud reconhece resquícios de pensamento religioso e totalizante, próximos à paranoia, na demanda de completude ou certeza. Assim, sua crítica pode ser aplicada a um campo como o da mágica como a um outro bem diferente como o do positivismo: cada qual transforma em fetiche a certeza (a primeira através da crença da deriva hermética ao significado último [ECO, 1990] e a segunda através da suposta depuração do ponto duro e irrefutável do fato, da evidência, o que parece ser o caso da posição de Orsi e Pasternak).
![]() |
Umberto Eco |
Freud, ao lembrar que é específico do método científico dar-nos "fragmentos de supostas descobertas, as quais não consegue tornar coerentes entre si", colecionar "observações de constâncias no curso de eventos que dignifica com o nome de leis", obter um "reduzido grau de certeza que ela confere a seus achados" e que o que a ciência ensina "é provisoriamente verdadeiro. (...) O último erro é, então, qualificado como verdade", nos mostra uma valorização da finitude encetada na experiência moderna como valor e reconhece a psicanálise conforme a este método (FREUD, 1932-33, p. 168), chegando mesmo a escrever que "O progresso no trabalho científico é o mesmo que se dá numa análise" (id., ibid., p. 169): ou seja, não só o método de pesquisa psicanalítico faz jus ao campo da ciência como é exatamente o que faz também o paciente em sua análise - ele também constrói um saber parcial, fragmentário a respeito de sua realidade psíquica, tornando-a parcialmente consciente. A ciência não é nem um constructo acabado, um sistema fechado nem sabe definir-se com clareza. É, antes de tudo, um método a que Freud identifica o método psicanalítico e seus efeitos: a quebra de ilusões - ou, dito de outro modo, a preponderância do princípio de realidade ao princípio de prazer que, aqui, resumidamente pode ser dito assim: o reconhecimento de que para se dominar e obter prazer, é ineficaz desconsiderar o sempre presente desprazer, a inadequação, a incompletude e a insatisfação. Ao invés de uma promessa de tudo saber, dominar e gozar, enfim, de felicidade ingênua, o método científico nos põe diante da parcialidade desta experiência - o que não impede que se possa obter algum prazer -; nesse sentido, a psicanálise funcionaria tal qual tal método.
Umberto Eco, em Os limites da interpretação (op. cit.) nos indica que o objeto sobre o qual se debruça a ciência da semiologia é o signo, indicando, tal como Pierce, que um signo é um objeto que indica algo a mais. Dito de outro modo, a experiência do signo leva o humano a produzir uma interpretação que vise dar sentido ao signo, considerando-a como a explicitação deste algo a mais. Ora, mas a interpretação, ela mesma, também pode, num segundo momento, ser tomada como signo de algo a mais - o que alavancaria uma nova interpretação da primeira interpretação. Assim, o processo é sempre aberto e ad infinitum. Tudo que tomamos como signo ou texto se abre a uma interpretação. Há interpretações que se adicionam às primeiras, formando uma cadeia aberta, porém enriquecida a cada vez; há também interpretações como as mágicas, esotéricas, herméticas, que parecem permitir se interpretar qualquer coisa a respeito de qualquer coisa, sem critérios muito claros. Esse processo hermético seria, indica Eco, contrário ao método científico o qual também é um processo de interpretação de signos/textos, dessa vez tomando os chamados dados da natureza como signos de algo que não se captura, quem sabe uma constância renomeada de lei?!
A diferença, para Eco, entre o método científico de interpretar para o não ou pseudocientífico estaria no seguinte: o método hermético aposta numa unidade última, nunca encontrada, que torna o universo contínuo e, por isso, concatenado, onde tudo se articula, logo, qualquer coisa realmente remeteria a qualquer coisa e todas elas remeteriam a um segredo que as une, que as explica, segredo esse jamais alcançado, mas sempre suposto. Trata-se de algo idêntico ao que Foucault descreveu como episteme do Renascimento (FOUCAULT, 1966). O método científico, ao contrário, reconheceria que a experiência de abertura seria própria do efeito do signo, incapaz de ser interpretado senão por novos signos que, na repetição, indicam aquilo que Lacan evidenciaria como diferença indelével entre o campo simbólico e o real (LACAN, 1975-76) ou que Foucault indicaria como característica da episteme moderna (op. cit.): a linguagem não mais se reconhece como capaz de capturar, absorver, a coisa; ao contrário, se debruça sobre si ou sobre um além de si nauseantemente desconectado da coisa, uma abertura absoluta. O positivismo nada mais é do que uma tentativa de esquecer a modernidade e ainda crer, tal qual o pensamento clássico, que, para cada coisa, é possível criar uma palavra que a defina com justeza. Nesta perspectiva, a psicanálise é mais ciência moderna do que a magia, e também mais ciência moderna do que o próprio positivismo!
![]() |
Mário Sérgio Conti |
Assim, podemos dizer que a maior bobagem até agora veio mesmo de Orsi e Pasternak que, aliás, parecem já ter percebido isso. Orsi teve muita dificuldade em sustentar seus argumentos em debate sobre o assunto na UNICAMP com o professor Mário Eduardo Costa Pereira, debate no qual Pereira expôs publicações em revistas científicas de ponta reconhecendo a psicanálise como campo de pesquisa científico que deixaram Orsi sem palavras. Quanto à sua esposa, Natália Pasternak, ontem, em entrevista a Mário Sérgio Conti, na GloboNews, ela agradeceu a intervenção inconformada deste jornalista concernente ao modo como ela abordou o tema da psicanálise. Ali ela disse que considerará, na segunda edição de seu livro, levar em conta as críticas referentes à parte dedicada à psicanálise para reformulá-la. Esperemos para ver, pois até agora o livro da dupla revela pseudo-argumentos pseudo-neutros a respeito da psicanálise - será analítico e científico se escutarem as interpelações e se reposicionarem.
Comentários
Postar um comentário