A bomba e os mortos invisíveis de Oppenheimer

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Muito alarde e muita propaganda foram feitos a respeito do filme-biografia do cientista Julius Robert Oppenheimer, o inventor da bomba atômica. A película Oppenheimer (NOLAN, 2023), do excelente diretor britânico Christopher Nolan é recente, está passando agora nos cinemas - e o que escreverei na postagem de hoje é a minha crítica do filme, que inevitavelmente estará recheada de 'spoilers'; portanto, sugiro que quem ainda não viu o filme, pretende vê-lo e gostaria que sua experiência não fosse estragada ou influenciada por mim, não leia o que está escrito nos parágrafos abaixo.

Antes de tratar do filme propriamente dito, gostaria de comentar a trajetória artística de Christopher Nolan até aqui. Talvez Nolan seja o mais badalado autor de cinema da geração que apareceu na virada do milênio anterior para este; certamente o melhor e mais badalado da boa safra de cineastas britânicos que surgiu naquele momento, da qual destaco também Danny Boyle (Cova Rasa [BOYLE, 1994], Trainspotting - sem limites [id., 1996]), Guy Ritchie (Jogos, trapaças e dois canos fumegantes [RITCHIE, 1998], Snatch - porcos e diamantes [id., 2000]) e Sam Mendes (Beleza americana [MENDES, 1999], Estrada para a perdição [id., 2002]) - uma geração que colocou o cinema britânico em outro patamar em relação à sua própria história: na célebre entrevista de François Truffault com Alfred Hitchcock (TRUFFAULT & HITCHCOCK, 1966), o primeiro sinaliza uma peculiaridade do cinema britânico da época da entrevista, este lhe parecia um grande deserto, salvo os dois maiores gênios da arte cinematográfica, Charles Chaplin e o próprio Alfred Hitchcock!

Criança japonesa chorando nos escombros, Hiroshima (BETTMANN, 1946)

É digno de nota que Truffault ignorou o brilhante David Lean (A ponte do rio Kwai [LEAN, 1957], Doutor Givago [id, 1964]) e obviamente não poderia prever o aparecimento posterior de cinco ótimos diretores - Ken Loach, Peter Greenaway, Ridley Scott, Stephen Frears e Alan Parker. Mas a geração da virada do século passado para este deu ao cinema britânico um novo frescor e, ao mesmo tempo, um estilo para chamar de seu, ao menos naquele momento, já que cada um deles deu rumos diferentes às suas obras posteriores. Nolan, Boyle, Ritchie e Mendes surgiram com filmes tensos, por vezes angustiantes, que, cada um à sua maneira, revelava o 'lado B' da cultura anglo-saxônica. Até aquele momento, o imaginário que os filmes britânicos de mainstream espelhava, ainda era fortemente marcado pela figura do inglês polido, respeitável, espirituoso, elegante e, talvez, um pouco pedante, mas, no fundo, uma boa pessoa, figura que transparece nas adaptações de Shakespeare para o cinema feitas por Lawrence Olivier (1944, 1948), em James Bond (em especial no de Sean Connery), no personagem Basil de Zorba, o grego (CACOYANNIS, 1964), interpretado por Alan Bates, ou no personagem Archie Leach, já derrisório, interpretado por John Cleese em Um peixe chamado Wanda (CRICHTON, 1988).

Ao contrário, com os primeiros filmes de Nolan e seus conterrâneos contemporâneos, a imagem internacional da cultura britânica não permaneceu mais a mesma e terminou por afetar até mesmo esta instituição chamada James Bond, cuja última encarnação, a de Daniel Craig, não é mais marcada pela elegância espirituosa, mas sim pela brutalidade, frieza e violência. Na obra inicial de Nolan e companhia encontramos gente desbocada, criminosa, pervertida, grosseira, sinistra, violenta, que habita um ambiente tenso, inseguro e que nada tem de acolhedor (coincidentemente ou não, num mesmo momento histórico em que o tão celebrado modelo keynesiano e o Estado de bem-estar social inglês eram destruídos, fazendo avançar a agenda neoliberal, até mesmo quando o primeiro-ministro, Tony Blair, e sua terceira via, supostamente seriam um freio ao desmonte iniciado por Margareth Thatcher - quando na verdade, se mostrou uma Thatcher de calças e mais afável). 

Dos conhecidos filmes de Nolan, daqueles anos, Amnésia (2000), Insônia (2002) e a trilogia do 'Cavaleiro das Trevas' (2005-2008-2012) é preciso dizer que nenhum deles se passa nas ilhas britânicas e sim nos E.U.A., mas compartilham do gosto por crimes, por gente perversa e violenta. E, fundamentalmente, por uma ambientação tensa, angustiante e que remete o público à sensação de que não é possível confiar em ninguém, que todos querem 'se dar bem' em cima dos outros, que não há acolhimento nem amparo, mas sim o 'cada um por si' próprio do terreno do capitalismo selvagem, no qual o Estado foi destituído de sua função de cuidados, restando a ele apenas a função da truculência violenta (policial, militar e de uma psiquiatria reacionária). E mesmo o que restou ao Estado é pervertido pelas forças financeiras que corrompem as agências de repressão para se beneficiar de diversas maneiras. O próprio estilo narrativo de Nolan, propositadamente rocambolesco, confuso e tenso, com idas e vindas no tempo, recorrendo a tramas conspiratórias, a viradas de jogo, a vilões ocultos que pareciam verdadeiros aliados, a heróis ressignificados como criminosos etc., favorece a experiência angustiada e desconfiada no espectador, que atualiza, na sua fruição, muito do que vive no mundo real regido pelo neoliberalismo.

Cartaz do filme Oppenheimer (Christopher NOLAN, 2023)

Outro grande interesse de Nolan, desde o início de sua obra, está em explorar os pesadelos que a ciência, que, sob o uso inescrupuloso de quem a financia - os poderes políticos e/ou econômicos - cria monstros. Vemos isso em Amnésia (op. cit.), na trilogia do 'Cavaleiro das Trevas' (op. cit.), em O grande truque (NOLAN, 2006), A origem (id., 2010), Interestelar (id., 2014), Tenet (id., 2020) e, finalmente, em Oppenheimer (op. cit.). No entanto, se é possível ver esta crítica à ciência e à tecnologia de ponta como forças perigosas, há uma ambivalência na atitude estética de Nolan em relação a elas: seus filmes mistificam, ocasionam uma admiração, talvez adoração, ao esplendor, descobertas e invenções técnico-científicas - de certo modo, aparece sempre a ideia de que se deve combater os monstros criados pela ciência capitalista voraz com ciência e tecnologia de ponta. Há, com frequência, a ideia de que, no fundo, a ciência nos salva dos monstros que ela criou. Para combater o mal, é preciso ter coragem, usar da inteligência, da razão, da ciência e de grande tecnologia, e isso não é possível sem dinheiro. Portanto, não há nenhum obscurantismo reacionário em sua obra, como salvação pela tradição ou pela religião, mas, há, ainda, fé na salvação, desta vez através das próprias ciência e técnica capitalistas. Não há nenhuma outra alternativa - Nolan é um diretor de ficções que não aposta em nenhuma utopia senão no novecentista progresso científico.

Se essa posição estava já presente na obra pregressa deste autor, é em Oppenheimer que ela se torna verdadeiramente problemática, porque desta vez, diferentemente de todos os outros filmes mencionados, estamos lidando com uma tentativa de registrar, mesmo que através de uma ficção, uma história real, parecendo justificar sutilmente a criação da bomba, ou ao menos a trajetória de seu criador. 

É verdade que já Dunkirk (id., 2017) aborda eventos reais, mas com bastante liberdade criativa, na medida em que lida com personagens anônimos e no qual as histórias contadas são de pequenos eventos inseridos na narrativa maior da Segunda Guerra Mundial. O efeito geral de Dunkirk é o de mostrar como foi tensa e incerta a participação dos civis ingleses no salvamento das tropas britânicas, mas Oppenheimer trata de um protagonista daquela mesma Guerra Mundial e também da física moderna - e quando decide contar sua biografia em cinema, parece querer dizer ao público: 'Agora vamos contar a verdade sobre Oppenheimer' de forma mais eficaz que um documentário, pois enquanto o segundo torna evidente sua intenção de contar a verdade histórica - e, assim, possibilita a crítica consciente de suas intenções e feitos - a ficção o faz subrepticiamente, cinicamente, sedutoramente, podendo sempre tirar da manga a carta 'Mas isso é tudo um grande faz-de-conta', inviabilizando assim a crítica e a checagem daquela narrativa frente a outras. No entanto, os psicanalistas conhecem este mecanismo, o desmentido (FERENCZI, 1933), e sabemos que um manejo possível para lidar com ele, é dar o devido peso à experiência vivida e, assim, religar os afetos produzidos com o discurso expressado.

Como Freud já anotava em sua correspondência com Fliess (FREUD, 1895-1900), a fantasia é um embelezamento da realidade; sendo a ficção uma fantasia, veremos quais as operações do filme para tornar menos feia a história de Oppenheimer, o que, também, nos indicará o que sua estética supõe como sendo o belo e o feio e que desmentido ela assegura. Para falar de minha experiência, dos meus afetos e do discurso que produzi sobre o filme em si, na medida em que ele conta a história aparentemente real de um homem real, sinalizo, agora, algumas distorções empregadas pelo filme, no que concerne à história real, e outras escolhas narrativas que me fazem crer que não me sinto bem ao ser esperado estar ao lado do 'leitor-modelo' desta obra, ou seja, o tipo de público a que pragmaticamente este filme é endereçado e que se espera que tacitamente acompanhe a história de modo interessado e cúmplice (ECO, 1990):

Christopher Nolan 

- Los Álamos, lugarejo no Arizona em que foram assentados os cientistas ocupados com o programa do governo estadunidense de construir a primeira bomba atômica, no filme é mostrado como uma área deserta. Isso é falso. Lá havia uma comunidade de assim chamados 'hispânicos', da qual uma parte foi expulsa, outra foi tolerada e parcialmente utilizada como mão de obra no projeto de criação da bomba. Desta comunidade restante (como de outros que para lá migraram para trabalhar no projeto científico-militar de Los Álamos), registram-se números acentuados de mortes por câncer, sendo que hoje já se sabe que os muitos daqueles cânceres de esôfago estão associados à radiação e os muitos cânceres nos ossos lá registrados estão associados ao contato com o plutônio (BOICE JR., 2022). Porque isso foi retirado do filme?

- Outra ausência do filme são os japoneses. Não se vê nenhum japonês nem nenhuma imagem real ou criada em estúdio dos efeitos das bombas de Hiroshima e Nagasaki nas casas, ruas, praças, vegetação e, fundamentalmente, nas pessoas que foram o alvo do ataque. O Japão não aparece no filme. Ao contrário, Nolan escolhe mostrar, num momento de alucinação carregada de culpa, Oppenheimer ver americanos brancos, loiros, sofrendo, chorando, com o rosto desfigurado. Alguém poderia dizer: 'Talvez Oppenheimer realmente não tivesse nenhuma culpa em relação aos japoneses - e sim culpa por ter criado uma arma que poderia ser utilizada contra os estadunidenses brancos, com os quais se identificava (apesar de não ser um W.A.S.P., mas judeu)'. Eu entendo perfeitamente o argumento e admito que poderia ser essa a posição do cientista, porém não necessariamente tem de ser a posição do filme - e quando, na construção narrativa do filme, a suposta visão do cientista é dada como a única a ser mostrada e sem deixar claro que toda a história é somente o ponto de vista do pai da bomba atômica, o 'leitor-modelo' do filme esperado parece ser mesmo aquele que concordaria com Oppenheimer. Dois grupos minoritários nos E.U.A. e no Reino Unido, hispânicos e japoneses: mortes e sofrimentos deles não geram a comoção que a de brancos loiros gera; há, como Judith Butler tem reiterado nos últimos anos, no Ocidente, enquadramentos linguístico-performativos, que tornam alguns matáveis, descartáveis, enquanto outros são investidos pela biopolítica (BUTLER, 2009; FOUCAULT, 1976).

- Terceira distorção: a relação entre Oppenheimer e Einstein mostrada no filme é a de dois cientistas que se respeitam, têm, ao mesmo tempo que não muita intimidade, um certo carinho um pelo outro. Einstein seria alguém que não participa ativamente da construção da bomba, que não se envolve diretamente no projeto, mas que o respeita e só. No filme, vemos até mesmo Oppenheimer consultando Einstein a respeito de cálculos que poderiam estar errados em seu projeto de construção da bomba. Acontece que o consultado, na história real, foi outro cientista. A única relação de Einstein com o que acabou por se tornar o Projeto Manhattan foi a carta que enviou ao presidente dos E.U.A. alertando para o perigo de a Alemanha criar uma bomba nuclear - certamente este medo foi o combustível para o governo estadunidense entrar na corrida armamentista com tecnologia nuclear -, mas Einstein não participou da criação da bomba, como a condenou publicamente e veementemente. Einstein era, além do maior físico do mundo, um ativista político, um pacifista apaixonado, como aliás se lê na deliciosa troca de cartas entre ele e Freud (FREUD, 1933) e, fundamentalmente hoje é uma espécie de ícone pop, uma figura que gera simpatia em todo mundo. De modo que a escolha narrativa de dar tempo de tela ao personagem Einstein, aproximá-lo de Oppenheimer como conselheiro e interlocutor, ocultar toda sua atividade de pacifista e militante antibomba, parece servir a tornar Oppenheimer um personagem mais simpático ao público, por proximidade daquele que todos amam. 'Os grandes se reconhecem um ao outro', 'Diga-me com quem andas e direi quem és'.

- Uma quase omissão. A participação de Oppenheimer na delação de supostos comunistas em tempos de 'Caça às bruxas' aparece no filme, mas tal como no que diz respeito às pesquisas em Los Álamos e ao bombardeio atômico contra o Japão, os efeitos nos outros não são mostrados. O enfoque total na figura de Oppenheimer aliena o público das consequências de seus atos. Foca apenas no sentimento de incerteza e culpa mesclado de narcisismo do cientista, aliás, magistralmente interpretado por Cillian Murphy. Em certa altura, Oppenheimer e sua esposa desistem de criar seu bebê, ela não toleraria ser mãe, e, assim, ele dá o bebê, filho do casal, a outra pessoa para criá-lo de uma vez por todas; não há continuidade narrativa para essa cena, não sabemos mais de seu filho, nem de seus sentimentos quanto ao assunto. Porque isso entra no filme? Me parece que por dois motivos: 1) para nos mostrar o auto-centramento de Oppenheimer e seu descaso por quem lhe parece descartável, o que obviamente é uma crítica forte e contundente, mas não suficiente para nos fazer ver os efeitos de sua monstruosidade: o sofrimento do outro humano. 2) Oppenheimer largou a paternidade de uma criança para ser pai da bomba atômica. E, novamente, largou seu 'segundo filho' nas mãos de outro - no caso, o governo dos E.U.A.. É em relação à paternidade deste segundo filho que Oppenheimer sente orgulho e culpa. A do primeiro nem aparece. E muito pouco em relação às consequências de sua delação.

Julius Robert Oppenheimer 

- Em artigo publicado em A terra é redonda, datado de 09/08/2023, e intitulado simplesmente Oppenheimer, Gilberto Maringoni, ao criticar o filme, nos conta que, ao contrário do que vemos no filme à respeito da espionagem russa que fez com que a U.R.S.S. tivesse acesso à tecnologia capaz de também construir sua bomba atômica - o que rapidamente aconteceu e desencadeou a Guerra Fria -, o pai da bomba atômica não foi somente uma vítima de desconfiança infundada por parte do governo de seu país. Em 1994, o general russo Pavel Sudoplatov, após o término da Guerra Fria e derrocada da U.R.S.S., chefe da espionagem soviética, revelou que foi mesmo Oppenheimer quem passou as informações secretas aos russos demonstrando provas documentais de tal acusação. Porque o filme poupa Oppenheimer de ser realmente um espião, quando, aliás, a filmografia de Nolan é repleta destes plot twists?

- Tratemos agora não de uma omissão, mas de uma escolha de enfoque narrativo. As duas primeiras horas, grosso modo, tratam do caminho de Oppenheimer dos estudos até a invenção da bomba atômica e os ataques ao Japão. A terceira hora, era de se esperar, e aí teríamos um filme 'humanista', mostraria as consequências subjetivas e culturais do monstro atômico criado pelo cientista. Não, a bomba só aparece no filme 'grandiosa, potente e, porque não?, bela'; ela só aparece de modo explícito como um espetáculo de imagens - inclusive na cena final de uma hecatombe planetária. A hora final do filme torna-o um 'filme de julgamento'. Mas não um julgamento de Oppenheimer diante do tribunal da Humanidade. E, sim, dois julgamentos político-burocráticos conduzidos dentro de uma rede de intrigas nolaniana, de Oppenheimer e do antagonista Lewis Strauss. O assunto é: Oppenheimer foi habilmente, maquiavelicamente, afastado e defenestrado politicamente por Strauss colocando a opinião pública contra aquele por dois motivos: um, ridículo, por vingança contra o primeiro por conta de uma cena de humilhação pública há anos; o outro motivo, mais importante - Oppenheimer teria atuado como crítico da corrida armamentista entre E.U.A. e U.R.S.S. pela construção de uma superbomba para pôr medo até em quem tem uma bomba atômica 'comum'. Oppenheimer seria um homem temeroso pelo fim do mundo tendo em vista a corrida atômica da Guerra Fria e sua intenção era convencer o governo americano a fazer um pacto de paz e parada na insanidade armamentista com a UR.S.S., o que teria desagradado Truman e Strauss. Ou seja, Oppenheimer, pela escolha narrativa do filme, por conta da última hora do filme, sai da posição de criminoso mundial para a de vítima preocupada com a paz mundial e injustiçada. Na cultura estadunidense é lugar comum, para salvar a pele diante do juízo moral da opinião pública, mostrar que alguém é vítima do verdadeiro vilão interno: o Estado/governo (o que atende, em parte, a posições políticas de tendência anarquista da esquerda daquele país, bem como a posições políticas neoliberais da direita de lá - agrada a gregos e troianos e garante lucros a Hollywood).

Depois disso tudo, não posso negar o meu incômodo com o filme e com o silêncio do público diante do feito monstruoso deste grande diretor, Christopher Nolan. Ele tornou as verdadeiras vítimas de Oppenheimer, seu filho abandonado, os perseguidos pelo mccarthismo, os hispânicos e, obviamente, os japoneses, invisíveis: estes sofreram a angústia real do desamparo absoluto (FREUD, 1926). E torna vítimas os estadunidenses amedrontados com o perigo de uma futura guerra nuclear, os sofrentes de uma angústia sinal (id., ibid.), ou seja, aqueles que já encontraram em seu campo simbólico e material defesas contra o real do trauma são tornados mais comoventes do que o desalento dos matáveis, daqueles que estão fora do quadro de vidas que importam, os alvos da necropolítica (MBEMBE, 2011). E, finalmente, a narrativa do filme critica Oppenheimer por seu narcisismo, mas não por seu monstro criado - a bomba atômica, criação encomendada pelo governo americano para fins militares. Ao contrário, torna o físico vítima também, desta vez de 'intrigas palacianas' muito pouco relevantes para a história mundial. Construiu-se uma biografia no estilo das biografias contemporâneas neoliberais: que nos ensina o quanto alguém foi um sucesso, um grande realizador porque acreditou em seu sonho; é claro que fez algumas coisas imorais, mas isso não é o foco da história sobre uma 'força da natureza'; é claro que foi derrubado e traído, mas a história mostra como ele deu a volta por cima e saiu, no fim das contas, como um herói a ser respeitado por sua trajetória de sucesso. Não aquele herói das narrativas maniqueístas da Hollywood dos anos 50; mas um herói cheio de defeitos morais e, que todavia, precisa ser admirado porque realizou seu propósito, porque 'venceu' - o herói neoliberal (que não está muito preocupado com 'fazer o bem', mas sim com 'fazer bem feito', ser bem-sucedido).

O discurso do filme é muito pouco cosmopolita, é bastante anglo-saxão, o que coloca Nolan numa virada de carreira surpreendente: ele que, no início do século, trabalhou para desmontar a imagem do anglo-saxão, neste filme de 2023, adota a visão de mundo do status quo estadunidense-britânico, para a qual as vidas que importam são as dos brancos ocidentais. Vale lembrar que, ao contrário do que a Alemanha já fez com os judeus, os E.U.A. nunca pediram perdão ao Japão e ao mundo pelo genocídio atômico. Os estadunidenses, em sua formação escolar, não são orientados a sentirem culpa pelo assassinato de japoneses civis. Até hoje a narrativa é de que foi um mal necessário para o fim da guerra, o que é falso pois a guerra continuou após as bombas e os japoneses somente se renderam quando o exército vermelho de Stalin invadia territórios japoneses ao norte do arquipélago. Diga-se de passagem, nós do Ocidente temos muita dificuldade em reconhecer que foi Stalin quem derrubou Berlim e encurralou o Japão. 

Esse filme não sublinha o crime contra a humanidade que foi a bomba atômica; ao invés disso, ele desliza o argumento para condenar de verdade a passagem da tecnologia atômica para a U.R.S.S., a espionagem, o que impediu a hegemonia estadunidense no século XX. o que castrou o falo/águia americana de fazer reinar sua soberania sobre o planeta. O mundo foi dividido.

Cartaz do filme Rapsódia em Agosto (Akira KUROSAWA, 1991)

Pelo que li, o filme não será passado nos cinemas japoneses - é compreensível. Se alguém quiser ver um filme que trate da dor japonesa pelos traumas da bomba de Hiroshima, recomendo Rapsódia em Agosto (1991), de Akira Kurosawa, no qual, até mesmo inventou-se um personagem estadunidense, havaiano, parente de japoneses, interpretado por Richard Gere, para pedir perdão aos nipônicos pelo que os gringos fizeram. Isso só aconteceu mesmo na ficção japonesa e no coração de Gere, como expressão desejante, pois o presidente americano Barack Obama, havaiano também, em 2016 visitou o Japão e manteve a posição histórica de seu país: não pedir perdão, não reconhecer a culpa. Só é possível perdoar quem assume o crime que cometeu.

No momento, não é possível perdoar nem os E.U.A. nem Nolan. Seu filme é muito bem feito, carregado de sua já conhecida estética, com muito de sua estilística tensa, trilha sonora pressionante, narrativa capciosa, reviravoltas etc. Está presente na primeira parte também toda a bela fantasística sonhadora científica, tal qual se aprecia em Interestelar (op. cit.), mas isso desaparece ao longo do filme dando lugar seja à beleza da bomba, seja aos problemas éticos da narrativa. Tal qual a criatura da obra literária Frankenstein (M. SHELLEY, 1818), - e diferente das versões cinematográficas, nas quais a criatura é somente uma aberração assassina - conjugam-se neste filme o monstro e a poesia. Nolan fez de seu Oppenheimer o que o real Oppenheimer fez de sua maior criação: um monstro ético tornado possível por um exímio domínio técnico.

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