O Espaço no tempo

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Sou professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), este blog é uma atividade de extensão universitária - no entanto, sou também membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBEP), que fez aniversário semana passada: 23 anos de existência. Inicialmente, o EBEP existia apenas no Rio de Janeiro; quando foram sendo fundados ou tentaram fundar EBEPs em outras cidades (São Paulo, Niterói, Juiz de Fora, Porto Alegre, Aracaju e Belo Horizonte), aquele que já existia no Rio passou a ser referido como EBEP-RJ, sendo agora um dos polos da Rede EBEP. Nesse sentido, são, ao mesmo tempo o EBEP e o EBEP-RJ os aniversariantes de 23 anos. Confesso que hesitei em escrever este texto pois não muito depois da data do aniversário do 'Espaço', faleceu um importante membro de nossa instituição, fundador do EBEP-JF, Heitor Mendonça. No entanto, repensei minha posição e, agora, entendo que, na medida em que este é um texto comemorativo, ele é também uma celebração e agradecimento a cada membro que passou e contribuiu com esta instituição, fazendo-a existir e se transformar, no tempo. Sendo assim, é um modo de registrar uma parte da obra de Heitor, o que é, também, de certa maneira, reconhecê-lo e homenageá-lo.

Interior da Galeria Menescal (Humberto MENESCAL, 1942), Copacabana, Rio de Janeiro, onde fica a atual sede do EBEP-RJ 

O EBEP tem, dentre outros pontos, como uma de suas principais marcas o esforço em se organizar e funcionar de modo horizontal, pautando-se, assim, numa atitude radicalmente democrática. Vale a pena contextualizar este esforço dentro da história da psicanálise e indicar os problemas que este esforço implica aos membros da instituição. Na medida em que este blog visa articular psicanálise, arte e cultura, meu texto pretende mostrar que o que está no cerne desta tentativa de horizontalidade experimentada no EBEP é um modo de intervenção na cultura - não necessariamente na cultura 'externa' à instituição (apesar de isso também acontecer), mas, sem dúvidas, na cultura interna: seja a cultura institucional, seja a experiência subjetiva da cultura de seus membros - o que participa de uma política psicanalítica.

Em primeiro lugar, cabe situar o leitor a respeito do 'problema da verticalidade':

Na história do movimento psicanalítico tentou-se, desde Freud, construir instituições de trocas intelectuais entre psicanalistas que tivessem um papel ao mesmo tempo agregador, rigoroso quanto à doutrina e à prática e divulgador da própria psicanálise. A primeira destas instituições formais foi a International Psychoanalytical Association (IPA), criada pelo próprio Freud, junto de Jung, Ferenczi e outros de seus discípulos (GAY, 1988). O que contarei a partir daqui a respeito da IPA se repetiu compulsivamente na história de outras instituições psicanalíticas que foram fundadas depois, muitas delas em oposição à própria IPA. Portanto, o 'caso IPA' ainda serve de modelo no que se refere ao 'problema da verticalidade'.

Carl Gustav Jung

Uma das razões de a IPA ter sido criada foi julgar e esclarecer ao público exterior e interno sobre o que seria e o que não seria psicanálise. O critério fundamental deste julgamento foi, na medida em que Freud era o inventor da psicanálise e era um membro vivo e ativo da instituição, a concordância com sua obra. Um efeito quase imediato do estabelecimento da IPA, além do esclarecimento a respeito de quem são os psicanalistas selvagens, charlatães, ignorantes e equívocos, foi a pressão e consequentemente saída de três membros fundadores, Wilhelm Stekel, Alfred Adler e o próprio presidente da instituição, Carl Gustav Jung. Cada um dos três desenvolveu teorias ou práticas que foram julgadas pelos pares - e, em particular, por Freud - como não psicanalíticas. 

O primeiro desenvolveu uma prática na qual o analista julgava poder prescindir da interpretação do paciente a respeito de seus sonhos e outras formações do inconsciente, entendendo-se como decifrador de símbolos (FREUD, 1911), o segundo tentou reduzir toda a etiologia da neurose ao que chamou de protesto masculino e o terceiro rejeitou a teoria de que a energia psíquica, a libido, fosse sexual, tomando-a como uma energia 'neutra' - ambas posições teóricas teriam efeitos também na prática clínica destes pioneiros divergentes (FREUD, 1914). Foi o suficiente para que saíssem do Movimento Psicanalítico; suas práticas e teorias foram avaliadas pelos demais membros da IPA como não-psicanalíticas,  de modo que estes autores não seriam mais psicanalistas e, forçosamente, sua clínica também não. 

Georg Groddeck 

A intolerância dos psicanalistas, Freud incluso, não era tão grande quanto parece, no entanto. Ela recaía sobre temas que consideravam pilares da psicanálise apenas; sobre o que punha em questão sua ética. Diversas experimentações clínicas e ousadias teóricas eram realizadas no âmbito reconhecido pelos pares como psicanalítico sem desencadearem uma expulsão. Dou como exemplo a invenção, alguns anos depois, por parte de Melanie Klein de um modo muito particular de teorizar e praticar a psicanálise de crianças (KLEIN, 1932). Outro exemplo: o desenvolvimento, por parte de Ferenczi, de uma técnica ativa (FERENCZI, 1919, 1921, 1926) - encorajada por Freud, aliás (FREUD, 1919) - muito diferente do que se lê como recomendação nos artigos freudianos sobre a técnica (id, 1912, 1914, 1915). Ferenczi, ainda assim, pagou caro por sua ousadia - após Freud ter se afastado da dianteira da IPA por doença e cansaço, Ernest Jones se tornou o manda-chuva, e este discípulo se mostrou ainda mais rígido e severo no julgamento do que era psicanálise ou não do que o próprio Freud. Seu critério era a obra já escrita por Freud, sem abrir espaço para considerar que o próprio autor dela modificou seu pensamento e sua prática diversas vezes. Estabeleceu-se, assim, uma ortodoxia que tratou Ferenczi como enfant terrible, persona non grata, louco - mas ainda assim o psicanalista húngaro não foi expulso do Movimento Psicanalítico, ele foi silenciado. 

A ortodoxia que se estabeleceu se pautou também numa novidade criada pela IPA, a partir das experiências da policlínica de Berlim: a instauração de uma formação-padrão de psicanalistas (EITINGON, 1922). Esta formação tornou os textos de Freud canônicos, sagrados, a serem recebidos como 'A Escritura'. Essa formação tornou os analistas experientes como os verdadeiros intérpretes do texto freudiano e do inconsciente dos pacientes, figuras de autoridade inquestionável que deveriam ser os analistas e supervisores dos novatos. Criou-se uma organização hierárquica de formação de psicanalistas no seio da IPA, modificando toda a instituição em uma grande associação com fins de formação através de uma padrão repetitivo e ortodoxo.

Sandor Ferenczi

Normalizou-se o analista. O analista deveria ser julgado por estar intelectual e clinicamente adequado a uma norma esperada. Os tempos de invenção, criação e experimentação,  quando, por exemplo, Freud e Ferenczi procuravam relações entre psicanálise e telepatia (FREUD & FERENCZI, 1912-14) ou Groddeck articulava psicanálise e psicossomática (GRODDECK, 1923), pareciam estar encerrados.

Mas a experiência do inconsciente é da ordem do imprevisível se seguirmos a própria letra freudiana: o desejo inconsciente é, por definição, não sabido. Por esta razão a psicanálise é subversiva em relação a qualquer ordem de captura e previsivilidade, o que ocorre mais ou menos em qualquer funcionamento institucional, ela é o oposto da normalização. Ao menos é o que os melhores nomes que surgiram dentro da IPA se esforçaram, cada um à sua maneira, de mostrar através de seu pensamento, clínica e vida. Pagaram por isso. Reich foi expulso, Winnicott conseguiu, com diplomacia e tato, se segurar e Lacan foi excomungado (LACAN, 1964).

No caso de Lacan, no entanto, algo de revolucionário aconteceu. Ele dobrou sua aposta em se afirmar como psicanalista mesmo estando já fora da IPA. Criticou a estrutura de formação de psicanalistas existente e propôs uma escola diferente do padrão (id, 1967). Com Lacan, passou a haver o reconhecimento de psicanalistas fora dos tentáculos da IPA - e até hoje isso é possível devido à sua afirmação de uma psicanálise cuja ética é a do desejo inconsciente e não a da adequação à norma.

Jacques Lacan, 1974

A escola, como proposta por Lacan, seria uma instituição de produção e não só de aprendizado. Além disso, os grupos de trabalho, os cartéis, seriam temporários. Outros cartéis poderiam se formar com outro tema de trabalho e outro apanhado de participantes. Esse modelo protegeria a instituição da captura hierárquica. Outra proteção desta captura seria o famoso passe: um psicanalista se autorizaria por si mesmo diante dos outros da instituição, relatando seu percurso de análise diante de um júri. Ele não seria, supostamente, mais refém de uma instância hierárquica superior que o julgaria a partir de uma norma calcada na ortodoxia jonesiana.

No entanto o próprio Lacan percebeu incidir também em sua escola a submissão a ele mesmo como mestre, como figura hierárquica, como pai severo (id, 1980). Eis um dos motivos porque dissolveu sua escola.

O EBEP é herdeiro desta história. De certo modo é um continuador - e talvez radicalizador da aposta de Lacan: constituir uma instituição de psicanalistas que se proteja contra as armadilhas da hierarquia, contra a subjugação a um padrão/modelo imajado no líder/Freud/Lacan. Praticar uma instituição voltada para a produção, para o pensamento e a associação livre (com duplo sentido, por favor), para a aventura da experiência do inconsciente e do desejo como sua ética incondicional. 

No EBEP há grupos de trabalho, não cartéis - o "mais um" não existe pelos perigos de vigilância hierárquica que podem emergir desta figura que se destaca. No EBEP não há Índex: toda a literatura psicanalítica como a não psicanalítica é factível de ser referência, o estudo deve ser livre. No EBEP, as funções administrativas são realizadas por membros eleitos com mandato com tempo determinado e sem direito a reeleição. A gestão da instituição é realizada em assembléias-gerais nas quais todo membro tem voto de mesmo valor. No EBEP só há membros, não há gradação de adesão à instituição. A formação dos psicanalistas do EBEP não é avaliada a partir de um estudo e  tratamento-padrão: o analista autoriza a si mesmo diante da instituição,  que não se ocupa de dizer se ele é ou não é psicanalista.

Joel Birman, provavelmente o mais conhecido membro do EBEP-RJ 

Numa instituição horizontal, o poder deve circular horizontalmente e, por extensão, o saber. Isso tem efeitos na produção da verdade. Não se pode afirmar a priori que certas teorias são mais verdadeiras que outras, não se pode afirmar a priori que alguns têm a capacidade de dizer se outros são ou não psicanalistas. É no campo do jogo político e de linguagem é que saber e verdade se configuram para cada membro, para os grupos de trabalho, para a instituição. 

E, no entanto, isso não quer dizer que não haja empuxos à verticalidade. Os membros mais antigos da instituição, em especial aqueles que a fundaram, deixaram um lastro transferencial considerável, pois uma vez que a instituição é formada por seus membros, a transferência com a instituição costumeiramente se dá a partir e/ou através da transferência com membros já existentes nela antes do candidato entrar. De modo que também no EBEP o "antiguidade é posto" pode ter efeitos verticalizantes. 

Se Freud, ao utilizar o termo transferência (no que diz respeito à experiência clínica) queria, com isso, indicar o fenômeno de o sujeito atuar suas fantasias inconscientes e às vezes conscientes utilizando o outro como objeto destas fantasias (FREUD, 1912), se além disso Freud indicou que esta é a estrutura de qualquer amor (id, 1915), Jacques Lacan ainda precisou que o vínculo transferencial se ordena ao se buscar no outro um sujeito suposto saber (sobre meu inconsciente, sobre meu gozo [LACAN, 1969-70]). Reúno aqui esta sinopse teórica para lembrar que este fenômeno - a transferência - sempre põe em questão, estruturalmente, as relações de horizontalidade. Ao se elevar o outro ao lugar de sujeito suposto saber, se busca nele um mestre e, por isso, o demandante recai numa servidão voluntária, assujeitada. Ao se repetir com o outro nossas fantasias e nossa modalidade de amar, depositamos no outro a expectativa de que ele nos dê satisfação (nos dois sentidos da expressão). 

No EBEP temos, ao longo do tempo, vivido conflitos que expõem estas tramas e estes traumas transferenciais. Talvez seja possível se construir uma genealogia dos laços transferenciais na instituição. Mas, tendo ela erguido um instrumental prático, habitual, organizacional e teórico-político que estabelece um campo de forças horizontal como o legítimo para seu funcionamento, pode-se dizer que, para além da genealogia transferencial com os mestres, também se pode ver,  ao longo dos anos, a construção de laços horizontais múltiplos, potentes e que, ao se espalharem, orientam uma cartografia, um mapeamento do Espaço. 

Falo um pouco de meu tempo no EBEP. Eu mesmo reconheço a importância de um membro, o brilhante Joel Birman, para eu decidir por minha entrada no EBEP. Birman era meu professor e orientador na universidade quando decidi entrar no EBEP. Seu pensamento, sua inteligência e posições ética e políticas me interessaram e tocaram em traços identificatórios. Com o tempo, Birman foi também meu supervisor clínico. Meu vínculo com ele era com o de um mestre. Não deixou de sê-lo, mas creio que, com o tempo, se estabeleceu além desta, somando-se a ela, uma outra modalidade de relação, horizontal. Além do mais, meus laços com a instituição se complexificaram de modo a estabelecer ligações horizontais e verticais (ao supor saber) com outros colegas ou amigos membros.

É no reconhecimento de que entre nós havia um laço horizontal, entre pares e entre EBEP-RJ e EBEP-JF, que sublinho o valor para a produção do que é o EBEP do falecido presidente do EBEP-JF, Heitor Lobo de Mendonça.

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