Rita Lee nos fez desejar
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Uma semana após ter escrito sobre os Titãs, retorno ao rock de São Paulo (e não só de São Paulo, mas de todo o Brasil), mas dessa vez com tristeza - Rita Lee morreu. É lamentável que a hora de dedicar um texto a ela se dê no momento de sua morte e é igualmente lamentável que tenhamos perdido há não tanto tempo assim Gal Costa, outra grande estrela da mesma geração. Na ocasião da morte de Gal escrevi neste blog sobre sua importância, que se deve, dentre outros motivos, por ser uma dessas raras artistas amadas por brasileiros de diferentes regiões, classes, posições políticas, crenças - o que nos dá uma sensação de união tão importante em tempos de esgarçamento do laço social devido ao ódio político e religioso - e, naquele texto, mencionei outra artista com este poder: justamente nossa Rita Lee. E agora a perdemos também. Muito triste ficar triste diante de alguém que sempre evocou alegria.
Mas, como ela mesma escreveu, junto de Paulo Coelho, na canção Cartão Postal (1975), "Pra que sofrer com despedida / Se quem partir não leva nem o sol, nem as trevas / E quem fica não se esquece tudo o que sonhou?". Portanto, celebrarei aqui os sonhos que Rita Lee nos propiciou.
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Capa do álbum Rita Lee (1979) |
Rita Lee marcou minha vida intensamente - e de muitos brasileiros -, desde os Mutantes, passando pelo Tutti Frutti até sua parceria com o marido e guitarrista Roberto de Carvalho, sua obra é cheia de altos, de muita música boa, fases diferentes, diversas facetas e estilos, sempre muito provocativa, afiada, libertária. Não é possível, aqui (nem nunca) falar de tudo, de modo que tive de escolher uma parte de sua obra para ser objeto de meu comentário - e articulá-la a algumas impressões psicanalíticas.
Escolhi tratar aqui do momento em que Rita Lee fez mais sucesso popular, em que mais vendeu discos - e foram muitos! Para quem não sabe, Rita Lee é a quarta maior vendedora de discos da história do Brasil, estando à frente de nomes populares como Roberto Carlos ou Zeca Pagodinho. Tratando-se de uma rockeira bem irreverente é um fenômeno muito interessante (e olha que há quem considere que o rock nunca foi popular no nosso país). Esses sucessos populares de Rita se tornam ainda mais interessantes quando nos damos conta de que essa fase bem sucedida comercialmente é aquela que marca o início de sua parceria com Roberto de Carvalho, em 1979, até o meio dos anos 1980, cujos maiores sucessos foram canções com letras ricas em erotismo, em plena ditadura militar onde a censura corria solta.
São dessa fase, mais pop, canções como Mania de você (LEE & CARVALHO, 1979), Chega mais (id., ibid.), Doce vampiro (LEE, 1979), Lança perfume (LEE & CARVALHO, 1980), Bem-me-quer (id., ibid.), Baila comigo (id., ibid.), Caso sério (id., ibid.) e Banho de espuma (id., ibid.), por exemplo. Ou seja, o povo gostava e queria escutar uma mulher cantar e falar de sexo. Mas será que isso é mesmo surpreendente? Creio que se as letras de Rita Lee fossem a respeito da objetificação da mulher diante do gozo fálico, ela seria apenas uma precursora de um gosto musical muito comum na nossa contemporaneidade. Mas, ao contrário, o feito de Rita Lee foi outro - algo que ainda é raro em nossos dias.
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Os Mutantes |
É digno de nota que tenhamos tido em plena ditadura brasileira uma rockeira cantora, compositora e multi-instrumentista que ousou escrever e gravar canções em que uma mulher, falando em primeira pessoa, revela um erotismo subversivo porque feminino, não assujeitado ao desejo e ao gozo masculinos, nem conforme às prescrições morais comportadas, em geral religiosas e que negam à mulher tanto a dignidade de desejar quanto de experimentar o gozo sexual. Rita Lee, nas canções acima citadas, flertava com a provocação indecente, com as fantasias dos ouvintes e com a revelação de toda uma sutileza e multiplicidade erótica feminina. E isso tudo vendeu muito! E pela quantidade de vendas, é de se supor que furou a bolha do mercado de rockeiros e de tropicalistas vanguardistas, furou também a bolha da classe média e atingiu o gosto popular.
A imensa compra de discos de Rita Lee falando do desejo sexual feminino, naquele momento histórico, foi uma declaração popular de inconformismo, de mal-estar diante da repressão ao erotismo feminino que marcava a ordem patriarcal vigente na vida comezinha dos brasileiros e, por extensão, um desagrado em relação ao status quo hierárquico já tradicional em nossa cultura.
Muitos psicanalistas devem ter sonhado que importantes textos de sua disciplina tivessem o efeito que a intervenção de Rita Lee alcançou. Não chegaram nem perto no que diz respeito a alcançar a vasta classe média e a classe popular. Os mais conhecidos textos psicanalíticos circulam apenas entre uma elite intelectual (que, no Brasil, não corresponde à elite financeira, é importante esclarecer), acadêmica, artística ou profissional e só. Alguns psicanalistas poderiam, de modo exaltado, dizer que - só para ficarmos em Freud, sem citar Reich - textos como Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, 1905) e "Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna" (id., 1908) são um verdadeiro chamado à revolução sexual que marcou posteriormente Herbert Marcuse (1955), o amor livre hippie e, por extensão, a vida da própria Rita Lee. Sim, é verdade, mas quando Rita Lee escreve, dança e canta canções eróticas em primeira pessoa, fazendo um vasto público dançar e cantá-las, assobiá-las, escutá-las dez, vinte vezes, sonhar com elas, sua intervenção se dá em ato.
E, como Jacques Lacan postulou em seu seminário sobre o ato analítico (LACAN, 1967-68), um analista - e, por extensão, a psicanálise - se faz em ato; de modo que a intervenção de Rita Lee teve mais efeito analítico para muita gente do que o campo psicanalítico propriamente dito - ainda mais naqueles tempos em que os psicanalistas brasileiros estavam apenas começando a questionar a história da psicanálise tupiniquim, aquartelada nos consultórios, sem conversar com as ruas ou com o campo social de que modo fosse. A reforma psiquiátrica brasileira, capitaneada justamente por psicanalistas brasileiros críticos e progressistas era germinada exatamente naqueles anos, ainda era inicial.
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Tutti Frutti |
Volto a Rita Lee. O que quero chamar atenção com o sucesso de público de seus pop-rocks eróticos é que a própria fruição daquelas músicas de Rita já são o embarque nas fantasias que ela compartilha ali, ampliando o repertório erótico de muita gente Brasil afora, tornando a sexualidade feminina um terreno habitável e, quem sabe, habitual. É essa a dinâmica da criação artística bem sucedida, como explica Freud (1908, 1916-17): o artista introvertido modela suas fantasias e com elas compõe uma obra, o que oportuniza o compartilhamento daquelas com outras pessoas, transformando-as e, assim, transformando conjuntamente a realidade, de modo que o artista possa encontrar um destino e um lugar para seus desejos serem vividos e não serem somente escondidos ou cultivados no devaneio. Ao menos como sonho, pois sabemos também o quanto a sexualidade feminina foi e hoje ainda é odiada, negada, depreciada, quando não destruída por quem tem horror ao desejo da mulher.
Freud foi um dos primeiros modernos - senão o primeiro - a afirmar o gozo sexual vaginal (id., 1931) como destino possível para a sexualidade da mulher. Não só o gozo feminino foi reconhecido e positivado, como o desejo feminino também através de duas operações:
1) No reconhecimento da origem do desejo como marca constitutiva de nossa subjetividade num momento precoce da vida, no bebê recém-nascido (não importa se menino ou menina). O desejo seria a tentativa de reencontrar uma experiência de satisfação (supostamente ocorrida na primeira mamada) através da evocação da memória/representação da experiência (id., 1900). Uma vez que a memória não é, por definição, a experiência originária, toda tentativa de reencontro está fadada ao fracasso, ao desencontro, de modo que o desejo pode também ser concebido como a inscrição da falta da satisfação plena miticamente ocorrida - esta falta é reiterada a cada vez que buscamos saciar o desejo, o que o torna 'imortal' até que a morte nos separe dele. O desejo, assim, não é masculino nem feminino - é desejo sem nenhum objeto que o defina ou se adeque a ele.
2) Ainda assim faz sentido falar em desejo feminino porque, na nossa aculturação, é inscrita psiquicamente a diferença sexual e os papéis sociais de homens e mulheres - o gênero - que carimbam a existência do sujeito, modelando suas fantasias, seu narcisismo e seu ideal do eu. A respeito deste assunto, Freud desenvolveu, aos poucos, uma teoria do complexo de Édipo feminino (e sua relação com o complexo de castração) que diferem do masculino (p.e., em FREUD, 1925, 1931 e 1933). Aqui importa indicar que o desejo feminino, diferente do masculino, não é marcado pela interdição e abandono da mãe (o primeiro Outro do erotismo do bebê menino ou menina [LACAN, 1956-57]), mas é atravessado por todo um enlace erótico com a mãe jamais abandonado.
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Capa de Rita Lee (1980) |
Considerando tanto o enlace com a mãe não abandonado quanto o fato indicado por Freud de que o erotismo da vagina é tardio na vida das meninas e nem sempre experimentado, temos um terreno diferencial da economia libidinal feminina em relação à masculina, mesmo considerando a norma fálica como padrão subjetivante. O que estas observações freudianas permitem dizer é justamente que a experiência erótica feminina se coaduna apenas parcialmente à ordem fálica, masculina, na qual o padrão interpretativo do desejo é o da castração e o do gozo é a completude e descarga orgasmática fálica.
O gozo clitoriano funciona nos moldes do padrão fálico, se trataria de um exemplo daquilo que Ferenczi parece entender como uma colonização do corpo da mulher pela ordem fálico-patriarcal (1908). A tão comentada inveja do pênis ocasionada pelo complexo de castração, bem como a própria saída histérica do complexo de Édipo, também evidenciariam a marca do padrão fálico presente no erotismo feminino. Porém, ele é não-todo capturado pelo um fálico, como diria Jacques Lacan (LACAN, 1971-72). Em oposição à referência ao um fálico, temos, ao contrário, ao menos três indicações freudianas de um erotismo outro: a) o enlace não abandonado com a mãe nos permite pensar o narcisismo feminino como um narcisismo não fechado, como um corpo que não se conta como um. b) o erotismo vaginal é a prova fenomenológica da positivação do buraco, do furo, da possibilidade de extrair prazer do que teria sido marcado exclusivamente como inscrição da ausência do órgão de gozo. c) na medida em que a referência fálica de gozo é estrangeira ao corpo feminino, para se buscar o gozo, pode-se pautar por um mapeamento erótico do corpo desprovido de região a priori privilegiada de prazer - em outras palavras, pode-se abrir para aquilo que Freud chamou de sexualidade perverso-polimorfa que pulula na experiência inconsciente do corpo (FREUD, 1905).
Ou seja, ao invés de um gozo repetível, padronizado, mecânico, circunscrito à agitação do órgão, abre-se a possibilidade de um erotismo múltiplo, de exploração corporal, inventivo, incerto, singular, no qual combinações polimorfas de oralidade, analidade, falicidade, sadismo, masoquismo, voyeurismo, exibicionismo etc podem se fazer presentes e, talvez, a cada vez diferentemente. E, por isso mesmo, mais do que no padrão masculino, é no erotismo feminino que o desejo revela sua verdade metonímica de jamais se coadunar adequadamente a qualquer objeto - nem com o falo.
Voltemos às letras de Rita Lee, cantadas por ela e cantaroladas por brasileiros e brasileiras. Não são canções que tratam o sexo da perspectiva fálico-masculina, não contam a historinha de homem-piru-atividade-orgasmo que se junta com mulher-buraco-passividade-adoração ao pênis, se iludindo que, com esse encaixe, há relação sexual. Lacan intervém: não há relação sexual; há um desencontro fundamental; há gozo parcial (LACAN, 1971). A sexualidade perverso-polimorfa, parcial, jamais carregada do peso da completude, evocando êxtases de gozo outro e desejo bem curtido, está em primeiro plano em diversas canções da artista paulista:
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Capa de Rita Lee e Roberto de Carvalho (1982) |
- nos versos de Mania de você (op. cit.), talvez o maior sucesso da dupla Rita Lee e Roberto de Carvalho:
"Meu bem, você me dá água na boca / Vestindo fantasias, tirando a roupa / Molhada de suor de tanto a gente se beijar / De tanto imaginar loucuras (...) / Nada melhor do que não fazer nada / Só pra deitar e rolar com você" (oralidade, fetichismo, voyeurismo, prazer com o fantasiar, com o discurso e não necessariamente só com o ato; aliás, prazer em não fazer nada, só em deitar e rolar - seria interessante tomar estes versos ao pé da letra e não apenas como duplo sentido)
- em Chega mais (op. cit.):
"Eu conheço esse cara / Essa fala, esse cheiro / Essa tara de louco / Esse fogo, esse jeito / Escandaloso, você é guloso / E quer me sequestrar / Chega mais, chega mais! / Depois me leve pra casa / Me prenda nos braços / Me torture de carinho / Beijinhos, abraços / Depois me coce, me adoce / Até eu confessar" (cheiros, discurso, fantasias perversas de sequestro e tortura - aqui é importante lembrar que esta música é de 1979 e as feridas causadas pela tortura de Estado praticada pela ditadura militar estavam abertas; Rita Lee subverte e elabora a dor da tortura de muitos de seus próximos deflagrando o erotismo como vitória do princípio do prazer sobre o traumático)
- em Lança-perfume (op. cit.):
"(...) Vem cá, meu bem / Me descola um carinho / Eu sou neném / Só sossego com beijinho / Vê se me dá o prazer de ter prazer comigo / Me aqueça / Me vira de ponta cabeça / Me faz de gato e sapato / E me deixa de quatro no ato / Me enche de amor" (poder-se-ia ler esses versos como uma ode à passividade feminina no sexo, porém, acredito, esta seria uma leitura pouco sutil, pois o que se lê de fato é que uma mulher dá ordens o tempo todo sobre o que seu parceiro deve fazer com ela para que ela goze; trata-se bem mais de uma mulher ensinando seu parceiro que para ela gozar, algumas condições devem ser preenchidas, que ele deve ocupar certo lugar em suas fantasias, que o sexo que ela gosta é mais complexo que a pura e simples penetração acelerada; sendo assim, se há passividade é algo da ordem de uma passividade atuada e não primária)
- em Banho de espuma (op. cit.):
"Que tal nós dois numa banheira de espuma? / El cuerpo caliente, um dolce farniente / Sem culpa nenhuma / Fazendo massagem, relaxando a tensão / Em plena vagabundagem, com toda disposição / Falando muita bobagem, esfregando com água e sabão (...) / Lá no reino de Afrodite o amor passa dos limites / Quem quiser que se habilite, o que não falta é apetite" (o prazer se espalha pelo corpo todo, mas é digno de nota que em nenhuma destas canções há um indicativo do falo como referência de prazer ou desejo; ao contrário, o erotismo não tem limites, como os gozos múltiplos femininos evocam)
Acredito que meu argumento já está suficientemente defendido após citar quatro dos maiores sucessos de Rita Lee que todo mundo conhece. Hoje, em tempos de recrudescimento da idolatria do macho patriarcal, da moralização religiosa das mulheres, novamente as dividindo entre santas e putas, precisaríamos ainda mais de Rita Lee, que sabia muito bem ser, nas suas músicas, na sua atitude e no seu legado, uma santa puta ou uma puta santa ou, melhor, como li na imprensa, uma fada - eu apenas acrescentaria: uma fada sacana. Rita Lee afirmou e praticou uma pedagogia do desejo e dos trilhamentos gozozos femininos como valor. Uma transvaloração dos valores em ato (NIETZSCHE, 1886). Mais subversiva e revolucionária que muita canção de protesto - exatamente porque ela excitou também os censores, os torturadores, os soldados, os guardas e suas namoradas, que cantarolavam e se assanhavam com Chega mais e Banho de espuma nas ruas, festas, motéis, porões e casernas. Essa abertura erótica deve ter, de algum jeito, condicionado a abertura política de 1985.
Excelente Pedro. Me lembrei do livro de Rodrigo Faour, pesquisador da MPB, História Sexual da MPB. No livro, 600 folhas, ele traz desde os anos 30 até décadas atuais, musicas e artistas que revolucionaram a MPB no campo do erotismo, com suas canções e performance. Abraço.
ResponderExcluirEu não conhecia! Obrigado pela indicação, Marcelo! Um abraço
ExcluirQue bom que esse texto tem acesso aberto e irrestrito, completamente afim ao impulso criativo de Rita Lee, em vários sentidos! Um ganho enorme.
ResponderExcluirVP