A fúria dos Titãs no rock e na psicanálise
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A turnê Encontro, da banda de rock paulistana Titãs teve início quinta-feira 27 de abril no Rio de Janeiro e está rodando o país. É, na verdade, um reencontro da formação clássica do conjunto, que foi um octeto. Dessa vez, só não está presente o guitarrista Marcelo Fromer, morto por atropelamento em 2001 (mas ainda assim lembrado e homenageado pelos amigos e por sua filha, no palco). Os outros sete membros (Arnaldo Antunes, Tony Bellotto, Sérgio Brito, Charles Gavin, Branco Melo, Paulo Miklos e Nando Reis) fizeram um show enebriante, que assisti na sexta-feira 28 de abril.
As canções que escolheram reproduzir no show foram majoritariamente aquelas da época em que esses 7 membros estavam ao mesmo tempo na banda, ou seja, do período entre 1985 (do lançamento do segundo LP da banda, Televisão [no primeiro álbum, Titãs {1984}, o baterista ainda não era Charles Gavin, mas André Jung, que migraria para outro grupo de rock, Ira!] até 1991, data de Tudo ao mesmo tempo agora, último álbum com participação de Arnaldo Antunes - o primeiro a deixar o grupo em busca de uma carreira solo). Ultimamente a banda era formada por apenas 3 desses integrantes clássicos (Tony Bellotto, Sérgio Britto e Branco Mello) e propunha uma experiência musical bem diferente daquela resgatada no show Encontro. E é sobre essa experiência que quero escrever hoje.
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Titãs em Encontro, 2023 |
O período compreendido entre 1985 e 1991 não foi somente um grande momento na carreira dos Titãs, foi também o período de efervescência do chamado rock nacional - ou Brock. Outros artistas como Legião Urbana, Barão Vermelho (e Cazuza) ou Paralamas do Sucesso também tiveram seu apogeu na segunda metade dos anos 80, o qual teve efeito direto na adolescência de minha geração, no desenvolvimento de um gosto estético, bem como na entrada em certa atitude crítica ao status quo que músicas, letras e mise en scène, no palco e na TV, desses artistas transmitiam. No que diz respeito aos Titãs, sua música, apesar de bastante eclética (flertando com o pop, o new wave, o reggae, a música eletrônica, o rock clássico, as baladas e, principalmente, o punk rock) tinha como característica marcante seu aspecto de revolta, de fúria, de agressividade, que, desde o meio dos anos 90 para cá, foi, aos poucos, desaparecendo, dando mais espaço ora para uma ironia bem-humorada (como em A melhor banda dos últimos tempos da última semana [2001]), ora para uma música com mensagens positivas, mais açucaradas, mais suaves, que funcionam perfeitamente bem como fundo musical de restaurante (como a versão que fizeram para É preciso saber viver [R. CARLOS & E. CARLOS, 1974/1998]), bem diferente do período mais ácido e agressivo em que o grupo ainda era um octeto.
A fúria dos Titãs reapareceu no palco ao interpretarem canções como Televisão (A. ANTUNES, M. FROMER & T. BELLOTTO, 1985), Marvin (Patches) (R. DUNBAR & G. N. JOHNSON, 1970, versão: S. BRITTO & N. REIS, 1984), Diversão (N. REIS & S. BRITTO, 1987), Lugar nenhum (A. ANTUNES, M. FROMER, S. BRITTO, C. GAVIN & T. BELLOTTO, 1987) ou Miséria (A. ANTUNES, P. MIKLOS & S. BRITTO, 1989), mas fundamentalmente ao reproduzirem as canções do álbum que melhor retrata esta característica de sua música, o disco Cabeça dinossauro (1986).
A execução ao vivo de faixas como a faixa-título (P. MIKLOS, B. MELLO & A. ANTUNES, 1986), Igreja (N. REIS, 1986), Polícia (T. BELLOTTO, 1986), Porrada (A. ANTUNES & S. BRITTO, 1986) ou Bichos escrotos (A. ANTUNES, N. REIS & S. BRITTO, 1986) mostra com contundência o quanto os Titãs ainda guardam aquela verve provocativa, subversiva, crítica e furiosa que os marcou. Nando Reis disse ao microfone, no show, que fica impressionado como essas canções ainda são atuais e que lamenta muito que sejam, que teria sido muito bom que os problemas abordados por elas tivessem ficado no passado. Se esse comentário pode ter soado ambíguo para algum desavisado, a mensagem fica mais clara quando o mesmo Nando Reis, ao cantar Nome aos bois (A. ANTUNES, M. FROMER, N. REIS & T. BELLOTTO, 1987), acrescenta 'Bolsonaro' à letra, que é composta apenas por nomes. Eis a letra:
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Nando Reis |
"Garrastazu, Stálin
Erasmo Dias, Franco
Lindomar Castilho, Nixon
Delfim, Ronaldo Bôscoli
Baby Doc, Papa Doc
Mengele, Doca Street, Rockfeller
Afanásio, Dulcídio Wanderley Boschillia
Pinochet, Gil Gomes
Reverendo Moon, Jim Jones
General Custer
Flávio Cavalcante
Adolf Hitler
Borba Gato, Newton Cruz
Sérgio Dourado, Idi Amin
Plínio Correia de Oliveira
Plínio Salgado
Mussolini, Truman
Khomeini, Reagan
Chapman, Fleury, ih, ih, ih..."
Os Titãs estão fazendo um grande serviço ao rock nacional e, por extensão, à música radiofônica nacional. Se as principais estrelas da MPB sempre mantiveram sua posição crítica e subversiva, o mesmo não se pode dizer dos rockeiros. Em outro post deste blog, chamado "A morte no rock e a morte do rock" (CATTAPAN, 26/3/22), eu já comentava como o rock'n'roll da segunda década do século XXI parece ter perdido o viço, parece não portar a bandeira da contracultura, como fez por décadas. O Encontro dos Titãs é uma exceção e, para os mais jovens, serve de experiência para que compreendam o que o rock já foi e pode vir a ser.
Capa de Cabeça dinossauro (TITÃS, 1986), que utiliza uma caricatura de Leonardo da Vinci realizada entre 1490 e 1511 |
A fúria, a raiva e a revolta têm lugares importantes na experiência do rock'n'roll, pois supõem uma posição crítica, supõem um desejo de outra coisa (que, como Lacan já indicava em seu O seminário livro 5: as formações do inconsciente [1957-58], está na base de toda revolução), supõem a aposta numa fantasia (utópica ou não). Sendo assim, se a ética da psicanálise é a ética do desejo (LACAN, 1959-60), poder-se-ia muito bem reconhecer a emergência destes sentimentos como um momento de abertura à experiência do desejo que nos atravessa; ou seja, eticamente não faria sentido um psicanalista se ultrajar com tais afetos vindos da parte seja de seus pacientes, seja de pessoas públicas. Alguém só muda, só se transforma, só abandona certa posição libidinal sintomática porque sofre - a força fundamental (mas muitas vezes não suficiente) para a mudança é a angústia. A psicanálise sustenta, enfim, a angústia como força mobilizante para o desejo de cura (FREUD, 1913), o qual, aliás, muitas vezes se manifesta como irritação, como um incômodo raivoso ou mesmo como fúria, como qualquer clínico sabe.
Mas sabemos que nem sempre é assim 'que a banda toca' no campo da psicanálise.
Em toda a história da psicanálise houve quem aqui ou ali rejeitasse o caráter contracultural, subversivo e crítico desta disciplina e desta experiência clínica. Para citar apenas alguns exemplos, Breuer abandonou Freud e sua pesquisa ao ter de se haver com o investimento erótico de sua paciente nele - a transferência - (id., 1925); Jung rejeitou a ideia de que a energia psíquica é sexual, considerando-a 'neutra', cstapultando sua ruptura com Freud (id., 1914) e a ego-psychology estadunidense se construiu como uma prática de fortalecimento do eu contra os desejos inconscientes (LACAN, 1958). Porém, como nosso tempo é hoje, é preciso também indicar que, ao menos de uns 20 anos para cá, se desenvolveu na Europa e na América Latina uma psicanálise afeita à moral dominante, ao status quo. Citarei alguns exemplos, novamente: vê-se psicanalistas se posicionando publicamente de forma contrária a uniões homoafetivas e à luta pelo direito, por parte de casais homossexuais, de ter filhos; vê-se psicanalistas se posicionando como coaches, o que no jargão neoliberal não quer dizer outra coisa senão conselheiros de gestão de carreira no mundo das competições corporativas, treinando eus a se aperfeiçoarem em busca de sucesso; vê-se psicanalistas defendendo que a psicanálise dos pobres deve ser uma versão mais abreviada e menos profunda que a psicanálise das classes média e alta.
Acredito não precisar continuar com os exemplos para seguir com meu argumento. Essas proposições e posições morais não são pautadas na direção ética da psicanálise, mas sim são exemplos do quanto é difícil para qualquer um ocupar a posição de psicanalista (id., 1969-70). Até aí poderíamos - talvez psicanaliticamente - dizer: 'Ok, a psicanálise mesma nos ensina que o sujeito é dividido; nenhum de nós está livre de ora sim ora não se desviar da posição de psicanalista - exatamente porque é atravessado por desejos conflitantes, porque ignora muito do como se constituiu dentro de um campo simbólico desenhado de modo classista, racista, patriarcal etc.; nenhum de nós está livre do Inconsciente. Logo, não há porque tanta raiva, tanta fúria, tanta indignação! O melhor seria conformarmo-nos com nossa situação subjetiva e no mundo'. Essa resposta me parece cínica em termos éticos e, certamente, não pode ser desligada de sua função política.
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Cartaz de divulgação da série Crisis in six scenes (Woody ALLEN, 2016) |
Me explico: quase tudo o que o interlocutor imaginário acima disse é verdade em termos de teoria psicanalítica, porém ele, em parte, se comporta tal como o neurótico obsessivo que diz: 'Eu devo ter tido um amor por minha mãe e um ódio de meu pai, na infância, mas já li que isso é normal, é o tal do Complexo de Édipo'. Em suma, ele trata a relação ética do analisante com o inconsciente como puro recolhimento de conhecimento, puro preenchimento de lacunas de memória, tratando-o como uma teoria geral e explicativa, de modo que a experiência afetiva não aparece - ela está deslocada para outro lugar. Freud escreveu um artigo sobre esse problema, "A negativa" (FREUD, 1925), justamente demonstrando que o aparecimento de um material psíquico puramente ideativo à consciência é, de fato, um progresso no tratamento, mas não torna possível a elaboração psíquica; como ele mesmo já dizia em "Recordar, repetir e elaborar" (id., 1914), a elaboração ocupa um lugar no tratamento análogo ao de uma ab-reação, ou seja, é nela que os afetos encontram um trabalho psíquico que lhes dá um novo destino. Ou seja, como se lê também em "O recalque" (id., 1915), o tratamento psicanalítico é, antes de tudo, um tratamento dos afetos e não unicamente das representações mentais - a psicanálise não é intelectualista.
Em termos de ética do desejo diríamos que é na lida com os afetos que o sujeito se mostra de fato trabalhando psiquicamente para afirmar seu desejo. A resistência é afetiva, não ideativa. E, portanto, a mera constatação de que somos todos atravessados por desejos conflitantes é insuficiente como indicação de elaboração realizada ou de posição ética do psicanalista, porque a afirmação do desejo inconsciente supõe um conflito, um trabalho e uma persistência diante das resistências e não uma acomodação - esta última sempre cheira a formação de compromisso, a lógica do sintoma neurótico (id., ibid.).
O artigo "A negativa" (op. cit.) não serviu de referência apenas para se pensar a chamada racionalização obsessiva (JONES, 1908), mas estabeleceu as bases para Freud pensar também a típica defesa perversa: o desmentido, operação em que algo é afirmado e ao mesmo tempo negado ou posto entre parênteses, que se apresenta de modo exemplar em frases como "Dá vontade de te estuprar, você sabe que estou brincando, não é? Isso é força de expressão" ou "Somos todos preconceituosos, então não preciso me importar com meus preconceitos, posso até afirmá-los e defendê-los publicamente, afinal algum se tornará a norma - que seja o meu, então!". Constrói-se um jogo discursivo e/ou prático no qual ao mesmo tempo se afirma algo que poderia trazer à tona um afeto angustiante, mas, através do subterfúgio do jogo, o operador do discurso captura o outro de modo indefeso e o faz refém de um gozo assumido e, ao mesmo tempo, negado. Minha hipótese é que este mecanismo não está somente presente nas tomadas de posição dos neofascistas, como já desenvolvi em outros textos, mas também em muitas tomadas de posição de psicanalistas humanos, demasiado humanos (NIETZSCHE, 1878) que encontram toda uma bricolagem e malabarismos teóricos para defender posições político-morais absolutamente anti-psicanalíticas.
Capa de Jesus não tem dentes no país dos banguelas (TITÃS, 1987), álbum no qual se encontra Nome aos bois |
A atitude desses psicanalistas é, ao meu ver, uma amostragem de um fenômeno mais amplo na nossa cultura, de reação cultural cínica contra as forças subversivas que temos chamado aqui de contracultura. De certo modo, vivemos uma reedição dos conflitos dos anos 60, como Woody Allen bem mostrou em sua série Crisis in six scenes (ALLEN, 2016). Os anos 60 foram tempos de grande repressão, mas exatamente porque foram também a época em que Lacan assumiu de vez a vanguarda do campo psicanalítico francês e Donald Winnicott do inglês - dois psicanalistas profundamente preocupados, cada um ao seu modo, com a afirmação do desejo e da criatividade como elementos subjetivos que possibilitariam aos analisantes saírem de posições assujeitadas ao status quo e encontrarem forças para apostar numa vida mais libertária e menos padronizada, na qual a singularidade seria reconhecida como valor. Encontramos, de certo modo, nos diversos movimentos sessentistas que chamamos de contracultura atitude semelhante - e o rock'n'roll se tornou, ao mesmo tempo, a trilha sonora, elemento constitutivo e vetor desta posição.
Na mitologia grega, os Titãs, como interpreta Junito de Souza Brandão, simbolizavam "'as forças brutas da terra e, por conseguinte, os desejos terrestres em atitude de revolta contra o espírito', isto é, contra Zeus (...), lutando contra o espírito, exprimem a oposição à espiritualização harmonizante" (BRANDÃO, 1997, pp. 196-197). Se é assim, a contracultura é titânica, o rock'n'roll foi titânico, e a banda de rock brasileira Titãs faz jus ao lugar que tal significante ocupou no imaginário grego antigo. A contracultura - em parte por influência da psicanálise e sua teoria das pulsões, sua escuta e seu olhar às dores, angústias e desejos que vibram nos corpos, na carne e nas vísceras humanas -, seja ela tomada em seus movimentos isolados como o feminista, o movimento negro, o maio de 68, os hippies, os punks ou o rock'n'roll dentre outros, seja como uma combinação destes vários movimentos, pode ser tomada como uma revolta furiosa das forças brutas da terra intra e inter-humana contra o espírito dominante do tempo, contra as luzes da razão cínica (SLOTERDIJK, 1981). Na psicanálise a razão cínica dos homens iluminados por Zeus/Deus também se constituiu, aos poucos, neste século, como status quo - e aqueles gigantes soterrados por esta ordem guardam a potência de se levantar enfurecidamente e quebrar esta nova harmonia; no caso da psicanálise, esses titãs têm nome: Freud, Ferenczi, Lacan, Winnicott e alguns outros; suas obras - se lidas - mostram com clareza o quanto a psicanálise não é uma prática nem um arcabouço teórico conformistas a um solo plano, a uma terra habitável e iluminada, muito pelo contrário: são verdadeiros terremotos causadores de fissuras, cavernas e vulcões, de onde brotam lava e gases difíceis de respirar.
Assim que a ditadura brasileira acabou, em 1986, diversas bandas de rock nacional lançaram álbuns e canções cheios de raiva e fúria. Agora era possível, sem censura, ir à público e dizer tudo que estava entalado. Bem no espírito punk, muitas vezes o desejo se expressava primeiro pela expressão do incômodo em relação a tudo o que não se quer - mas este passo elaborativo não só é importante como só é possível num ambiente de franco-falar, num clima cultural no qual se pode, democraticamente, falar de seu incômodo diante das forças opressivas, onde se pode dizer a verdade ao poder (FOUCAULT, 1983-84). Foi nesta altura que a Legião Urbana gravou o disco Que país é esse? (1987), que os Paralamas do Sucesso gravaram o LP Selvagem? (1986) e os Titãs o já citado Cabeça dinossauro. A seguir, para encerrar este texto, reproduzo a letra de Igreja (op. cit.), que consta neste álbum e que eles cantaram no Encontro. Pergunto se uma música como essa se tornaria mainstream hoje no Brasil. Creio que não - o que mostra o quanto ela é necessária ainda hoje e também o quanto perdemos em força subversiva, crítica e democrática, tanto no rock quanto na sociedade brasileira. A força titânica contra a ordem de Zeus/Deus é, aqui, novamente na letra e voz de Nando Reis, absolutamente explícita, tectônica, visceral, punk - e, conforme defendi, desejante (Acheronta movebo [FREUD, 1900]):
"Eu não gosto de padre
Eu não gosto de madre
Eu não gosto de frei
Eu não gosto de bispo
Eu não gosto de Cristo
Eu não digo amém
Eu não monto presépio
Eu não gosto do vigário
Nem da missa das seis
Não
Não
Eu não gosto do terço
Eu não gosto do berço
de Jesus de Belém
Eu não gosto do Papa
Eu não creio na graça
do milagre de Deus
Eu não gosto da igreja
Eu não entro na igreja
Não tenho religião
Não
Não
Não gosto
Eu não gosto"
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A queda dos Titãs (Cornelis VAN HAARLEM, 1588-90) |
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