Velozes, furiosos e narcísicos
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Em 1953, e, portanto, há 70 anos, era publicada, no International Journal of Psychoanalysis, uma conferência proferida por Jacques Lacan dois anos antes, diante da British Psychoanalytical Society, sob o título de "Algumas considerações sobre o eu" (LACAN, 1951-53). Ela não pode ser encontrada nem nos Escritos (id., 1966), nem nos Outros escritos (id., 2001), sabe-se lá porque. E, no entanto, este texto anterior ao momento em que Lacan se tornaria o epicentro da psicanálise na França traz reflexões interessantes ainda para nossa atualidade.
Escolhi aproveitar uma indicação de tal texto de Lacan para comentar um fenômeno que tenho percebido em nossa cultura brasileira de alguns anos para cá: uma mudança gradual da imagem do que seria o carro ideal, o tipo de carro referido como o 'melhor', em nossa sociedade. Aqui o termo 'ideal' não indica o que é bom para todos, mas aquilo que é considerado excelente e, no entanto, é inalcançável para a grande maioria.
Chegando próximo ao fim de sua conferência, o psicanalista francês comenta que via, naquele momento histórico, emergir uma figura, um produto, de nossa era industrial: o Homo psychologicus. Tal modo de se apresentar o humano seria marcado por um olhar para si mesmo como uma máquina, um corpo e uma mente funcionando tal qual uma máquina (como anteviram e desejaram os futuristas italianos da década de 20) - e a psicotécnica emergente seria a prática de conserto da tal máquina. Ora, podemos dizer que Lacan não estava errado em ver nascer tal personagem - hoje, ele é ainda almejado, como discuti na postagem que fiz, neste blog, sobre a inteligência artificial, "Máscaras, inteligência artificial e logro" (CATTAPAN, 19/2/2023). É claro que a posição de Lacan e da psicanálise em relação à psicotécnica e em relação à tomada do humano como máquina cujo bom funcionamento é medido pela sua adequação social é de crítica, mas não pretendo revisitar esse assunto do mesmo modo que fiz na postagem a que me referi acima. Remeto o leitor a ela, caso tenha interesse em adentrar na discussão.
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Cena de Motor Mania (Jack KINNEY, 1950), desenho animado dos Estúdios Disney, em que o pacato personagem Pateta se transforma em um monstro quando passa à direção de seu carro |
Intendo desenvolver a continuidade do comentário de Lacan, qual seja, a de que a relação que o Homo psychologicus estabelece com as máquinas é de tamanha intimidade a tal ponto que seria preciso pensá-los articulados um ao outro de modo não facilmente destrinchável. E o exemplo que o palestrante dá é o que nos interessa: percebe-se tal relação, de modo insofismável, no que diz respeito ao homem e seu carro, que, aliás, era já a relação idealizada pelos futuristas através de seu culto à velocidade. Para Lacan, os defeitos mecânicos e avarias do carro estão em relação com os sintomas do dono/motorista. E, em seguida, arremata que o significado emocional do automóvel expressaria o lugar que esta máquina ocupa na própria instância do eu: ele, ao mesmo tempo, exteriorizaria a concha protetora do eu (como carroceria) como também a falha da virilidade que assombra todo homem (em cada pequeno mal funcionamento do carro).
Aqui no Brasil, dos anos 50 para cá, aumentou brutalmente a quantidade de carros, bem como a possibilidade de pessoas com um poder aquisitivo menor do que a classe alta comprá-los, de primeira ou segunda mão, não importa. Desde muito tempo nosso modo agressivo de dirigir/pilotar carros foi pauta de preocupações, tendo em vista nossos números recordes em acidentes com mortes no trânsito. Canpanhas pelo uso do cinto de segurança tiveram seu efeito protetivo, mas a recente atitude do governo Bolsonaro em tentar barrar a prática de multar o excesso de velocidade indica, ao contrário, um retrocesso, um verdadeiro culto à direção perigosa e violenta, bem como uma despreocupação em proteger a vida que, aliás, se repetiu na sua gestão da pandemia de COVID-19.
Aparentemente há, na cultura brasileira, um culto ao volante agressivo. Até mesmo um grande ídolo nacional, o piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna se destacava, em seu esporte, pela direção agressiva e impetuosa - e morreu de modo trágico num acidente com seu veículo durante uma corrida em 1994. Hoje é célebre o ensaio Fé em Deus e pé na tábua: ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil do antropólogo Roberto DaMatta (DAMATTA, 2010) a respeito de nosso modo de dirigir desrespeitoso à, por exemplo, mais simples das regras: a parada diante do sinal vermelho.
De certo modo tal estudo se articula a Você sabe com quem está falando? Estudos sobre o autoritarismo brasileiro (id., 2020), onde a 'carteirada' representaria a violência autoritária reatualizada e o 'jeitinho brasileiro' a sabedoria do súdito que já percebeu que as regras e leis foram criadas apenas para beneficiar a elite. De modo geral, DaMatta nos mostra um Brasil profundamente marcado por um autoritarismo de casta, classe, raça e patriarcal, no qual alguns são intocáveis e podem tudo, não precisam se sujeitar às regras que valem para os outros, os súditos, o que reatualiza as pesquisas já desenvolvidas por Sérgio Buarque de Hollanda em seu clássico Raízes do Brasil (HOLLANDA, 1936). Assim, dirigir perigosamente, furar o sinal, correr acima da velocidade permitida, seriam demonstrações em ato de que aquele indivíduo não se vê como alguém que deve estar sujeito às leis, regras e restrições a que a maioria deve. Essa conduta é perceptível, evidentemente, entre motoristas das classes privilegiadas, mas não só nelas, pois eles se apresentam como modelo de virilidade fálica a ser imitada até mesmo por quem terá - sim - sua carteira apreendida pelo guarda da esquina.
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Roberto DaMatta |
Se já faz muito tempo que é cultivada a figura ideal do rapaz de elite branco, arrojado, viril e que não se dobra às restrições e limites civilizatórios - na minha adolescência carioca tal personagem era chamado de playboy -, como Lacan já indicava, ele não pode ser pensado desarticulado de seu carro, de seu possante, como se dizia. Um playboy sem um carro era uma figura castrada naqueles tempos. Ele precisava desfilar com seu automóvel para desempenhar bem seu papel. E, obviamente, não poderia ser qualquer carro: era preciso que seu carro fosse, antes de tudo, caro - pois a potência do dinheiro, no nosso mundo capitalista, é a baliza primeira para se medir a capacidade de gozo. Em segundo lugar, o carro deveria ser brilhante, bem polido - e aqui vale lembrar a ênfase que tanto Umberto Eco (ECO, 2002) quanto o próprio Lacan (LACAN, 1960-61) deram à importância do brilho na determinação seja da beleza quanto do objeto fugidio que atiça o desejo (e não podemos esquecer aqui do caso de fetichismo princeps apresentado por Freud em seu ensaio de 1927: o de um homem cujo fetiche era em um 'brilho no nariz').
Em terceiro lugar, o carro deveria ser capaz de correr muito. A velocidade parecia aludir à juventude, à pressão da libido e à vitória na competição social por alcançar um lugar de destaque na exibição narcísica. Fez muito sucesso, se tornou um sinal de status e de orgulho para seus donos, mostrar seus carros caríssimos, brilhantes e velozes como uma Ferrari, uma Lamborghini ou um Porsche. Estes carros, ainda hoje, sabemos, são sinais incontestes, em nossa sociedade capitalista, de poder, mas um outro tipo de carro, que no passado não era tão associado ao status, vem ganhando espaço no imaginário social - e, em particular, no brasileiro - a respeito da falicidade de seu dono.
Me refiro a carros grandes em tamanho, com rodas grandes, massivos, assustadores. Tais carros, cujo tamanho se aproxima do de um caminhão pequeno, de uma pick-up, assustam os outros motoristas, motociclistas, ciclistas e pedestres porque sabe-se bem que se houver algum acidente, alguma colisão, que eles sairão ilesos, enquanto o outro corre riscos muito mais sérios. Tais carros se oferecem como forças viris materializadas na imposição física e violenta. Nada os derruba, nada os para. São primos dos tanques de guerra, mas pertencem à guerra urbana. A imagem fica completa quando - e isso é bem comum - eles são todos pretos, com vidros esfumados e lançam seus faróis altos no outro veículo obrigando-o a sair da frente, de preferência dirigindo quase colados na sua traseira.
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Ferrari Califórnia conversível |
Em Mal-estar na civilização (FREUD, 1930), o primeiro psicanalista é muito claro em nos lembrar que nós, humanos, somos marcados por um desamparo fundamental diante de três perigos: a natureza externa que põe nosso corpo em risco, a fragilidade e os limites que nosso próprio corpo se impõe, e a vulnerabilidade diante do outro humano que pode nos tomar como objeto de gozo, pode nos roubar, trair, matar. Pois bem, parece que um carro tão impositivo e massivo como o tipo a que me refiro, foi construído e comprado porque parece ser eficiente em nos proteger dos três perigos acima elencados. Os comerciais de televisão produzidos para vender estes carros, aliás, representam cenas em que este carro vence todos os obstáculos a que a natureza o impõe: ele passa por lamaçais, tempestades, alagamentos, anda em praias com ondas, passa por buracos e pedregulhos. Ele vence o primeiro perigo. No que diz respeito à fragilidade do corpo humano, não somente a este carro (mas a este também), a indústria automobilística tem investido em superar a 'falha humana' através de, por exemplo, direção hidráulica, hidramática, automática e até carros 'inteligentes'. E, finalmente, diante do perigo do outro humano, este carro é um sucesso - ninguém consegue parar nem violar esta fortaleza em quatro rodas (ainda mais se for também blindado, como alguns são). Com essas vitórias sobre os perigos, o motorista pode, enquanto está lá dentro, sentir-se invulnerável, perfeitamente fechado narcisicamente e, assim, fálico.
Este tipo de carro era, antes, utilizado em fazendas, montanhas, estradas de terra, na zona rural. Seu propósito era resistir a estradas ruins. Indicava a figura do interiorano, do 'caipira', e, por isso, não conferia, nos centros urbanos, status ao seu motorista. Mas isso mudou. Hoje estes carros são muito comuns nas cidades grandes, como o Rio de Janeiro ou São Paulo, e não têm mais relação com estradas de terra ou pedra. Eles se tornaram conchas acintosas, ao mesmo tempo uma proteção do eu que está lá dentro e uma face assustadora para quem está lá fora (tal como o caráter). São perfeitamente equipados para a guerra. O autoritarismo endêmico de nosso país, acusado por Raízes do Brasil e por DaMatta, faz bom uso desta máquina para reatualizar o tipo de imagem egóica do que nós, brasileiros, infelizmente, idealizamos como modelo admirado, invejado.
Aqueles carros de luxo como Maserati, Ferrari ou Lamborghini, comparados aos tanques urbanos, parecem frágeis, de papel. Sua concha protetora não parece tão grossa, sem contar que muitos daqueles carros esporte têm tetos conversíveis. São carros vulneráveis ao ataque, à invasão do outro no trânsito parado das grandes cidades, onde a velocidade não pode ser explorada como proteção.
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Cena de comercial de TV da Land Rover na Serra da Capivara (agência WUNDERMANN, 2015) |
Seja por conta do aumento da violência urbana, seja por conta da cultura da ostentação do capitalismo selvagem, seja por conta da repetição do autoritarismo brasileiro e seja, finalmente, por conta do desenvolvimento progressivo, neste país, de valores fascistas como força, imposição e violência como estilo de vida, os carros tipo Range Rovers e o modo como se comportam no trânsito são a melhor representação da brutal tensão político-social que dá sentido à enformação do eu de muitos de seus motoristas/proprietários, bem como de muitos eus que não possuem tais automóveis mas se identificam com os ideais do eu neles condensados. Pode-se dizer que o Range Rover e seus similares funcionam dentro daquilo que o psicanalista Christian Dunker chamou de lógica do condomínio (DUNKER, 2017), na medida em que marcam, pela sua impenetrabilidade, pelo isolamento que parecem sustentar, uma continuidade do condomínio em quatro rodas, ou até como 'ponte' móvel entre um condomínio e outro.
Dunker sugere que o condomínio (em geral de classe alta), devido às suas grades, muros, devido à guarita na porta, aos seguranças, à cerca elétrica (em relação ao espaço externo) e ao imenso espaço limpo, organizado, florido e com deliciosas áreas de lazer, sem cerca entre as casas e pacífico (no espaço interno) realiza um sonho da elite brasileira. A respeito destes condomínios (e eu acrescentaria, dos Range Rovers como suas extensões), o autor escreve: "o estatuto português e brasileiro do condomínio provém do conceito de defesa, cujo modelo é o forte de ocupação", com objetivo militar mesmo - a lógico do condomínio teria por premissa excluir o que está fora de seus muros, deixar os sujos, pobres, pretos e feios de fora e longe. Sua lógica é aquela que Freud identifica no eu-prazer (FREUD, 1915, 1925): 'tudo o que é bom é assimilado pelo eu, tudo o que é ruim é expelido por ele', ou seja, trata-se da dinâmica paranóica que Lacan reconhece no funcionamento de todo eu e que ele descreve no artigo já citado mais acima (LACAN, 1951-53).Como dizia o personagem Justo Veríssimo, político patrimonialista, do humorista Chico Anysio: "Eu quero é que pobre se exploda!" - e é isso mesmo o que deve ser feito com ele caso queira entrar no condomínio, caso atrapalhe a circulação do carro-condomínio ou queira dar um rolê no Shopping Center.
O jardim da violência autoritária vem sendo regado há muito tempo, eu diria, constantemente em nossa história. Mas com o neofascismo, temos demonstrado nossa brutalidade atávica de um modo indisfarçado que não se via há anos - a não ser, talvez, no modo como alguns carros-tanques se impõem nas estradas e ruas brasileiras, passando por cima de quem incomoda. Não queríamos ver. Não podemos mais fazer isso.
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Christian Dunker |
Agora o meu costume de observar quem desce de uma 4x4 e tentar traçar um perfil ficará ainda mais forte kkkk
ResponderExcluirTexto interessantíssimo! Os carros passam, de fato, um sinal claro da (im)potência fálica.