O ovo da serpente na iconografia idealizada de Tiradentes
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Dia 21 de abril foi o feriado de Tiradentes, como qualquer brasileiro sabe. Data de sua morte por enforcamento, seguido de esquartejamento, por parte do poder soberano monárquico português. Tiradentes hoje é o patrono das polícias civis e militares brasileiras. Como isso foi possível? Como um conspirador contra o poder soberano se tornou o patrono do atual braço do poder estatal brasileiro que mais mata quem o desrespeita? No texto de hoje pretendo discutir parte da iconografia construída em torno da figura do alferes mineiro e mostrar como ela foi útil ao poder.
No Rio de Janeiro, em frente ao Palácio Tiradentes, atual sede do poder legislativo estadual, encontra-se uma escultura que representa nosso personagem como um homem aparentemente idoso, com barbas longas, austero e altivo, olhando para o alto, coberto com um manto mas deixando aparecer seus braços algemados. A estátua não tem tamanho humano, mas sobre-humano, o que importará em minha análise, tamanho ainda aumentado por estar suportada por um pedestal.
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Monumento a Tiradentes (Francisco de ANDRADE, 1926), Rio de Janeiro |
Importa informar ao leitor que Tiradentes não morreu idoso, não tinha barbas longas e não vestia mantos. Mas é de chamar a atenção que outras obras anteriores à escultura acima descrita já o representavam assim, tal como um santo mártir cristão nas iconografias medieval, renascentista e barroca.
Remeter esta escolha representacional a algum desconhecimento a respeito do Tiradentes histórico é insuficiente numa argumentação orientada pelo campo psicanalítico. Pois o que é posto em cena no espaço vazio de uma ignorância ou esquecimento tem sua positividade, precisa ser explicado também em termos de sua escolha, de sua função e de sua estrutura.
Se Freud nos ensina que o esquecimento supõe um recalcamento de uma representação (FREUD, 1895), ou seja, uma força defensiva que age contra a lembrança consciente, ele também se debruça sobre os substitutos da representação obnubilada. É o que ele fez, por exemplo, em Psicopatologia da vida cotidiana (id., 1901) a respeito de seu próprio esquecimento do nome de um pintor renascentista, durante uma conversa em um trem, com um desconhecido. No lugar dele, alguns nomes lhe vieram à mente. O nome esquecido: Signorelli. Lhe vieram à mente: Boltraffio, Botticelli. Para Freud, não era apenas preciso compreender porque esquecera um nome, mas também porque surgiram os outros. Sua conclusão é de que os nomes substitutos eram uma formação de compromisso entre Signorelli e outras palavras ligadas a ele e que estavam relacionadas ao fluxo associativo da conversa que estava em curso.
Assim, por exemplo, o BO de BOltraffio e BOtticelli remetia a BÓsnia, que era tema da conversa, um tema delicado, pois dizia respeito a hábitos dos muçulmanos que Freud não tinha certeza se queria mesmo trazer ao papo, pois concerniam à esfera do sexual, não muito adequada numa conversa com estranhos. O que foi esquecido foi SIGNOR, pois ELLI reaparece em BoticELLI. SIGNOR remeteria, no contexto das suas associações, ao maior Senhor de todos, a morte, o que, por sua vez, trazia o sentido para a aparição de BolTRAFFIO: a lembrança de que na cidadezinha italiana de TRAFOI ele recebeu a notícia horrorosa de que um paciente seu, que sofria de distúrbios sexuais, teria cometido suicídio. Portanto, TRAFFIO/TRAFOI trazia a conjunção dos dois assuntos espinhosos que insistiam na mente de Freud: sexo e morte. Em suma, a interpretação é de que ele não queria lembrar da morte e do horror causado por alguns temas sexuais, uma vez que o supereu ameaça de morte os envolvidos pelos pecados - dentre eles sempre em destaque os da carne -, como no ensino religioso católico ocorreria no Juízo Final, que é justamente o que está representado no afresco Os danados (1499) de Luca Signorelli, na Catedral de Orvieto, em torno do qual circula todo o estranho incidente do esquecimento.
No lugar, o que veio foram nomes de artistas renascentistas que realmente existiram, e não neologismos sem sentido: Boltraffio e Boticelli. Ora, quanto a Boltraffio, o próprio Freud sabia que nada tem a ver com a obra cujo nome do autor queria lembrar; Boltraffio foi um artista irrelevante se comparado aos outros dois, que não interessava realmente a Freud. E quanto a Botticelli, esse sim um mestre contemporâneo e mais famoso que Signorelli, eu diria que ele tinha como uma das mais conhecidas marcas de sua pintura, a graciosidade e a beleza que conseguia criar em suas obras; estilo muito diferente das figuras angulosas de Signorelli.
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O martírio de Tiradentes (Aurélio de FIGUEIREDO, 1893) |
Freud esqueceu a imagem da morte e do horror frente as questões referentes à sexualidade neurótica e, no lugar, tentou pôr ou a irrelevância ou a beleza. Evidentemente se trataria de um processo defensivo. O que opera aí é o princípio do prazer e a estrutura da fantasia que, como ele dizia já em 1897, numa carta a Fliess, 'embeleza' a memória. Ou como ele mesmo propôs em "Lembranças encobridoras" (id., 1899), modela a memória através da realização de desejos (buscando o prazer e evitando o desprazer).
A imagem de Joaquim José da Silva Xavier assemelhada à de um mártir cristão parece servir à sustentação de algumas fantasias bem brasileiras. Para compreendê-las é preciso que o leitor esteja a par do fato de que Tiradentes é um herói a posteriori. A instalação da República em 1889 através de um golpe militar contra o Império de Dão Pedro II é que buscou no passado o alferes heróico. Não que Tiradentes e a Inconfidência Mineira não tenham realmente existido; óbvio que existiram. Mas não tinham nenhum lugar no imaginário e no ideário nacional. E rapidamente o 'santo' inconfidente passou a ocupar lugar de destaque, já que já em janeiro de 1890 se firmou o dia 21 de abril como o dia de Tiradentes, recuperando a história que se passou em 1792 como uma espécie de ponto de partida do movimento que desembocaria naquele golpe de Estado.
Como Laurentino Gomes mostra em 1889 (GOMES, 2013), o golpe republicano não obteve apoio popular. É verdade que também não houve objeção. Foi recebido pelo povo brasileiro como uma disputa de poder entre as elites. Não verdadeiramente transformador da ordem social. Se os militares golpistas de 1889 eram membros de uma elite, parte dela representante dos senhores de terras escravistas até o ano anterior, parte dela sonhadora do desenvolvimento de uma burguesia aos modos das europeias e estadunidenses, parte dela vingativa em relação ao desprestígio frente à Família Real, Tiradentes, cem anos antes, não era um personagem da elite. Era um representante da pequenina classe média. Ele representava melhor um sonho revolucionário e democrático que os oficiais aristocráticos novecentistas.
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Tiradentes esquartejado (Pedro AMÉRICO, 1893) |
Tiradentes era, visto retrospectivamente pelos fundadores da República Brasileira, uma bandeira, uma imagem de sonho libertário diante de uma Dona Maria I, a louca, autoritária e opressora. Um antecessor da insurreição contra o Poder Monárquico. Tiradentes teria sido, junto dos outros conspiradores contra a monarquia portuguesa, um personagem tecido no sonho revolucionário estadunidense e francês do século XVIII; já os golpistas de 1889 eram mais operadores de uma Realpolitik que via o Brasil ser encurralado pelo desenvolvimento do imperialismo capitalista liberal inglês, que via nosso país ficar 'atrasado' no desenvolvimento e na corrida mundial por indústria e mercados, que via também o Imperador como uma figura que inibia ou mesmo impedia os militares de participarem da arena política nacional. O golpe de 1889 foi realizado para garantir algo que se repetiu compulsivamente na história da República do Brasil: a não neutralidade da alta casta militar na política. Os militares encontraram em Tiradentes a bela fantasia da tentativa de conspiração e intervenção militar em nome do progresso. Como, aliás, apregoava a ideologia que abraçaram desde então - o positivismo materializado na figura de Benjamin Constant.
Acontece que Tiradentes era somente mais um dentre os conspiradores. Havia no grupo, além dele, de outros militares de baixa patente e outros representantes da classe média, aliás, seis padres. Quanto a isso vale comentar, com Will Durant (1950) que, curiosamente, no Antigo Regime, se para os leigos a Igreja ocupava o papel de poder soberano, internamente era uma das instituições mais próximas do que hoje chamamos de democrática: ali todos eram irmãos; pobres e nobres podiam abraçar a vida monástica ou de sacerdócio; a ascensão de alguém de origem pobre dentro da hierarquia piramidal da Igreja era mais provável que fora. E poderíamos dizer algo parecido a respeito da Caserna também.
Se Freud, em Psicologia das massas e análise do eu (1921), usou como exemplo de grupos artificiais (ou seja, de grupos reunidos também pelo medo das ameaças a quem os abandonasse, e não somente por escolha, por laço libidinal), justamente a Igreja e o Exército, isso foi já num contexto moderno. Se no Antigo Regime estas instituições abrigavam uma experiência de liberdade relativa, de democracia e mesmo de republicanismo se comparadas ao que estava do lado de fora delas; no mundo moderno, elas, ao contrário, expressam restos do Poder Soberano e seus instrumentos de coação autoritária, mesmo que ambas estejam nas origens, na germinação do poder disciplinar que tanto marcou o ocidente novecentista (FOUCAULT, 1975).
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O nascimento de Venus (Sandro BOTTICELLI, 1483), um bom exemplo de como a arte de Botticelli se ocupava mais com a beleza do que com a experiência do horror |
Se já é possível compreender a que serviu o resgate da figura do Tiradentes como herói da República, ainda não falamos de sua transmutação em mártir cristão. Suspeito que esta escolha se deve à tentativa de conquista de corações brasileiros, aos moldes da estética persuasiva barroca, que, no Brasil, tinha saído de moda há pouco tempo: seria preciso que, de fato, se importassem com a causa da República! Como no século XIX e na primeira metade do século XX o catolicismo tinha força dominadora na disputa pela fé, evocar os santos cristãos aglutinaria grupos heterogêneos:
1) ganharia-se a simpatia da Igreja e, ao mesmo tempo, lha tranquilizaria. Todos sabiam o que os revolucionários republicanos franceses fizeram com os padres e propriedades da Igreja. Propunha-se uma república assombrada pela força cristã como contramedida.
2) conferiria-se uma sacralidade ao ideal republicano que concorreria com a já tradicional sacralização do poder monárquico. Acima de todos, deveria sempre estar Deus, nosso Senhor. Compensação importante para comover aqueles muitos marcados pela servidão voluntária (LA BOÉTIE, 1549).
3) colaria-se a imagem de mártir da pátria ao personagem do militar, o que lhe daria respeitabilidade e a aura de figura necessária para a sustentação do sonho republicano.
4) ao conferir ao personagem uma imagem de 'sábio' de longas barbas, também se aludiria ao destino já traçado, profetizado, desencadeado e irreversível da história nacional. Haveria algo de messiânico no movimento militar por tomar o poder no Brasil. E não é que o idoso de barbas também era o próprio Marechal Deodoro?
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Marechal Deodoro da Fonseca |
5) recorrer-se-ia ao possível da história brasileira para evocar uma autoridade do passado. Se, ao realizarem suas revoluções, estadunidenses e franceses procuraram uma referência ética e estética também no passado, estes escolheram sustentar o ideal neoclássico de que restabeleceriam os valores cultivados na Roma antiga. Se viam como a Nova Roma, imajada como uma civilização racional, militar, imperial e justa, terreno onde a democracia supostamente deveria prosperar. A França foi parte do Império Romano e desde Carlos Magno sonhou em ser sua herdeira. Os E.U.A. buscaram emular Roma ao tomar a Europa/Inglaterra como a Grécia imitada, inspiradora, superada e, quem sabe, um dia conquistada. No que diz respeito ao Brasil, ao escolher o mártir cristão como referência ética e estética em detrimento do orador romano, sinaliza-se que buscamos como referência não a vitória imanente, neste mundo, mas a vitória espiritual e transcendental, o que nos permitiria aceitar a humilhação, a derrota neste mundo, a dor e a miséria como indícios de um martírio em nome de uma prosperidade no além: não haveria problema algum em nenhuma revolução de fato conseguir se realizar no país, haveria o consolo de que quem abraça a fé verdadeira está do lado da justa posição ética. Estaria em ação um modo de, ao mesmo tempo, o Brasil se ver como o país do futuro, mas de um futuro que jamais vem (ZWEIG, 1941). De certo modo, o projeto de Darcy Ribeiro com seu O povo brasileiro (RIBEIRO, 1995) foi justamente abandonar o sonho de um além transcendental e erigir o sonho do Brasil como uma Nova Roma a se realizar não em um amanhã distante, escatológico, mas em nosso tempo de vida.
Obviamente estou me referindo bem mais ao Tiradentes inventado no fim do século XIX em texto e iconografia e menos ao Tiradentes histórico. Quanto a este, foi apenas um traço que, num segundo tempo, ganhou novo sentido a partir de uma interpretação retrospectiva. É esse mesmo o sentido temporal das fantasias neuróticas, como Freud as descreveu (FREUD, 1916-17).
Se Freud esqueceu o Signor, a morte e o horror da punição pelo sexual, o que esquecemos, o que apagamos da imagem de Tiradentes? Sua juventude, seus trajes de homem comum, sua vida até então banal. O que se tentou apagar da nossa história é a possibilidade dos jovens comuns se identificarem com o personagem quasi-revolucionário. A estátua em frente ao Palácio Tiradentes tem dimensões sobre-humanas para nos mostrar que não estamos à sua altura, que somos meros mortais perto deste gigante, de modo que revoluções são para gente como ele, não para nós. Talvez isso seja perigoso. Nossa república já nasceu velha e marcada pela figura dos velhos, homens gigantes ou a cavalo: com as faces idosas do Marechal Deodoro da Fonseca e do Tiradentes imaginário. Os jovens morreram em 1792.
Talvez o leitor, agora, esteja em vias de concordar comigo: só não quisemos ver, mas as bases constitutivas da ascensão recente de um neofascismo brasileiro estavam presentes desde o nascimento de nossa república. Que revisitemos Tiradentes como o jovem sonhador que foi, e não como o mártir convulsivo a serviço do status quo e patrono de uma polícia violenta e antidemocrática.
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Darcy Ribeiro |
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