Espetáculo e denegação no Mosteiro de São Bento
- IF YOU WANT TO READ THIS TEXT IN YOUR LANGUAGE, SEARCH FOR THE OPTION "Tradutor" (Translator) IN THE TOP LEFT OF THE SCREEN -
Em Rua de mão única (1923-28), o filósofo Walter Benjamin sugere que a condição de poder pensar uma cidade, sua cultura, sua vida, sua lógica, é a de uma distância necessária. A distância possível, para o autor, se daria através da visita a uma cidade que não é a sua, a estranheza quase etnológica seria a bússola da reflexão crítica. Vemo-lo aplicando isso, por exemplo, a Nápoles ou Moscou em Imagens do pensamento (1925-34). Mas já nesses ensaios a distância não é uma condição a ser mantida, ao contrário, Benjamin acentua a porosidade como condição da experiência, de modo que o sujeito vai, aos poucos, habitando o espaço. É no processo de afetação pela cidade que a reflexão sobre ela se daria, mas o estabelecimento da cidade como hábito/habitação confortável demais já seria o impedimento dessa experiência. É na exploração da cidade, na confecção de seu mapeamento, que tal experiência se daria. Já Infância em Berlim por volta de 1900 (1932-33) nos apresenta outra possibilidade que não a visita a terras estrangeiras: a visita ao passado distante da própria vida na mesma cidade, à infância como um campo de experiências ao mesmo tempo estranho e familiar, o que oportunizaria também a tensão da exploração e do mapeamento - a respeito disso creio que os psicanalistas estão de acordo.
Mas o que pretendo fazer aqui não é nenhuma das duas coisas, ou melhor, é um pouco uma mistura delas. Sou carioca, mas isso não quer dizer que tenho o Rio de Janeiro mapeado na palma de minha mão. Há espaços nesta cidade em que jamais estive, eles são ao mesmo tempo estranhos, estrangeiros, mas, uma vez que participam da cultura carioca na qual estou imerso desde a infância, são também familiares. Insisto na dialética estranho-familiar pois Freud produziu um interessante ensaio sobre esta experiência estética, "O estranho" (1919), no qual justamente defende que a experiência da estranheza é um modo razoavelmente seguro de nos atentarmos para o que é familiar e que, no entanto, não queremos olhar, não queremos saber, ou seja, o inconsciente. A cultura urbana pode nos proporcionar esta experiência tal como as obras de arte - objeto do ensaio de Freud.
Muitas vezes quem nasceu e vive numa cidade grande como o Rio de Janeiro conhece menos boa parte de seu patrimônio cultural do que quem visita a cidade ou emigrou para ela tardiamente. Em certo sentido, é o meu caso, afinal, apenas hoje, após 46 anos de vida, decidi finalmente conhecer o Mosteiro de São Bento e sua conhecida missa de domingo às 10 horas. Ou melhor, não se pode conhecer o mosteiro, para ser mais preciso, conheci apenas a Igreja de Nossa Senhora de Montserrat (MESQUITA, 1617; SOUZA, 1671), que faz parte do complexo de edifícios que compõem o mosteiro. A seguir pretendo discutir um pouco esta experiência.
![]() |
Fachada da Igreja de Nossa Senhora de Montserrat, Rio de Janeiro (Francisco Frias de MESQUITA, 1617; Frei Bernardo de São Bento Correia de SOUZA, 1671) |
Ao observarmos a igreja por fora, ainda vemos majoritariamente a preservação do projeto maneirista de Francisco Frias de Mesquita, com alterações realizadas pelo Frei Bernardo de São Bento Correia de Souza. Comparado ao que se convencionou a respeito do que é este estilo, o maneirismo, o traço dos arquitetos é discreto, sóbrio, lembrando mais um forte militar, mantémdo maneirismo a razoavelmente livre combinação de formas arquitetônicas, desligadas da heterodoxia clássica Vê-se, por exemplo, na fachada, três entradas em arco que não encontram continuidade harmônica no segundo andar, com molduras em ângulos retos.
Mesquita era, de fato, engenheiro militar. Nos tempos em que foi projetado o mosteiro, em que a cidade contava apenas 40 anos de idade, momento ainda em que o Rio de Janeiro ainda era fundamentalmente um território sob ocupação portuguesa bem mais do que uma cidade propriamente dita, em que os colonizadores precisavam proteger sua conquista dos indígenas, dos franceses e dos piratas em geral o tempo inteiro, o sentido de ocupação militar estava expresso em toda a arquitetura local, impondo suas formas também às construções da Igreja.
De certo modo este 'período' durou bastante, pois quando, no século seguinte, em 1755, se terminou a construção do mosteiro tal como o conhecemos hoje, a obra ainda tinha a assinatura de um engenheiro militar; neste caso, José Fernandes Pinto Alpoim. Todo o mosteiro, localizado em cima de um morro à beira da Baía de Guanabara, às portas do porto do Rio de Janeiro e, hoje, quase anexo à área militar da Marinha do Brasil, parece a quem olha de longe, mais uma grande fortaleza que uma área de experiência do sagrado. As torres da Igreja retificam o olhar.
Porém, após entrar na Igreja de Nossa Senhora de Montserrat as coisas mudam de figura, literalmente. Em seguida à galilé com azulejos e portões de ferro que, apesar de tardios, lembram ainda a arquitetura sóbria colonial, militar-maneirista, o que se vê é já barroco, fausto, marcado pelo excesso decorativo, em óbvio contraste com o espaço exterior. De 1643 a 1794 diversos escultores trabalharam na criação do que se vê hoje, de Frei Domingos da Conceição a nomes ainda hoje celebrados como o do Mestre Valentim.
Como típica decoração barroca, vê-se presente bastante opulência, ouro, brilho, minúcias decorativas e imagens persuasivas. Na missa de domingo, além da visão impressionante de toda a decoração, outros sentidos são excitados: os incensos fortes animam o olfato; ao permanecermos de pé por muito tempo, o corpo sente; e, claro: a audição é afetada. O órgão, o canto gregoriano e a própria oratória da missa, em ritmo repetitivo, mantida na repetição de uma única nota musical, além da repetição das respostas dos fiéis, formam um complexo excitatório dos ouvidos. Seguindo o modo barroco e contrarreformista, a missa é um grande espetáculo sensorial e persuasivo da existência de um Reino dos Céus, do Mistério, da Graça.
Pareceria que voltamos no tempo para o século XVII caso a experiência do espetáculo não remetesse ao sentido moderno de espetáculo (ou talvez pós-moderno [DÉBORD, 1967]). A missa está lotada, mas não somente de crentes; os turistas entram, ficam um pouco e saem. A movimentação durante a cerimônia - de entra e sai - é contínua. Além disso, turistas ou não, os presentes puxam seus telefones celulares várias vezes ao longo da 1h:30 minutos do 'espetáculo' e registram fotos, selfies e filmagens de partes que lhes parecem interessantes de guardar ou mostrar para outrem. Em algumas igrejas das cidades históricas de Minas Gerais, nas quais o turismo é frequente, não se permite a entrada de visitantes com roupas 'inadequadas' (mostrando pernas, barrigas e braços), também não se costuma permitir filmagens nem fotografias em muitas igrejas - principalmente durante o culto. Se o Mosteiro de São Bento fosse uma instituição católica dita 'liberal', poder-se-ia compreender esta 'tolerância', mas, ao contrário, o Mosteiro é conhecido como uma das instituições mais conservadores tanto religiosa, como em termos de costumes, quanto politicamente da cidade. A faculdade de teologia ligada ao mosteiro tem esta marca e o Colégio São Bento, administrado pelo Mosteiro, é o único da cidade que prefere pagar multas a obedecer à lei nacional que obriga a instalação do ensino misto; lá só há alunos homens ("como sempre foi"). Ou seja, dizer que o mosteiro é conservador é pouco - em alguns aspectos é reacionário.
Então a surpresa é grande. Como uma instituição conservadora ou mesmo reacionária é tão liberal quando o assunto é tomar a experiência do culto como espetáculo turístico? O que esta instituição e seu culto querem preservar ou reinstituir e o que é, por outro lado, aceito?
Voltemos à figura histórica de São Bento de Núrsia: esta importante personagem da história do cristianismo (tanto do católico, quanto do ortodoxo e do anglicano), no século VI inventou a Regra de São Bento (pautada na máxima "reza e trabalha") e, dela se estabeleceu um modelo, um padrão do funcionamento da vida monástica cristã daí por diante, salvo alguns desvios. Pode-se dizer que São Bento foi o inventor do mosteiro cristão e a ordem dos beneditinos foi a primeira ordem monástica.
![]() |
Curiosa representação barroca de São Bernardo (Jean MORIN a partir de Phillipe de CHAMPAIGNE, século XVII), o santo que combateu a utilização de imagens para a experiência religiosa |
Séculos depois, no século XI, a Ordem de Cister tentou restabelecer o regime beneditino como modelo a ser seguido. Foi no seio desta ordem, mais um século percorrido, que uma importante querela foi disputada na França. De um lado, São Bernardo, de outro, o abade Suger de Saint-Denis. O primeiro defendia que o culto às imagens distanciaria o fiel de Deus e incorreria em pecado, ao tomar algo mundano como falso ídolo. Suger, ao contrário, sustentava que as imagens são um meio, um instrumento para se ter acesso a Deus, além do que, todas elas são parte da Criação, e, portanto, como nada que vem de Deus pode ser mau, elas também seriam boas (ECO, 1987). De Suger emergiu o estilo gótico, enquanto São Bernardo defendia a iconoclastia românica como resistência.
Mais à frente no tempo, a mesma iconoclastia reaparece no discurso reformista de Martinho Lutero e do calvinismo. E a contrarreforma católica, belicosamente, apostará todas as suas fichas na proliferação de imagens, agora não somente como via de acesso a Deus, mas como instrumento de persuasão (ARGAN, 1984). Daí emerge o Barroco. Trago esta história da proliferação de imagens e iconoclastia cristãs para lembrar que a experiência do Mosteiro de São Bento remete às duas: discrição e muros brancos de fora; dentro, a exuberância barroca. Mais importante em meu argumento: ouvimos no mosteiro o canto gregoriano e, no entanto, tal canto, estabelecido e organizado por São Gregório no século VII, tem sua estética mais conforme ao estilo arquitetônico precedente ao Gótico, o Românico, na medida em que é composto de modo tal que o fiel não se excitaria com a melodia nem a harmonia, não se busca nele a excitação dos sentidos e a formação de imagens, mas sim uma experiência meditativa, uma paz espiritual que aproximaria o ouvinte das palavras sagradas (não por acaso até hoje mantidas em latim).
O canto gregoriano é uníssono; todo o coro canta exatamente as mesmas notas, no mesmo ritmo e tom. É propositadamente monótono. Serve de ambiente para se entrar em outro estado espiritual, de abandono dos prazeres da carne, do eu, e contato com as escrituras, mas não como anetodas e, sim, como palavras sagradas cheias de mistério, a serem repetidas como puro encadeamento significante desconectado - o máximo possível - das imagens, das coisas, do significado.
Historicamente, o canto gregoriano quase caiu em desuso justamente com a ascensão do estilo barroco. A música sacra barroca (incluindo aí o coral) oferece ao ouvinte a experiência do contraponto: mais de uma melodia é executada ao mesmo tempo, formando um entrelaçamento complexo entre elas. As vozes se embaralham repetindo em som a complexa articulação tensa, cheia de arabescos, idas e vindas, tensões e distensões das artes plásticas e arquitetônicas barrocas. Não se trata mais de relaxamento, mas de espetáculo intrincado e excitante. O melhor exemplo disso é a obra de Johann Sebastian Bach.
O canto gregoriano só foi retomado, num ato reacionário tardio diante da música e da atitude moderna diante da religião, no final do século XIX. Ou seja, o Mosteiro de São Bento, ao preferir o canto gregoriano, não mantém a experiência do século XVII, ao contrário, ele repete o gesto reacionário de alguns católicos do século XIX. Estranho movimento: adoção de uma música que sustenta a simplicidade iconoclasta medieval pré-gótica num espaço arquitetônico interno todo barroco e rococó, persuasivo, cheio de imagens, formas, efeitos cativantes e convulsivos (o claro-escuro, o vazio e o cheio, a linha reta e a curva, movimentos ascendentes e horizontais, além dos diagonais, a pedra e a madeira, o brilho e os reflexos etc.).
![]() |
Johann Sebastian Bach (Elias Gottlob HAUSSMANN, 1748) |
Parece que o que se experimenta na missa de domingo da Igreja de Nossa Senhora de Montserrat é menos um retorno a outros tempos do que a invenção de um espetáculo que mistura formas de tempos variados (a ordem monástica do século VI, a música gregoriana do século VII, a arquitetura externa maneirista do fim do século XV, a interna barroca e rococó dos dois séculos seguintes, as filmagens, fotos e circulação de turistas de nosso tempo), para criar uma imagem onírica, idealizada, condensada de um sonho católico. Portanto, a atitude de reação não é de forma alguma uma negação de nosso momento histórico; é um modo de estar nele. Lembremos que o já mencionado Colégio São Bento, que não aceita meninas, não é uma instituição que forma alunos para uma vida de outros tempos ou somente para a vida após a morte. Este colégio se orgulha de formar alunos que passam nos primeiros lugares do ENEM e dos concursos vestibulares; ou seja, ele se orgulha de preparam adolescentes para a primeira concorrência, para a primeira competição capitalista 'para valer' de suas vidas: é um colégio absolutamente em acordo com as expectativas do homem capitalista contemporâneo.
E, no entanto, talvez um interlocutor poderia dizer que essas contradições, ao invés de se distanciarem do espírito e da estética barrocos, se alinham a ela, na medida em que foi justamente a experiência do Barroco o que sinalizou o quanto o humano é contraditório, marcado por conflitos incessantes, em eterno sofrimento - especialmente por conta do conflito entre carne e espírito. O Barroco se antepôs ao projeto reformista dos protestantes, projeto iconoclasta, bem como ao esforço do pensamento clássico de enquadrar a representação; para este último ela deveria ser clara, bem delimitada, precisa e adequada, não confundível com outra representação, com relação inequívoca com a coisa representada, não afeita a confusões (FOUCAULT, 1966). Deixemos de lado o pensamento clássico no texto de hoje, voltemo-nos ao protestantismo.
Martinho Lutero acusou a Igreja de hipocrisia, de ter se corrompido, de cultivar a luxúria através do mecenato dos artistas renascentistas, de alimentar a ganância através da prática da simonia. A Reforma propunha um cristianismo levado à sério, mais radical do que o dos papistas. Es5e acontecimento teria sido, assim, o ponto zero de onde emergiu a crise no mundo cristão que ainda o marca hoje em dia: da Verdade absoluta, a Europa (e a recém inventada América dos colonos brancos) passava ao conflito (muitas vezes armado) entre fés diferentes e, em certos lugares e tempos, antagonistas. É a incerteza provocada nas subjetividades da virada do século XVI para o XVII o que criou o Barroco - agora como prática de persuasão e não mais atestação do estabelecido. A persuasão supõe um conflito, externo e interno, uma incerteza, a busca de provas, de elaboração etc - é nesse sentido que Giulio Carlo Argan define o Barroco como uma experiência já moderna (1986).
![]() |
Retrato do reformista e iconoclasta Martinho Lutero (Lucas CRANACH, o velho, 1528) |
Mas Friedrich Nietzsche observará Lutero sob outro escopo. Para ele (NIETZSCHE, 1888), Lutero não foi o gatilho de uma modernização, mas o contrário; o que marcaria a modernidade seria a morte de Deus; o Renascimento já era a expressão desta morte, com todo o seu desenvolvimento humanístico, com toda a sua licenciosidade erótica (inclusive a eclesiástica), com todo o culto da vontade de potência, parecia que a Europa migrava para a afirmação das forças imanentes. Lutero teria pressentido a morte de Deus e para salvá-lo da morte, o reformista culpou e 'matou' o Papa. Tal como em psicanálise se diz que o neurótico salva o pai da humilhação com seu sintoma (FREUD, 1909; LACAN, 1952), Lutero teria salvo Deus com a Reforma.
A morte de Deus ressurge como força da modernidade difícil de ser escamoteada justamente com o acontecimento Nietzsche e o fim do século XIX, era em que o cientificismo se torna uma nova fé substitutiva, aliás. Foi nesta época que a Igreja restabeleceu o canto gregoriano, lembremos. Somos, hoje, ainda, herdeiros da morte de Deus e dos esforços em negá-la. A missa quase onírica do mosteiro de São Bento parece ser exatamente uma experiência desta espécie: ela não é a volta no tempo, ela é a invenção de uma cena que ao mesmo tempo nega a morte de Deus (através do rito hipnótico e espetacular), mas não deixa de afirmá-la ao tornar o espetáculo menos um encontro com Deus e mais uma atividade turística, de acúmulo de experiências imanentes e de sensualidade pós-moderna.
Retomo o tema das contradições barrocas: talvez possamos dizer que ele é caro também aos psicanalistas; quem sabe há efeitos da estética barroca também em Freud? Pelo menos podemos dizer que o Barroco é um dos estilos estéticos predominantes ainda hoje na sua cidade, Viena - e no Império Austro-Húngaro de um modo geral. Basta mencionar o Palácio de Schönbrunn (von ERLACH, PACASSI, 1687-1700) e a Karlskirche (BERNHARD, von ERLACH, EMANUEL, 1716-37). O conceito de inconsciente supõe a coexistência de desejos diferentes e mesmo contrários, em ação, concomitantemente, no psiquismo humano (FREUD, 1900). Uma vez que o contraditório pode habitar o humano, Freud pode ainda nos falar de uma bissexualidade fundamental (id., 1905), de sentimentos ambivalentes (id., 1915), de pulsões de vida e de morte (id., 1920) e de mecanismos psíquicos de afirmação e negação, ao mesmo tempo, de uma experiência (id., 1927). Mais tarde, Winnicott (2021) e Lacan (1961-62) enfatizarão o paradoxo como experiência psíquica a ser sustentada, o que denota a radicalidade do ponto de vista psicanalítico: o paradoxo indica uma contradição irrevogável, incondicional. Lacan, por exemplo, adota a fita de Moebius para imajar a estrutura paradoxal do dentro-fora, do exterior-interior, cunhando mesmo o neologismo êxtimo (íntimo exterior ou exterior íntimo, parente do estranho-familiar freudiano), e ajudá-lo a pensar a topologia da experiência subjetiva (id., 1963-64).
![]() |
A fita de Moebius |
Diferente de ver nisso um erro a ser corrigido, como faria a abordagem clássica, a psicanálise nos põe diante de nossos conflitos, de nossas contradições e de nossos paradoxos como condições fundamentais. A psicanálise sustenta a experiência do inconsciente como experiência desta estranheza familiar que é a impossibilidade de sermos inteiramente coerentes conosco; quem eu afirmo ser se contrapõe a desejos recalcados que indicam uma outra verdade íntima. Pode-se até dizer que há origens barrocas nesta posição. Mas a Igreja Católica mesma não lida com as contradições e paradoxos da aventura humana apenas como indeléveis. Ela toma uma atitude judicativa diante delas, condena alguns polos e afirma outros: a santa não deve ser puta, o homem só deve desejar mulheres, o adulto não deve erotizar a criança, só devemos amar e não odiar o próximo. Nestes preceitos aceita-se a potência de se fazer o contrário - mas ele é mau, é vil, é sujo e nos levará para longe de Deus e, por isso, deve ser eliminado. Mesmo que o catolicismo esteja marcado de cabo a rabo pelas contradições que atravessam a existência humana, pela divisão psíquica, ele, ainda assim, é um projeto de superar esta divisão através da mortificação da carne (FOUCAULT, 2018).
O psicanalista não julga as contradições psíquicas do sujeito em análise, muito menos trabalha para resolvê-las. Ele não pode afirmar o que é bom ou mau. Ele aceita a morte de Deus - e, por isso, não encontra referencial judicativo seguro que não o próprio sujeito que fala de si. Por isso ele pode convidar tal sujeito a procurar que desejos contraditórios habitam suas entranhas e suas estranhas produções, não para apagá-los através da mortificação da carne, mas para sustentá-los como a expressão mesma da singularidade daquele que passa, assim, a se responsabilizar pelo que diz e faz. A Igreja e o catolicismo encontram mais dificuldades nisso, como se pode ver na lida com os padres pedófilos e, retornando às minhas impressões a respeito do Mosteiro de São Bento, com as contradições presentes numa instituição que se quer conservadora ou reacionária em costumes, mas se apresenta como preparadora para a competição capitalista ultramoderna; que se quer guardiã de uma tradição contrarreformista e persuasiva, mas que abraçou o turismo de consumo; que se quer guardiã de uma ortodoxia, mas o que apresenta no culto é uma verdadeira colcha de retalhos de estéticas e estilos que vão do século VII ao século XX. Esta figura onírica, fantasística, que é a missa de domingo naquele mosteiro, realiza que desejos contraditórios?
At last but not the least, ironicamente, o tema do sermão da missa do domingo em que lá estive foi a resposta de Jesus Cristo a São Tomé: "Bem-aventurados serão aqueles que não precisam ver para crer"...ora, isso é dito numa missa que é um grande espetáculo, não somente para a visão mas para a audição e o olfato? É preciso falarmos justamente no mecanismo psicanalítico da denegação: afirma-se e nega-se algo ao mesmo tempo. E não seria este mesmo mecanismo que se pode distinguir nas contradições acima mencionadas?
![]() |
A incredulidade de São Tomé (Michelangelo CARAVAGGIO, 1601-02) |
Este mecanismo da denegação é uma característica difícil de se lidar e que requer elaboração coletiva, não só daquele mosteiro (que, como lembrei no início deste texto, mais parece uma fortaleza militar - e, talvez, por isso, seja tão defensivo quanto à crítica e à autocrítica), mas também de nossa cidade, atravessada de norte a sul, do centro ao oeste, pela denegação como prática. Denegação do racismo, denegação da poluição, denegação do machismo, denegação do flerte das práticas religiosas e piedosas cristãs com a formação de castas de elite capitalista e individualista etc.
Comentários
Postar um comentário