Psicanálise e realismo
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Em muitos de seus trabalhos, o psicanalista Joel Birman buscou articular modernismo, modernidade e psicanálise (BIRMAN, 1997, 2000, 2006, 2012 e 2022). Me interessa, hoje, destacar a diferença que ele sinalizou entre os termos modernidade e modernismo. Grosso modo, a primeira diria respeito ao tipo de ordem cultural erigida no ocidente a partir dos seguintes fatores: a) desenvolvimento do capitalismo, b) desenvolvimento da ciência moderna, c) o Iluminismo e d) as revoluções setecentistas (a americana e a francesa). O modernismo, por sua vez, diria respeito ao desenvolvimento da crítica à própria modernidade, que já tem início no romantismo alemão; contudo é importante destacar que a crítica modernista não é uma crítica reacionária, uma rejeição da modernidade, uma vontade de recuo no tempo como algumas figuras do romantismo pareciam ser (GUSDORF, 1981); ao contrário, o modernismo tem funcionado como uma crítica às armadilhas que a modernidade se coloca.
Explico melhor a última frase da seguinte maneira: consideremos a seguinte definição de modernidade - ela é um movimento para o futuro, uma aposta de que o humano é capaz de transformar o mundo em nome de uma vida melhor e, para isso, ele deveria, antes, dominar este mundo através do saber e da técnica. Ora, o modernismo seria um movimento contíguo à própria modernidade, não exterior a ela, mas um acompanhante de seu percurso, revelador dos efeitos de vida pior que ela pode produzir, ao contrário de seu objetivo (uma espécie de Sancho Pança acompanhando a louca modernidade errante). Mas eu acrescentaria ainda que o modernismo é, no fundo, a utilização dos instrumentos modernos do saber, da técnica e da razão como ferramentas críticas seja da permanência das forças pré-modernas que a modernidade perpetua, apesar de tudo, seja do mal-estar que a modernidade instaura com sua pressão pelo desenraizamento, pela novidade, pela falta de parâmetros que não seu próprio empuxo.
Dom Quixote (Honoré DAUMIER, 1867) |
Nesta perspectiva, a psicanálise deveria ser situada no movimento modernizador ou no movimento modernista? Creio, a partir da leitura de Birman, que um pouco nos dois. E este é um dos motivos dos conflitos internos tão comuns ao campo psicanalítico. Sempre que a psicanálise se apresenta mais como uma psicoterapia curativa de psicopatologias ou desajustes, sempre que tem em vista uma finalidade adaptacionista, sempre que se julga a ciência iluminadora do inconsciente, sempre que se julga a detentora de uma verdade inquestionável (para a qual qualquer desacordo passa a ser tomado como resistência), ela se mostra como uma prática e um saber modernos alinhados à modernização. Na obra de Freud há, sim, certos textos que parecem ter este acento moderno, como, por exemplo, "Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna" (FREUD, 1908), "O interesse científico da psicanálise" (id., 1913) ou O futuro de uma ilusão (id., 1927).
Por outro lado, a descoberta do inconsciente, o conceito de pulsão de morte, a visada do eu como o foco principal da resistência à análise, a tomada da experiência analítica não tanto como uma adequação, mas como a revelação do inconsciente e a transformação de si, passando a não mais tomar a cura como meta sinalizam que a originalidade da psicanálise se conjuga melhor com o modernismo. Textos como O eu e o isso (id, 1923), Mal-estar na civilização (id., 1930) e "Análise terminável e interminável" (id., 1937) são bons exemplos da psicanálise modernista e, como pretendo mostrar mais à frente, bastante influenciadas pelo estilo realista.
Se esta divisão aparece em Freud - mesmo que seja justamente o aspecto modernista aquilo que torna a psicanálise uma invenção original -, é mais fácil entender como dela puderam surgir percursos tão diferentes como a psicologia analítica de Jung, a ortopedia da ego-psychology, a teoria e a prática de Melanie Klein ou o retorno a Freud com acentos trágicos de Jacques Lacan.
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A Catedral de Chartres (Jean-Baptiste Camille COROT, 1830) |
Escrevi, no meu livro Psicanálise, criatividade e depressão: um estudo sobre as subjetividades na cultura neoliberal (CATTAPAN, 2021), algumas coisas a respeito do modernismo também. Ali, na esteira de Walter Benjamin (1927-40) e de Baldine Saint Girons (2005), além de não identificar modernismo a modernidade, diferenciei modernismo de romantismo também. O romantismo ainda seria ambivalente em sua relação com o pré-moderno, nele ainda se encontram aqui e acolá gestos, movimentos, anseios de transcendência, de retorno à sociedade estática pré-moderna, vertical, regida pelo Soberano - em última instância, por Deus. É verdade que no romantismo havia pensadores e criadores que já se pode chamar de modernistas, como Goya, a quem dediquei um texto recente neste mesmo blog, mas como havia de tudo no romantismo, talvez seja melhor reconhecer nele ainda um niilismo decadente e não uma afirmação desta vida terrena, subscrevendo Nietzsche contra Wagner (NIETZSCHE, 1889). O modernismo, tal como se pode ver na trajetória da própria obra de Nietzsche (sendo ele mesmo um modernista), seria uma radicalização do romantismo, deixando de lado qualquer saudosismo e, com isso, se livrando do próprio romantismo.
Como o título de meu livro indica, a ênfase de minha discussão é em torno do tema da criatividade. No modernismo, nem Deus, nem a razão, nem o Belo, nem o Absoluto são o sonho de felicidade que excitariam, limitariam e direcionariam a criatividade humana. Basta nos debruçarmos sobre o primeiro movimento artístico-existencial evidentemente modernista; o primeiro cronologicamente após e concomitante ao romantismo: o realismo. Leiamos Gustave Flaubert (por exemplo, Madame Bovary [FLAUBERT, 1856]), Fiodor Dostoievski (p.e., Um jogador [DOSTOIEVSKI, 1867]), Eça de Queiroz (p.e., Os Maias [EÇA DE QUEIROZ, 1888]) ou os brasileiros Machado de Assis (p.e. Dom Casmurro [MACHADO DE ASSIS, 1899]) e Lima Barreto (p.e. O triste fim de Policarpo Quaresma [LIMA BARRETO, 1911]). Não há nessas obras nenhuma idealização da meta a se atingir - o cinismo impera, a crítica ao sonho moderno está em toda parte, um certo desânimo com os grandes sonhos capitalistas, progressistas ou cientificistas paira no ar. A tragédia humana não é mais causada por forças cósmicas, mas por conta da mesquinharia da vida cotidiana. Somos humanos, demasiado humanos e temos de lidar com isso.
Nesse sentido, para que escrever, então? Parece que, ao menos para esses autores, para denunciar tal situação, para nos ajudar a refletir sobre ela. Para mapearmos esta 'realidade' e para podermos sonhar, nos alegrar e desejar com o que é possível de se realizar nesta realidade. Um bom exemplo disso está na estética de Charles Baudelaire; seu interesse pelo detalhe, pelo passageiro, pela moda, pelo inessencial, seria - talvez - uma tentativa de encontrar valor estético e existencial no que a modernidade oferece de original: a experiência do novo (BAUDELAIRE, 1857). O novo que causa mal-estar pelo desenraizamento pode ser positivado, não de modo ingênuo como fazem os compradores de carros novos achando que compram a felicidade ou a falicidade; mas sim como experiência de abertura, de frescor, de movimento que não chegará numa satisfação, mas cuja fruição está no próprio movimento. É nesse sentido, aliás, que Walter Benjamin (op. cit.), na esteira de Baudelaire, se interessa pelo fenômeno moderno da moda: não com a futilidade da busca de frisson com novos gadgets, mas com a inquietude desconcertante de não encontrar ancoragem em nada.
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Os quebradores de pedras (Gustave COURBET, 1849) |
Ora, quando Freud, nas conferências "O caminho da formação dos sintomas" (1916) e "Terapia analítica" (id.) esclarece que o objetivo de uma psicanálise é fazer o princípio de realidade se colocar como viável diante das pressões do princípio do prazer, não se trataria disso também? Afinal, não há verdadeiramente uma oposição entre os dois princípios - o princípio de realidade apenas condiciona a experiência do prazer à fruição de um objeto que se encontre na realidade externa, ou melhor, que não seja única e exclusivamente um objeto mental - e para atender a esta condição não se trata de se adaptar subservientemente à realidade, mas, ao contrário, de transformá-la, como faz um artista. A arte é a referência de Freud para se pensar a preponderância do princípio de realidade. Isso deveria servir de aviso aos psicanalistas adaptacionistas...
Na última palavra sobre este assunto, Freud repete o argumento por outras vias. Em "Análise terminável e interminável" (1937), escreve que o que se espera de uma análise é que o sujeito possa se transformar de acordo com o que ele encontra de novo na realidade (o que inclui se transformar ao transformar a realidade) ao invés de repetir defesas infantis e obsoletas. Nada de saudosismo melancólico, nada de negação da realidade, mas sim de buscar os prazeres possíveis tendo em vista quem se é, o que pode fazer e que realidade se encontra à sua frente.
O realismo não foi somente uma corrente literária que, creio, teve efeitos sobre Freud (vide seu apreço pela obra de Mark Twain e seu artigo sobre Dostoievski [id., 1928]), mas houve também pintores realistas. Camille Corot começou romântico, mas quando ele pintou a Catedral de Chartres meio escondida atrás de um terreiro de obras e uma colina, já era realista e, assim, modernista (COROT, 1830). Gustave Courbet e Édouard Manet, que inspiraram o surgimento do movimento impressionista, foram realistas: onde está o Belo em suas obras? Onde está o Sublime? Nenhum dos dois se encontram nelas - o que há por lá é a fruição com partículas efêmeras da existência. O impressionismo apenas tornou isso ainda mais evidente, por um lado, e, por outro, deixou de ser somente realista ao novamente flertar seja com uma nova idealização embelezadora da modernidade (como em algumas obras de Renoir, p.e.) ou com uma busca pelo sublime da impressão (como em algumas telas de Monet, p.e.).
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O almoço na relva (Édouard MANET, 1862-63) |
O pintor e chargista Honoré Daumier é um bom caso de artista realista que nos ajuda a desfazer a confusão entre ser realista e ser objetivo, fidedigno a uma suposta neutralidade, ou seja, adaptacionista. Suas obras são caricaturais! Em que seriam, então, realistas? A resposta é: exatamente no movimento iconoclasta de quebrar ideais como o Belo, o Sublime, o Progresso, a Justiça etc. O movimento realista do século XIX quer bem mais dizer 'crítica que denuncia o mal-estar produzido pelas idealizações' do que 'objetividade absoluta'. Ao contrário, a objetividade absoluta é também criticada pelos realistas, como se pode ler em duas obras magistrais de Machado de Assis: Memórias póstumas de Brás Cubas (MACHADO DE ASSIS, 1881) e O alienista (id., 1882). Não deveríamos incluir aí um outro crítico da objetividade absoluta? Seu nome é Sigmund Freud. Basta lembrar que inconsciente, transferência e resistência são conceitos clínicos que impossibilitam qualquer um em crer ainda na tal objetividade quando pratica a psicanálise.
O realismo põe, como toda a continuidade do modernismo continuará a fazer, em primeiro plano, a percepção de que a realidade supõe um estilo próprio do sujeito; a realidade evidencia menos uma objetividade que a singularidade de um ponto de vista não esmagado por ideias totalizantes. É nesse sentido que temos de compreender a escolha de Corot por pintar a Catedral de Chartres encoberta. É nesse sentido que devemos ler o deleite de Brás Cubas com seus devaneios. É nesse sentido que devemos concordar com Joel Birman quando ele discute a prática psicanalítica inventada por Freud como uma estilística da existência, como a prática de construção de um estilo próprio (BIRMAN, 1996).
O modernismo é um efeito e uma resposta à modernidade. O esforço dos autores modernistas poderia muito bem ser compreendido como uma resposta ao mal-estar da existência moderna, resposta que se deu ao se inventar estilos próprios de habitar esta realidade e, ao mesmo tempo, de transformar esta realidade para ela se tornar habitável. Os movimentos de vanguarda e suas táticas de choque, de ataque ao stablishment são exatamente isso. O realismo foi já assim - um esforço de habitar e transformar este mundo com um estilo próprio e nele já estão presentes as táticas de choque; esse gesto subversivo (também presente na psicanálise, aliás) já está na obra de Édouard Manet. Sabemos como suas telas O almoço na relva (MANET, 1862-63) e Olympia (id., 1863) foram afrontas às convenções estéticas de seu tempo e que o efeito de escândalo que provocaram foi bem sucedido: transformou a sensibilidade estética, o mundo habitado pelo artista, de modo que hoje não conseguimos entender o que há de tão chocante em ver mulheres nuas não idealizadas, em lugares não idealizados, mas sim mulheres nuas que se pode encontrar por aí em lugares não mitológicos, nem utópicos, mas cotidianos.
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Machado de Assis |
E quanto às afrontas, à provocação subversiva, ora, não haveria algo desta ordem em muitas intervenções psicanalíticas? O psicanalista não tem, em parte, o papel de desmontar as defesas do sujeito e ocasionar, com isso, a possibilidade do eu poder acolher fantasias, pensamentos, lembranças e afetos que antes não aceitava como parte de sua realidade psíquica?
Aliás, é nesse sentido que se pode dizer que as obras intelectuais de Marx e Engels eram também, em parte, ramos do movimento realista - a tática do choque também está lá, o gesto subversivo querendo desmontar ideais que encobrem o mal-estar do homem moderno também, mas, talvez alguns (certamente Freud [FREUD, 1930]) diriam que a solução comunista aos conflitos humanos é uma utopia que se ergue como novo ideal que obscurece, em parte, a crítica e a condição fundamental de incompletude do humano.
É nesse contexto que o genial pintor Paul Cézanne, que partiu do realismo, passou pelo impressionismo e criou os alicerces do cubismo, escreveu:
"É possível fazer coisas boas sem ser muito harmonista ou colorista. Basta ter senso de arte - e esse senso é, sem dúvida, o horror do burguês. Portanto, os institutos, as bolsas e as honras só podem ser feitos para os cretinos, os farsantes e os patifes. Não seja crítico de arte, faça pintura. Essa é a salvação" (CÉZANNE, 1904, p. 248-249).
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A casa do enforcado (Paul CÉZANNE, 1873) |
A salvação a que Cézanne se refere não mais tem o sentido de transcendência, de solução idealizada, mas sim de sobrevivência e forma de existência nesse mundo terreno. Nada de grandioso, mas sim algo de visceral, algo em que o sujeito se sinta pertencente. Em um mundo marcado pelo desenraizamento moderno, a construção de um estilo próprio é um modo de construir um mapa, é um modo de tornar possível ser sujeito apesar da pressão constante pelo novo.
Mais acima mencionei o tema da realidade psíquica. Retomando este assunto, pode-se dizer que Freud se aproximou do realismo exatamente ao considerar que cabe ao psicanalista jamais desconsiderar a realidade psíquica, ou seja, o campo fantasístico de seu paciente. A "Carta 69" a Fliess (FREUD, 1897) marca o momento em que Freud deixa de acreditar na sua teoria anterior das neuroses, na qual estava suposto que o que o paciente conta e lembra é uma tentativa e, muitas vezes com sucesso, de reproduzir verbalmente uma experiência factual. Ao chamar o campo das fantasias de realidade psíquica, Freud opera na esteira do realismo, para o qual não há jamais um ponto de fora da história a partir do qual se pode dizer objetivamente o que é a realidade. Desiste-se disso.
Esta posição de Freud continuará a mesma até o fim, é importante dizer. Em "Construções em análise" (id., 19437), texto tardio, Freud não falará mais numa diferença entre uma realidade factual e uma realidade psíquica, mas diferenciará uma verdade material de uma verdade histórica numa linha argumentativa semelhante. A verdade com que lida o psicanalista não é a verdade material, imposta pelos fatos da realidade, mas sim a verdade histórica, da construção que o sujeito faz de sua história e que enreda sua realidade psíquica.
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Camponês cavando (Vincent VAN GOGH, 1887) |
Não devemos acreditar, por isso mesmo, que o movimento estético contemporâneo a Freud chamado de expressionismo seja uma ruptura com o realismo. Ao contrário, é um movimento análogo ao de Freud: é a consideração de que é a partir do sujeito, de seus afetos, de suas fantasias e de sua história, é que se constrói a realidade. Para quem tem dúvidas quanto a isso, sugiro acompanhar as trajetórias dos dois pais do expressionismo - Vincent van Gogh e Paul Gauguin -, e nelas se perceberá como realismo e expressão não são posições contrárias, mas uma intensificadora da outra.
Nesse sentido de realismo que eu trouxe aqui hoje, ser realista é apostar no desejo - como se quis em maio de 1968...mas isso abriria outras discussões que não cabem neste breve ensaio.
Até imprimi esse texto!
ResponderExcluirVP
🙂
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