Escrever para não morrer e escrever para morrer

 SE VOCÊ QUISER LER ESTE TEXTO EM SEU IDIOMA, PROCURE A OPÇÃO "TRADUTOR" (TRANSLATOR) NO CANTO SUPERIOR ESQUERDO DA TELA -

Faz já 60 anos que Michel Foucault publicou seu artigo "A linguagem ao infinito", que hoje pode ser encontrado na compilação Ditos & Escritos, no volume III: Estética: literatura e pintura, música e cinema (2001). Ali, o filósofo apresenta uma teoria da literatura moderna em contraposição aos textos de antes do século XVIII. Em homenagem aos 60 anos deste importante texto, pretendo recapitulá-lo e pô-lo em discussão com o pensamento psicanalítico sobre a escrita e com dois textos literários do século XX, um não citado por Foucault, o outro posterior ao artigo.

O artigo em questão tem como ponto de partida  a ideia levantada por Maurice Blanchot de que escrevemos para não morrer - e Foucault acrescenta: também falamos para não morrer.

"O discurso, como se sabe, tem o poder de deter a flecha já lançada em um recuo do tempo que é seu espaço próprio" (FOUCAULT, 1963/2001, p. 47)
O Código de Hamurabi (1792 a.C.-1750 a. C.)
, Museu do Louvre, Paris

A repetição, a reiteração, o comentário contínuo a respeito de textos dos mestres antigos é um modo de fazê-los continuar a viver. Foi isso que se fez durante toda a Antiguidade e a Idade Média; foi isso o que transformou Platão, Aristóteles ou Santo Agostinho em 'clássicos eternos'. Os códigos de leis (que, como o de Hamurabi, eram a 'Palavra' do soberano sendo eternizada), os monumentos comemorativos de vitórias em batalhas dos reis, de bodas de rainhas e, mais costumeiramente, os fúnebres de figuras da elite são grande parte do que nos restou como 'texto' das culturas mortas da Antiguidade e medievais. Os textos antigos e medievais eram modos de fazer com que alguns humanos, considerados merecedores, continuassem a viver mesmo após suas mortes físicas. Que não fossem esquecidos, diferentemente dos outros, que, ao morrer, seriam sepultados na memória também. 

Porém, se a linguagem sempre teve este poder e esta função de deter ou ao menos postergar o ato final ou o silêncio que já é a morte, Foucault percebe no final do século XVIII, com o advento da modernidade, uma mudança que dá origem ao que nós hoje chamamos de literatura. Desde aquele tempo, não se escreve somente para fazer os grandes viverem, mas também para os pequenos e para os medíocres. Com a derrubada revolucionária dos soberanos, com a crítica iluminista à autoridade da tradição, com o empuxo moderno para um futuro aberto e não determinado por Deus, mas pelo homem, surge todo uma produção de textos que não mais se ocupam de fazer o eterno se manter eterno, que não visam mais repetir e reiterar o passado, que não visam mais edificar o soberano.

 A literatura moderna é caracterizada menos como produção de textos feitos para seu objeto existir do que um esforço para fazer o autor existir. E não só ele; na medida em que joga - como mostra Foucault no artigo - com uma 'sala de espelhos', ou seja, com toda uma possibilidade de referências identificatórias, ela faz o leitor também viver mais - seja outras vidas ou, talvez, seja sua vida se infiltrando em outros espaços, tempos e corpos. Mas Foucault vai além: a literatura moderna passa a fazer um esforço para o discurso continuar a existir, num mundo em que não há mais monumento a ser erguido, mantido e preservado reiteradamente através do próprio discurso. O texto e a palavra ficam soltos, à deriva, abertos ao futuro. O discurso fica sem sentido claro.

Retrato de Friedrich Hölderlin (Franz Karl HIEMER, 1792)

É nesse contexto que Foucault vê nascerem as obras de Hölderlin, do Marquês de Sade, dos romances de terror e, mais tarde, de Kafka ou Borges. Estas são obras citadas no artigo, mas, a rigor, Foucault se refere a toda a literatura moderna. É que tais obras citadas deixam mais explícitas as experiências modernas de desamparo, de angústia por continuar vivo ou existir, de jogo de identificações e de dobra da linguagem sobre si mesma.

De certo modo, pode-se extrair algo semelhante da obra de Sigmund Freud. Ao postular um conflito de base em todo aparelho psíquico, a saber, aquele entre as pulsões de vida (ou Eros) e as pulsões de morte (ou Tanatos), Freud parece querer dizer algo semelhante (FREUD, 1920). As pulsões de vida seriam a força que une coisas, que faz com que depositemos afetos em memórias, fixando-nos naquelas imagens. Ao ligar representações mentais, ao associar memórias, as pulsões de vida têm por efeito um encadeamento de ideias que nós podemos chamar de narrativa. As pulsões de morte, ao contrário, trabalhariam por desfazer vínculos, desconectar associações, pressionando para que a libido fixada nas representações as deixe e rume para uma descarga que, em última instância - se considerada como a descarga de toda a excitação psíquica -, só ocorre como morte. 

Enfim, nós buscaríamos, para não morrer ou emudecer - para não descarregar toda a excitação psíquica - nos vincular a narrativas que são, ao mesmo tempo, sustentadas e o sustentáculo de nosso erotismo. Aliás, foi Freud mesmo quem sinalizou que a pulsão de morte é difícil de ser detectada pois seria silenciosa em seu trabalho, enquanto as pulsões de vida são 'tagarelas'. De um lado o silêncio e a morte, de outro o discurso.

Sermão no parque dos veados, representando o primeiro sermão do Buda após ter atingido o Nirvana, pintura encontrada no Wat Chedi Lam, Tailândia 

É por isso que em 1924 Freud esclarecerá que o princípio que rege as pulsões de morte é o Princípio do Nirvana, ou seja, a busca por descarregar toda a energia psíquica. Já o Princípio do Prazer, a busca por evitar o desprazer e acessar o prazer, teria como condição a ligação da pulsão a objetos ou representações psíquicas de objetos, pois só encontraríamos prazer através do investimento. Se é verdade que alguma descarga de excitação geralmente ocorre quando sentimos prazer, é possível conceber, com a teoria da pulsão de morte, uma satisfação da pulsão que não necessariamente seja prazerosa - ela é pura descarga além do princípio do prazer, como se percebe na compulsão à repetição  de experiências desagradáveis. 

É a essa satisfação da pulsão que ultrapassa a experiência do prazer que Jacques Lacan vai chamar de gozo (LACAN, 1959-60). Interessa apresentar aqui a contribuição de Lacan pois ao menos desde seu O seminário livro 18: de um discurso que não fosse semblante (LACAN, 1970-71), Lacan insistirá no argumento de que o escrito já é gozo. Essa intervenção de Lacan embaralha o que parecia estar bem separado seja no artigo de Foucault, seja em Freud: de um lado há a morte, o silêncio, a inexistência, o fim do erotismo; de outro há a vida, a linguagem, a existência, a fixação libidinal e o campo das identificações. Mas o gozo, ou seja, a satisfação da pulsão além do princípio do prazer, que deveria estar ligado ao silêncio e à morte, é relacionado pelo psicanalista francês ao escrito.

Antes de seguir com Lacan, eu gostaria de evocar duas obras literárias que talvez nos ajudem a entender essa aproximação que aparece entre o escrito e o gozo. A primeira delas é anterior a 1963 e talvez Foucault o tenha lido, mas não encontramos nenhuma referência a ele em "A linguagem ao infinito". Me refiro a Malone morre, de Samuel Beckett, que data de 1951. 

Samuel Beckett 

Trata-se de uma obra que dificilmente ainda dá para ser chamada de romance. É um texto limite entre o romance, a poesia e um desmantelamento do próprio texto. O literato irlandês foi secretário de seu conterrâneo James Joyce e, assim, herda, de certo modo, seu trabalho de desmontagem do texto, mas de um modo bem diferente. Enquanto Finnegans Wake (JOYCE, 1939) beira o ilegível, o desconexo, o desmonte, por se aproximar de uma psicose literária, a referência-limite de Beckett não é a loucura, mas a morte mesmo. Malone Morre é a experiência literária de um personagem que está à beira da morte, sabe que está morrendo, se sente morrendo, quase-amnésico, quase imobilizado numa cama, em estado confusional. Malone se coloca no trabalho de escrever até morrer; ele tem um caderninho e um 'cotoco' de lápis que lhe possibilitam este último ato até o fim.

Aparentemente Malone está lutando contra a morte, está desafiando a morte, seu ato é de resistência e existência e, assim, estaria conforme aos argumentos de Foucault e Freud. Porém, Beckett produziu algo além disso: Malone a todo tempo interrompe seu texto, se perde, inicia histórias e as larga, demole narrativas, esquece e, fundamentalmente (para meu argumento), impõe a experiência corporal do moribundo como primeiro plano da narrativa: a morte vai sendo sentida em cada parte do corpo, a propriocepção se torna um fenômeno central. Mas não se trata de uma propriocepção narcísica, último esforço de Eros na superfície do corpo - ao contrário, parece que o esforço de Beckett (e de Malone) é o de escrever a morte; inevitável não ter a sensação, ao atravessar esse difícil livro, de que Malone goza com essa experiência de escrita-morte (e talvez também Beckett [e talvez também eu, como leitor]).

A outra obra literária é um conto do escritor estadunidense Paul Auster, Cidade de vidro, que se encontra no livro Trilogia de Nova York (1985). Em estilo muito diferente do de Beckett, Auster parece se aproximar mais de um autor citado por Foucault: Jorge Luís Borges. Tal como na obra do escritor argentino (por exemplo, em Ficções [BORGES, 1944] ou em O Aleph [id., 1949]), também encontramos os seguintes elementos no texto de Auster: referências à própria literatura (no caso encontramos referências explícitas a romances policiais, a Cervantes, à Bíblia, a Kafka etc.); histórias dentro de histórias; problematizações das figuras do autor, do narrador, do protagonista e da realidade literária; e o tema dos fragmentos de textos que geram textos sobre tais fragmentos. Mas o que nos interessa a respeito deste conto de Auster é o que sinalizarei no parágrafo seguinte.

Paul Auster

A história trata de um escritor de romances policiais num momento de falta de criatividade que é confundido com um detetive particular e, por não ter mais nada a fazer, decide viver o personagem. Sua tarefa é vigiar um certo sujeito para proteger o contratante de ser atacado por aquele, coisa que ele faz muito bem até um momento em que perde seu alvo de vista. Decide, portanto, vigiar a residência de seu contratante, pois se o sujeito-alvo aparecesse, ele o encontraria novamente. Passa-se muito tempo e o protagonista, numa eterna tocaia, larga tudo que tem e se torna um mendigo vigilante, que nunca sai de seu lugar, sempre esperando aparecer alguém que nunca vem (Haveria aí uma referência disfarçada a Beckett, a Esperando Godot? [BECKETT, 1952]). Enfim, ele acaba descobrindo que o sujeito-alvo já estava morto há meses, havia se jogado da Ponte do Brooklyn e, assim, o caso deveria estar encerrado. Mas a reação do protagonista é muito interessante: decide, finalmente, entrar na residência de seu contratante que, aparentemente, já há muito tempo, está vazia de coisas e pessoas; se aloja ali, como mendigo moribundo e, com um caderninho e uma caneta, decide escrever, escrever e escrever - não sobre a história que aconteceu, mas sobre aquele momento mesmo em que estava. Bem no estilo de Borges, a narrativa se interrompe com o narrador do texto esclarecendo que aquelas são as últimas informações que ele tem a respeito do protagonista, que sumiu. A referência a Malone morre não parece tão disfarçada assim...

De novo, o texto de Paul Auster pode ser lido como a batalha de um homem por existir, nos moldes das hipóteses de Freud e Foucault. Primeiro ele era escritor, quando não tem o que dizer, aceita ser um personagem de outra narrativa e quando aquela narrativa termina, ele morre. Mas a referência a Malone morre não parece ser casual. Auster diz algo além. Seu protagonista, com seu caderninho e sua caneta, antes já anotava assuntos para um futuro livro, depois relatórios do caso e, ao final, escreve sobre si mesmo. As três escritas não formam, no entanto, a unidade de uma narrativa de si, mas, ao contrário, à la Borges, um espelho estilhaçado de partes de vidas. Ao final do texto é possível reinterpretar todo o percurso do protagonista como o de alguém que goza com a escrita, não importa de quê; nem a morte é ponto a ser evitado; ele escreve também a morte - até sumir. Ele não para de escrever. Enquanto a obra de Borges é atravessada pela vontade de acumular saber (bibliotecas, enciclopédias, memória, arqueologia, esforço de precisão no relato etc), a de Auster sublinha menos um acúmulo de saber do que uma compulsão por escrever, seja lá o que for.

No primeiro exemplo, o de Beckett,  a morte como figura extrema do gozo sendo escrita. No segundo caso, o de Auster, o ato de escrever não mais como experiência de tecer laços e significações, não mais movido pelo erotismo, mas sim pela compulsão à repetição mesma da escrita.

Escrita cuneiforme suméria, um bom exemplo da escrita como marca, traço, letra na terra

Lacan aproxima escrita e gozo, eu dizia acima. Em certa medida, o texto escrito é a morte da palavra viva, que circula e se ressignifica. Em certo sentido, o escrito é a marcação (a ferro, fogo, registro e memória) do Outro, é expressão do gozo do Outro que nos assujeita. Em certa medida, o escrito é o ponto limite entre o campo simbólico e o real: a letra, o traço, a marca, o urro são o mínimo simbólico extraído do real do corpo, da terra. Tudo isso pode ser cavado em "Lituraterra" (LACAN, 1971) - texto em que Lacan cita expressamente Beckett.

Mas, com a ajuda de Auster e Beckett, poderíamos ainda dizer que a escrita é gozo também porque, no limite, ela pode ousar escrever a morte e que ela pode ser um ato compulsivo que busca menos registrar do que não parar de se repetir até exaurir.

Não só se pode dizer que escrevemos para não morrer, mas também que, muitas vezes,  a escrita é letra morta.

Comentários

  1. Bem interessante a homenagem ao texto do Foucault, assim como as referências literárias feitas. Dois ‘limites’ da escrita, por assim dizer, ou dois momentos em que ela se coloca na linha vermelha. Ambos até levam a interrogar a noção mesma de letra morta, talvez vida breve, enquanto nela algo pulsou. A saber.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Trompe l'oeil na formação de psicanalistas

Psicanálise, velhice e solidão (e uma crítica a Pasternak)

Um ato falho histórico ou O Inconsciente nas franjas do marketing