Aquele abraço ao Pão de Açúcar
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Estava marcado para hoje às 13 horas, na praça General Tibúrcio, na Praia Vermelha, Urca, Rio de Janeiro, um "Abraço ao Pão de Açúcar - pela conservação do patrimônio", organizado pelo Movimento Pão de Açúcar sem tirolesa. Provavelmente quando muitos tiverem lido este texto o evento já terá ocorrido. Quero comentar a importância do evento e ir um pouco além, hoje.
Sei que tenho leitores que não são do Rio de Janeiro e, provavelmente, alguns que jamais vieram ao Rio. Pouco importa! Todo mundo sabe que o morro do Pão de Açúcar com seu bondinho, bem como o morro do Corcovado com a estátua do Cristo Redentor, são símbolos da cidade tão fortes quanto são a torre Eiffel para Paris, a Estátua da Liberdade e o edifício Empire State para Nova York, a Ópera de Sydney para a cidade australiana ou as pirâmides da necrópole de Gizé para o Cairo.
Todos esses símbolos surgem na paisagem das respectivas cidades como pontos de referência, como uma espécie de confirmação e realização de que se está naquele lugar. E, nessa medida, são explorados por todas as cidades a que me referi (tanto quanto muitas outras e seus pontos de referência, como, p.e., Roma com o Coliseu e a Basílica de São Pedro) como atrações turísticas. Quero discutir um ponto de tensão entre turismo e cultura que se apresenta na intenção de se construir uma tirolesa e sabe-se lá o que mais no Pão de Açúcar, provavelmente, acreditando-se que se tornará uma atividade turística mais atrativa porque se tornou mais divertida.
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No primeiro plano o morro do Corcovado com a Estátua do Cristo Redentor (Heitor da Silva COSTA, Paul LANDOWSKI e Gheorghe LEONIDA, 1920-31), e, no fundo, o Pão de Açúcar, Rio de Janeiro |
Se é verdade que todos estes símbolos a que me referi são atrações turísticas porque são pontos de referência, monumentos identificatórios, assinaturas das cidades mencionadas, é preciso compreendermos porque eles se tornaram tais símbolos - ou seja, porque a gente daquele lugar se identifica com aqueles pontos geográficos, bem como porque quem é de fora relaciona aquele ponto não só à cidade, mas também àquele povo.
Vejamos a Ópera de Sydney: ela realça a paisagem da Baía de Sydney, ponto de contato histórico da cidade e do país com o mundo. A colonização europeia, a chegada dos brancos à cidade, ocorreu em grande parte por ali. A empresa moderna inglesa adentrou o canto mais distante do mundo, fazendo com que o Império Britânico orgulhosamente e altivamente nunca visse o pôr do sol no esplendor do século vitoriano. Mas a Ópera já foi construída no século XX - ela faz parte de uma vontade australiana de trazer os olhares do mundo para aquele país distante da metrópole inglesa; de mostrar aos ingleses também que eles, australianos, não são somente aquilo que aparece nas piadas britânicas à respeito de seus descendentes da Oceania: um bando de broncos e jecas. Ora, matutos, broncos e jecas não vão à Ópera! Este edifício é um modo de mostrar para o mundo que a Austrália é mais sofisticada do que aquela caricatura que aparece no humor colonial e desdenhoso britânico. E mais: a Ópera de Sidney é um marco da arquitetura contemporânea, um edifício vanguardista e não uma imitação humilhada e empobrecida de alguma moda da metrópole já em desuso. A Ópera de Sydney é um símbolo da vontade australiana de reposicionar a Austrália no imaginário local e internacional.
As pirâmides de Gizé, no entorno do Cairo - as únicas remanescentes entre as 7 maravilhas do mundo antigo -, relembram aos próprios egípcios e ao mundo que a civilização do Egito Antigo ainda transmite ao povo local orgulho e sentimento de pertencimento. O Egito moderno é bastante diferente étnico, religiosa e culturalmente daquela civilização de até 8000 antes de Cristo. E, no entanto, o povo de hoje se identifica - parcialmente - àquele. Com isso, os egípcios fizeram três operações importantes que dão um lugar ímpar a seu povo. 1) Eles puderam se diferenciar diante dos vastos mundos árabe e muçulmano, marcando uma resistência ao pan-arabismo a não ser se o Egito ocupe um lugar de protagonismo (ROGAN, 2009), em parte por orgulho de sua história que sustenta uma relativa independência; 2) Os egípcios puderam se manter orgulhosos de sua nação mesmo sob o jugo dos imperialismos francês e britânico nos últimos dois séculos, afinal, eles percebiam que mesmo a metrópole admirava e respeitava a história milenar daquele povo; 3) O Egito conseguiu, mesmo nos momentos mais miseráveis da história africana, se manter como uma força de orgulho por serem africanos e lembrar ao mundo todo que não só a humanidade toda é originária daquele continente como ali prosperou uma das mais longas e poderosas civilizações. A manutenção das pirâmides é um símbolo do reconhecimento do povo egípcio de sua singularidade histórico-geográfica.
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A Ópera de Sydney (Jørn UTZON, 1959-73) |
A torre Eiffel foi construída na Paris sob a modernização autoritária do Barão de Haussman. Inicialmente seria um monumento temporário construído para a Feira Mundial de 1889, ou seja, para um evento de comércio capitalista e exibição dos avanços tecnológicos em prol da indústria e do mercado (e como sabemos, a torre era absolutamente inovadora em termos arquitetônicos e de engenharia - é toda construída em ferro). A Feira Mundial de 1889 ocorre em Paris também para celebrar os 100 anos da Revolução Francesa. Ora, a torre celebraria o orgulho francês e, por extensão, parisiense, por sua revolução burguesa, pelos feitos da engenharia e da indústria daquela metrópole e, talvez, por isso, a torre foi construída para atingir uma altura nunca antes alcançada por nenhum edifício - naquele momento, era o mais alto prédio do mundo (ARGAN, 1992). A torre Eiffel é um símbolo do orgulho francês e parisiense por sua civilização técnico-burguesa e vanguardista (BENJAMIN, 1927-40).
A Estátua da Liberdade (mesmo sendo ela um presente francês), em conjunto com o edifício Empire State, acentuam duas características que os estadunidenses - e os novaiorquinos em particular - gostam de exaltar a respeito de si mesmos. A estátua, impassível e heróica, localizada numa ilhota na entrada do porto de Nova York, se apresenta como a demarcação de um território, como se, ao passar por aquela estátua, estivéssemos entrando na terra protegida pela Liberdade vigilante, como se os E.U.A. fossem o país que mais respeita, valoriza e sustenta a liberdade humana. Já o Empire State sublinha que, dentre as diversas acepções do termo liberdade, a que se condensa nele é a da liberdade de mercado, afinal, o edifício foi construído para ser um centro empresarial e de escritórios das grandes empresas estadunidenses. Mas o termo liberdade é tensionado pelo próprio nome do prédio: ele evoca a vontade daquela nação em fazer um Império (fundamentalmente comercial): se, por um lado haveria uma liberdade de comércio, também estaria subentendido que os E.U.A. iriam prosperar através desta liberdade e fazer um império (o que implica em minorar a liberdade dos dominados) - o que de fato ocorreu. O edifício é de 1931, é do auge da Grande Depressão e, por isso, ele também significa o otimismo estadunidense de que, mesmo no momento mais crítico do capitalismo, os americanos dobrariam suas apostas na solução capitalista através de um grande empreendimento que se tornaria o local de outras grandes empresas. A solução para a crise do capitalismo seria mais capitalismo. A concorrência, a competição capitalista está presente até mesmo na construção do edifício: ela ocorria concomitantemente à construção do edifício Chrysler, a poucos quarteirões dele, cada uma prometendo terminar sua obra antes e, assim, apresentar à cidade o maior edifício do mundo. O Empire State foi concluído depois, mas se tornou o mais alto do mundo, superando o Chrysler e a torre Eiffel, simbolizando, assim, a apoteose de um novo império que se afirmava do outro lado do Atlântico (GOMBRICH, 1950).
Enfim, falemos do Pão de Açúcar e do Corcovado. O primeiro foi o ponto de referência fundamental para os invasores portugueses ocuparem a baía de Guanabara. Se estabeleceram aos pés do morro e foi a partir dali que negociaram ou fizeram guerras com os indígenas e com os franceses para se apossarem daquela baía - que parecia ser um rio, aliás (o que deu nome à cidade) e, portanto, um ponto estratégico. Além disso, com o passar dos séculos, a admiração e cultivo da beleza do relevo montanhoso e arborizado da cidade se tornou referência no que diz respeito a uma vontade de se relacionar com a natureza local de modo não predatório - mesmo que, ao mesmo tempo, de modo brutal e talvez hipócrita, os fluminenses e cariocas, poluam a baía de Guanabara, o ar da cidade e destruam imensas áreas verdes. A Floresta da Tijuca não é virgem; ela existe por uma vontade de reflorestar o que antes era área de lavoura; e o Pão de Açúcar e o Corcovado, diferentes dos outros símbolos urbanos mencionados, são marcados pela beleza natural preservada. Uma ambiguidade da história carioca está condensada no Pão de Açúcar: ao mesmo tempo preservado, admirado por sua natureza e ocupado por um bondinho e um mirante. Pode-se dizer a mesma coisa do Corcovado, sendo que neste morro, o mirante suporta uma estátua do Cristo Redentor que, claramente, atende ao projeto católico de se estabelecer como força que dominaria a cidade, de cima para baixo - porém, logo o carioca preferiu interpretar a estátua como uma representante de sua atitude (real ou idealizada) de alguém de braços abertos para quem é de fora, recuperando assim um simbolismo que já estava presente no Pão de Açúcar. Cada um à sua maneira sinaliza a entrada na cidade a partir da baía de Guanabara (os braços abertos do Cristo são em direção a ela), um pontuando que os braços cariocas estão abertos [em parte um culto à própria simpatia e acolhimento (para os outros brasileiros, já que a cidade que foi, por muito tempo, a capital), em parte uma subserviência colonial], outro lembrando que ali a entrada se deu pela força, pela invasão mas que, depois, se tornou um ponto estratégico de observação de quem entra e sai. Os dois monumentos, tomados como um par, simbolizam como o carioca tem uma relação ambivalente com sua cidade e com o visitante: braços abertos, mas vigilantes; preservação e ocupação.
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A pirâmide de Quéops (2580-60 a.C.), entre a pirâmide de Quéfren (2550 a.C.) e a de Miquerinos (2510 a.C.), arredores do Cairo |
Após apreciar o simbolismo destes lugares, é preciso dizer que não é torná-los turísticos o que preserva este simbolismo. Na verdade, há uma tensão clara entre o turismo e a cultura aqui. O governo Bolsonaro deflagrou este problema ao subsumir o Ministério da Cultura, mantendo a pasta como mera secretaria subordinada ao Ministério do Turismo, evidenciando que, entre cultura e turismo, sua balança pesava a favor do segundo. Mas esta tensão é mais antiga, mais duradoura e mais difusa que o governo que se acabou em 31 de dezembro de 2022. A intenção de construir uma tirolesa e transformar o Pão de Açúcar numa espécie de parque de diversões é um exemplo evidente disso.
O turismo se tornou há muito tempo um negócio capitalista. E como todo negócio capitalista, ele faz circular e circula em torno das mercadorias. É preciso produzir sempre novas mercadorias que funcionam como gadgets que excitariam o consumidor a buscá-los, indica Lacan ao pensar o discurso do capitalista (LACAN, 1971): o sonho vendido é que 'é preciso experimentar tal produto, tal sensação, para gozar de verdade, finalmente". Ao tornar diversas experiências mercadorias cambiáveis, como mostrava Marx (MARX, 1867), o capitalismo transforma aquilo sobre o que se deposita em figura abstrata, quantificável e substituível. O que Jurandir Freire Costa insiste em problematizar como o desenraizamento próprio de nossa cultura somática, é uma consequência disso (COSTA, 2004): um efeito do capitalismo, no qual pessoas e coisas se tornam quantificáveis e substituíveis. Ora, lugares também sofrem esse efeito quando o assunto é turismo.
Ao tornar cada símbolo cultural, marcado por uma história singular, uma experiência de turismo, o que se faz é equalizá-las em torno de um cômputo de custo e lucro, de quantuns de gozo. Visitar o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor virou uma espécie de programa o qual se experimenta como se estivéssemos dando um visto em itens de uma lista de objetos a se consumir. Se em um shopping center consome-se produtos diversos, se em um supermercado também, na indústria do turismo ocorre a mesmíssima coisa. Ao mesmo tempo, ocorre uma reconfiguração da experiência: o objeto, pessoa ou lugar, quando tornado mercadoria, deve ser prazeroso ou útil para o consumidor abstrato.
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A Torre Eiffel (Gustave EIFFEL, 1889), Paris |
O consumidor abstrato nada mais é do que uma estimativa de um perfil a partir da resposta das pessoas aos produtos. Quanto mais gente consome ou demonstra intenção de consumir um produto, mais este produto diria a respeito da figura do consumidor abstrato. Assim, a indústria capitalista nivela seus produtos a uma maioria consumidora. Como percebeu Freud, somos movidos pelo princípio do prazer e, como lembrei em minha última postagem, a direção do tratamento implica, para Freud, numa maior relevância do princípio de realidade (que inclui, dentre outras coisas, a postergação do prazer tendo em vista os obstáculos que a realidade impõe [FREUD, 1916]). A indústria também reconhece que somos movidos pelo princípio do prazer e, numa direção diferente do tratamento psicanalítico, ela oferece objetos e experiências adequadas ao prazer sem necessidade de esforço elaborativo ou postergação do momento. É por isso que a experiência histórico-cultural incomoda a indústria - nem sempre ela é prazerosa, às vezes traz lembranças desagradáveis, nos solicita à crítica, ou o prazer que oferece não é tão intenso quanto a vontade de gozo capitalista parece clamar.
Despossuindo pessoas, coisas e lugares de história, cultura e simbologia, pode-se fazer o que se quiser em nome do lucro. Foi assim que nasceu a figura do trabalhador assalariado e da mercadoria (MARX, 1867), e é assim que nascem os lugares de puro gozo consumista como os pontos turísticos cheios de diversão e ao mesmo tempo descontínuos em relação à história e simbologia extra-capitalizáveis, como as cidades-cassino, as cidades-parque de diversão, as cidades-resort, as cidades que vivem fundamentalmente do turismo. A tirolesa do Pão de Açúcar é mais um exemplo de como a indústria do turismo está sempre em tensão com uma experiência cultural e histórica muito mais complexa, mas que oferece possibilidades identificatórias que protegem as subjetividades do desenraizamento melancolizante do assim chamado 'capitalismo selvagem'. Com isso, creio que me fiz claro - estou junto do pessoal, hoje, abraçando o Pão de Açúcar.
Mandar Aquele abraço (GIL, 1969) para o Pão de Açúcar é, tal qual a canção, portanto, oportuno e ambíguo: pode ser uma despedida afetuosa ou pode ser um modo de proteger e acolher.
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A Estátua da Liberdade (Frédéric Auguste BARTHOLDI, 1886) e a cidade de Nova York ao fundo |
Excelente texto! Mostra conhecimento da história de tantos povos e a importância de seus maiores símbolos que representam suas culturas!
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