a propósito das joias
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O assunto de hoje são as joias. Ou talvez devêssemos escrever em espanhol - joyas -, pois evocam, ao mesmo tempo, o termo joy da língua inglesa? Pretendo discutir neste texto o joy embutido na joia/joya...ou deveríamos ainda dizer na joy 'a'?
Há duas semanas eu havia mencionado a teoria do amor que o psicanalista francês Jacques Lacan desenvolveu em seu O seminário livro 8: a transferência (LACAN, 1960-61). Comentei que naquela altura de seu ensino, Lacan tentou pensar o próprio amor como tela na relação do sujeito com o objeto. Este objeto de que fala Lacan não é, portanto, o objeto total da imagem da figura amada, mas, ao contrário, um objeto escondido e parcial que, desde dois anos antes, vinha sendo designado por objeto a.
Neste seminário, tendo em vista a escolha de sua abordagem do tema - se debruçar sobre um dos mais célebres textos sobre o amor da civilização ocidental, O banquete (PLATÃO, 385 a.C.-380 a.C.) e dali extrair reflexões que ainda sirvam para o século XX (e, para nós, para o século XXI também) -, o psicanalista destacou o termo agalma, do original grego como uma boa referência para se pensar o objeto a.
Retomo, no texto de hoje, a referência a agalma porque este termo diz respeito, dentre outras coisas, exatamente ao nosso assunto: às joias; a esses adornos que penduram por aí no corpo e que, ao que parece, atiçam o desejo.
Lacan encontra tal termo no discurso final de Alcibíades - no discurso em que este importante personagem da elite ateniense, sujeito que visava ocupar lugar de destaque e liderança política entre os cidadãos, revela a todos presentes no simpósio que, ao contrário do que se poderia esperar de um líder ateniense, ao contrário de uma condução racional de si que o possibilitaria conduzir-se apropriadamente como condição de conduzir a pólis (FOUCAULT, 1982-83), amava apaixonadamente Sócrates. Agalma aparece em seu discurso como aquilo que se escondia em Sócrates, por trás de sua aparência feia, de Sileno. Mas Lacan lembra seu público que nesta declaração haveria um trocadilho, pois o termo sileno diria respeito tanto ao personagem feioso que se envolvia eroticamente com as bacantes quanto a um estojo que guardaria em seu interior pequenos objetos de valor, provavelmente joias, ornamentos, enfeites, algo de valor e brilhante. Assim, Alcibíades estaria dizendo também que haveria uma topologia da relação com o objeto de sua atração - ele estaria dentro, escondido, em Sócrates. Alcibíades chega mesmo a dizer que só ele viu o agalma no interior de Sócrates e que o efeito de tê-lo visto foi de este jovem ter se submetido ao comando, às ordens de Sócrates. Agalma diria respeito, então, a uma joia escondida no interior do outro, cujo efeito é de subjugar quem tem acesso a ela por ter tido seu desejo atiçado.
Mas o psicanalista vai além de O banquete. Encontrou o termo em outros importantes textos gregos e, com isso, pôde amplificar um pouco o campo semântico abarcado por aquela palavra naquela época, naquele lugar. Por exemplo, em Hécuba (EURÍPIDES, 424 a. C.) encontrou o termo agalma dito pela protagonista após a queda de Tróia e constatação de que deixava de ser rainha para se tornar prisioneira. Hécuba temia ser mandada para Delos pois este sítio naqueles tempos era um lugar pestilento e, ao mesmo tempo, sagrado. O que conferia a Delos esta significação era a existência de um objeto que Lacan suspeita ter sido uma palmeira e que era o agalma da dor do parto sentida por Latona ao dar à luz Apolo. Lacan o relaciona ao falo, conferindo, assim, à árvore o estatuto de fetiche. Agalma aqui não designa ornamento ou enfeite, mas sim, novamente, algo poderoso e, ao mesmo tempo, que está dentro ou por trás do objeto total.
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Busto de Eurípides (cópia romana de um original grego, 330 a. C.) |
Se antes o fetiche faria sentido, em Lacan e em geral para os psicanalistas, como uma referência ao falo, agora é o contrário: o falo, como figura destacável, como objeto parcial, é que pode ser indicado pelo fetiche, sendo este último um objeto material destacável e, portanto, necessariamente parcial. Dito de outro modo, o falo é um dentre outros objetos parciais, todos eles objetos experimentados como perdas, como o efeito do furo da inscrição significante - ou, simplesmente, o objeto a. Dentre as experiências que designam esta mesma operação estariam aquelas que indicam os objetos parciais desde Freud, como o seio ou as fezes (FREUD, 1905; LACAN, 1958-59). É só assim que podemos compreender, no Seminário livro 8: a transferência, esta passagem a respeito do fetiche:
"O que é o fetiche de certa tribo, por exemplo, da curva do Niger? É algo de inominável, de informe, no qual podem se derramar ocasionalmente, enormes quantidades de líquidos de diversas origens, mais ou menos viscosos e imundos, cuja superstição acumulada, indo do sangue à merda, constitui o sinal de que ali está alguma coisa em torno da qual todas as espécies de efeitos se concentram" (id., 1960-61, p. 144)
O fetiche, como objeto utilizado como materialização do objeto parcial, portanto, não precisa aparecer como algo belo, portanto, nem estimado. O agalma que emana do fetiche - mas também do ser amado (como Sócrates para Alcibíades) - não indica apenas joias, mas, ao mesmo tempo, merda. Freud já havia, em 1910, num brilhante ensaio quase filológico, indicado a significação antitética de diversas palavras; assunto ao qual retornou em seu célebre "O estranho" (FREUD, 1919). Parece que agalma é uma dessas palavras com significação antitética.
O que, no entanto, faria se juntar estes dois sentidos aparentemente opostos numa mesma palavra seria, para Lacan, que o objeto em questão tem um valor de gozo em todas as acepções. E assim podemos retomar o tema da joia.
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Cena do filme A sociedade do anel (Peter JACKSON, 2001), da trilogia O senhor dos anéis (id., 2001-03), adaptação cinematográfica da obra de J. R. R. Tolkien |
Desde a Antiguidade atrela-se às joias um valor extremo devido a seu brilho, mas - após esta visita ao seminário de Lacan - também devido ao fato de a joia ser algo originalmente escondido. As pedras estavam nas entranhas da terra - foi o arriscado trabalho de mineração, escavação, profanação eu diria (tendo em vista que para os antigos gregos e romanos a Terra era uma divindade e em suas entranhas havia um mundo sinistro dominado pelo deus dos mortos, Hades/Plutão), que as trouxe para a luz. Nas mitologias ocidentais as joias comportavam em si um valor de algo ao mesmo tempo adorado e que subjuga ou seduz o sujeito, algo que brilha como o sol mas vem das profundezas da mãe terra. Não por acaso J. R. R. Tolkien, ao perceber que faltava à cultura inglesa uma saga mitológica como as construídas na Antiguidade por outros povos, deu às joias poderes semelhantes em seus O hobbit (TOLKIEN, 1937) e O senhor dos anéis (id., 1954-55).
Em nosso mundo moderno e capitalista, até Karl Marx publicar O capital - livro 1 (MARX, 1867), acreditou-se que o valor de alguma coisa era conferido prioritariamente pela raridade ou qualidade sob a avaliação do mercado - e, nesse sentido, as joias seriam valiosas fundamentalmente porque eram muito raras. Foi neste contexto que Marx nos falou de fetichismo de mercadoria e ressaltou o que se escamoteia por trás deste fetichismo: o trabalho e, por extensão, o trabalhador. No caso das joias, o trabalho do minerador, o trabalho de quem levou as joias até o joalheiro e, finalmente, o trabalho deste último. A joia vendida não pode pagar integralmente o trabalho daqueles, pois quem a vendeu captura uma parte do capital de sua venda para si na forma de lucro, de modo que há uma perda de gozo daquele trabalho por parte do trabalhador. É evidente que estou me referindo aqui à teoria marxista da mais valia e à assimilação que Lacan faz dela em sua teoria do gozo. O gozo perdido pelo trabalhador, este mais-de-gozar, é outro nome para o objeto a, a partir de O seminário livro 16: de um Outro ao outro (LACAN, 1968-69).
Assim, o fetiche da mercadoria joia escamotearia, ao mesmo tempo, três entranhas: as entranhas da terra - de onde vem a pedra -, as entranhas do sistema capitalista (a exploração do trabalho) e as entranhas do sujeito, que busca num objeto externo aquilo que é a marca de sua perda mais íntima (ou como gostava de dizer Lacan, êxtima [id., 1961-62] - já que o mais íntimo é também algo exterior, de fora, sempre perdido). Estas entranhas são um outro modo de designar o gozo.
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Retrato imaginário do Marquês de Sade (Man RAY, 1936) |
Haveria, portanto, uma perda estrutural de gozo no sujeito moderno formado na sociedade capitalista, mas isso de modo algum significaria que o sujeito se resigna com tal perda. Em O seminário livro 7: a ética da psicanálise (id., 1959-60) e, novamente, em "Kant com Sade" (id., 1963) encontramos uma discussão em torno do que ali é chamado de despudor: a aproximação perigosa do objeto de gozo. Pelo gozo, pela tentativa de captura do objeto, pode-se fazer seja o que for com o seu 'invólucro', o outro: gato e sapato, amar, bajular, mas também, roubar, agredir, torturar ou matar. Reconhecer a interdição do gozo é, portanto, condição de reconhecimento da dignidade do outro, até mesmo do outro como sujeito. É também reconhecer a si mesmo como faltoso, como um igual aos outros diante do interdito.
O deslumbre que muitos têm pelas joias se daria, assim, pelo acúmulo de gozo que elas parecem imajar. A busca por obtê-las sem pagar os preços que convém (financeiros, morais, éticos, administrativos, de segurança) indica uma dificuldade em se reconhecer tão faltoso quanto os outros humanos, indica uma vontade de usar o outro humano com despudor, como peça utilizável no movimento voraz em direção ao gozo. Quando o limite, o interdito, é imposto a esses sujeitos, buscarão subterfúgios para contorná-lo - a isso a teoria psicanalítica chama perversão.
p.s.: E nem tratamos da interessante discussão a respeito dos efeitos que pode ter para um sujeito receber de um Outro, como presente, joias! Evidentemente, o que se dá é alguma espécie de troca, o Outro cobra o seu quinhão. Isso está um pouco indicado na declaração de absoluta obediência de Alcibíades a Sócrates, como também nos efeitos mortíferos, maléficos e de assujeitamento que os famosos anéis tinham sobre seus detentores, em Tolkien - todos se tornavam servos de quem os deu, Sauron. Se alguém deu um presente a alguém (em particular joias - pela significação de concentração de gozo que elas comportam), ele quer algo em troca...o que será?
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Alcibíades (cópia romana de original grego, sem data) |
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