Goya/1823 e Freud/1923
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2023 é o ano do centenário da publicação de um dos textos mais decisivos de Sigmund Freud e, por consequência, da psicanálise: O eu e o isso. 2023 é, também, o bicentenário do término, por parte de Francisco de Goya y Lucientes, do que se tornou o expoente de sua arte - e talvez da arte romântica: as 15 obras conhecidas como as pinturas negras (14 delas estão no Museu do Prado, em Madri, e uma na coleção Stanley Moss, em Nova York). Meu texto de hoje é uma tentativa de articular estas duas aventuras - O eu e o isso e as pinturas negras - sem deixar de marcar a atualidade de ambas para seu tempo - e para o nosso.
Comecemos por O eu e o isso. Este importante trabalho de Freud, de certo modo, é o ponto de chegada de uma pesquisa aprofundada sobre o eu como instância psíquica, iniciada em 1914, com "Sobre o narcisismo: uma introdução" (FREUD, 1914). Mas também seria correto dizer que o texto é um ponto de chegada no que diz respeito às suas pesquisas voltadas para o tema das pulsões e sua relação com o Inconsciente, iniciadas em 1905, nos Três ensaios sobre a sexualidade. Também se pode sustentar ainda que tal artigo/livro organiza um desenvolvimento teórico a respeito de uma instância psíquica coercitiva do eu, agora nomeada por Freud de supereu, mas que já se esboçava na teoria da censura do sonho presente em A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900). Ou seja, O eu e o isso é um organizador e ponto de amarração de ao menos três desenvolvimentos de pesquisas cujo resultado é a proposição de uma nova topologia psíquica que contemple os produtos daquelas mesmas pesquisas.
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Cão (Francisco de GOYA y Lucientes, 1819-23) |
Mas este livro não é apenas um sistematizador de uma obra; ele relança o aspecto revolucionário da psicanálise em um momento em que já se construía, na Associação Psicanalítica Internacional, um modo de formar, praticar e pensar a psicanálise que temos de qualificar como normalizador e normalizado. Elencarei alguns pontos desenvolvidos por Freud, no livro em foco, que servem de crítica à psicanálise normalizad(or)a e, ao mesmo tempo, de esclarecimento a respeito de sua força revolucionária:
1) Primeiro e antes de tudo, o modo como Freud aborda o tema do eu. Se alguns idólatras do eu - dentro e fora psicanálise - já davam sinais de animação naquele início da década de 20 daquele século XX, Freud não pode de modo algum ser incluído em suas fileiras. O eu e o isso deveria bastar para não ter se desenvolvido do tronco freudiano este ramo psicanalítico chamado ego-psychology. Se antes alguém pudesse acreditar ser possível identificar o trabalho de tornar algo consciente com o domínio por parte do eu do que antes era inconsciente, agora não é mais possível. A começar, Freud deixa claro que no eu também há um funcionamento inconsciente, como, por exemplo, o processo defensivo contra as moções pulsionais que, tal como no funcionamento inconsciente, se pauta no princípio do prazer.
Mas a crítica - velada - freudiana à busca de tornar o eu inabalado pela força pulsional não termina aí. Se o eu é reconhecido como instância que se esforça por organizar os processos mentais de modo coerente, com razão, senso comum e controle da motilidade, é tendo em vista sua função defensiva e, ao mesmo tempo, subserviente em relação a três senhores: o isso, o supereu e a realidade externa. O eu é uma espécie de sicofanta, busca bajular seus senhores, sem compromisso com a verdade, mas sim com o princípio do prazer e com a sustentação de seu narcisismo: o eu faz de tudo para ser amado pelo isso, pelo supereu e pela realidade externa, ou ao menos para não ser maltratado por essas forças. É o esforço do eu por ser objeto de amor o que o leva a não querer saber da verdade e a construir todo um rol de defesas que o levarão à produção de sintomas. De que verdade o eu não quer saber? Algumas: a) de que ele não é o senhor nem em sua própria casa; b) de que ele só é uma unidade sob um ponto de vista míope, pois é um precipitado de investimentos abandonados, ele é bem mais um mosaico de identificações do que qualquer coisa; c) que seu amor por si mesmo depende do olhar e do amor do outro - é nessa chave que se pode compreender a formulação freudiana de que o eu é uma instância de superfície e de que é um projeção corporal.
Uma psicanálise que se comprometesse a reiterar e reificar o eu seria uma psicanálise certamente normalizadora - e Freud acrescentaria: que faz aliança com um sicofanta produtor de sintomas.
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Dois velhos tomando sopa (Francisco de GOYA y Lucientes, 1819-23) |
2) Freud incluiu as pulsões naquela instância antes chamada apenas de Inconsciente - e que agora prefere chamar de Isso. Antes de 1920 Freud já havia formulado que o objeto a que uma pulsão se liga é o que há de mais variado (id., 1915), mas, ainda assim, mesmo que tenha pensado a pulsão como uma pressão constante, a pulsão era sempre concebida como ligada a ao menos algum objeto dentre os vários, com fins de descarga prazerosa. O psicanalista debruçava-se sobre o tema das pulsões sexuais, porém, ao descobrir ou postular uma pulsão de morte, algo teve de mudar em seu pensamento: a pulsão passou a ser pensada sem objeto, como pura pressão por descarga de excitação que se repete compulsivamente (id, 1920).
O eu e o isso dá prosseguimento a essas reflexões da seguinte maneira: Das duas uma - ou consideramos que o que existe no Inconsciente/Isso não são somente representações (de objetos da pulsão) mas também a própria força pulsional, aproximando a concepção de Isso da dimensão do corpo e tornando-a menos 'intelectualista'; ou consideramos que a pulsão de morte não existe no Inconsciente/Isso, que ela precisaria ser pensada noutro lugar desta topologia. Freud claramente opta pela primeira hipótese, de modo que, alguns anos depois, quando numa conferência reapresenta o conteúdo de O eu e o isso, desenha um Isso aberto (à excitação corporal) e não como uma estrutura fechada (id., 1932-33).
A importância desta intervenção teórica e ética de Freud é a de que o ofício do psicanalista deixa de ser retratado como uma espécie de investigação das representações mentais do paciente, e se torna bem mais um fomentador de trabalho de lida com afecções fora do campo representacional, cuja fenomenologia remete diretamente ao sofrimento corporal, como as já mencionadas compulsões a repetição de atos, a psicossomática, a casos de angústias traumáticas sem sentido etc.. O corpo entra em cena não somente como o corpo representado da histérica, mas também como o real do corpo em sua dimensão de gozo e horror (LACAN, 1972-73).
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Saturno devorando um de seus filhos (Francisco de GOYA y Lucientes, 1819-23) |
3) O supereu é postulado neste livro. Ao contrário do que alguns preferem, o supereu não é apenas um outro nome para ideal do eu, mesmo que Freud diga isso explicitamente neste mesmo livro. Mas é verdade também que nas conferências já citadas acima os distingue claramente. Creio, todavia, que já em O eu e o isso, a dintinção já se apresenta pois ao abordar a dimensão propriamente superegóica do aparelhos psíquico, Freud não simplesmente repete sua teoria do ideal do eu desenvolvida em 1914 e 1921, mas, ao contrário, traz uma novidade; algo da ordem de uma opressão sádica.
O ideal do eu remeteria a um efeito da passagem do sujeito pelos complexos de Édipo e de castração. O efeito que a castração tem no narcisismo é irreparável mesmo com o sujeito não querendo admitir sua incompletude. É nesse momento que se ergue o ideal do eu como compensação narcísica prometida: idealiza-se uma referência de completude tendo em vista as imagos paterna (principalmente) e materna dentre outras; algo que se o sujeito vier a ser, a alcançar, ele supostamente desfrutará do gozo feliz da completude. Obviamente é uma ilusão, mas que serve, na sua distância, na sua oferta de um futuro, de sustentáculo do reconhecimento da própria castração que alimenta o desejo e a práxis da busca por construir uma história.
O supereu, por sua vez, diria respeito à pura força opressiva e acachapante que empurra o sujeito a se movimentar para que busque alcançar o ideal do eu. Enquanto o ideal é uma referência, o supereu é um imperativo categórico de obediência ao ideal - ou, como postulou Lacan, um imperativo de gozo (id., 1959-60). O supereu, como pura força opressiva sobre o eu indica que o eu é alvo do gozo de um Outro - e os casos de melancolia e neurose obsessiva são exemplares aqui. A teoria do supereu põe em primeiro plano os problemas do assujeitamento, da violência, do poder e do gozo do Outro sobre o sujeito. A crítica ao supereu recoloca enfaticamente a psicanálise na luta contra a dominação (em tempos de ascensão do fascismo), recoloca a prática ofertada pelo psicanalista como uma prática de liberdade na qual um dos efeitos, entende Freud, é o de um enfraquecimento do supereu e de sua exigência censora, tendo por consequência uma maior porosidade do eu ao isso.
É nesse sentido que se deve ler a frase/direção ética construída por Freud de que onde estava o isso deve advir o eu: não uma dominação do eu sobre o isso, não uma obrigação superegóica de tornar o que é isso algo assimilado pelo eu, mas, como propõe Lacan, um posicionamento do sujeito de admitir como parte de si aquilo que antes ele tomava como 'isso', como algo exterior a si mesmo, desconexo, parcial e muitas vezes sem serventia para o objetivo alienante de se ver completo. A psicanálise é fundamentalmente uma crítica da completude, é anti-totalitária; a psicanálise é fundamentalmente uma crítica da captura masoquista dos sujeitos em direcionamentos ideais com fins de serem amados, por conta do preço que pagam, alto demais, de abdicarem de escutar seu desejo como valor afirmativo de si.
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A romaria de São Isidro (Francisco de GOYA y Lucientes, 1819-23) |
E o que Goya tem a ver com tudo isso? Pretendo mostrar que alguns elementos da revolução freudiana já estavam presentes no romantismo e Goya foi um dos expoentes daquele movimento filosófico-estético. Um único pintor romântico espanhol, uma andorinha não faz verão. Goya estava longe dos românticos alemães e ingleses, estava isolado, mas talvez seu isolamento tenha servido para pintar ainda mais radicalmente a partir daquela estética que expressava, dentre outras coisas, o próprio isolamento do homem diante de forças maiores. As assim chamadas pinturas negras foram obra desse isolamento, aliás.
Foram realizadas entre 1819 e 1823 nas paredes da casa em que o pintor morou - feitas diretamente com óleo sobre os muros internos do edifício. A residência se chamava Quinta del Sordo e ela foi uma espécie de residência-exílio interno do pintor, liberal em política, crítico da monarquia absolutista, mas ainda assim amargurado com o momento político conturbado e breve de liberalismo que terminou justamente em 1823, com o retorno do absolutismo. Com medo da perseguição política, o exílio interno não era mais suficientemente seguro após 23; Goya fugiu para a França deixando sua casa sob a guarda de seu filho. Portanto sabemos que em 1823 todas as pinturas negras já estavam terminadas.
Importa aqui destacar dois pontos a respeito delas:
1) O cenário político de descrédito, crítica, instabilidade e isolamento de Goya - aliás, não muito diferente da sensação de Freud diante do que o presidente Wilson fez com sua Áustria no entre guerras em que O eu e o isso foi escrito (FREUD, 1931) - era o clima que pairava no ar pesado da Espanha: a segurança se foi, os espanhóis estavam sujeitos à violência que poderia vir da monarquia dos Bourbon, da França, dos militares, dos oportunistas, dos próprios liberais. Goya temia expressar suas críticas, mas não as reprimiu - elas estão nas pinturas negras. Destaco também que o clima de perseguição e opressão que a restauração do absolutismo teve na Espanha de 1823 encontra um parentesco reacionário na ascensão do fascismo na Itália de 1922, que certamente interessou Freud, habitante de um país vizinho e enfraquecido, vulnerável (como se viu depois) às tentações totalitárias. Portanto, estamos diante de cenários de crise, cenários em que somos convocados a olhar e acolher ou a destruir o insuportável, dependendo de nossa escolha ética.
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O grande bode (Francisco de GOYA y Lucientes, 1819-23) |
2) Goya não realizou as 15 pinturas negras com fins de venda ou mesmo divulgação. Elas foram feitas diretamente nas paredes internas de sua residência. A casa não estava à venda. Eram, de certo modo, secretas. Só ele, sua família e ocasionais visitas, tinham conhecimento destas obras. Para meu leitor ter uma ideia, apenas 40 anos depois de sua realização, após muito tempo depois da morte de Goya, é que estas pinturas foram retiradas das paredes, tornadas quadros e expostas em museus tornando-se conhecidas do público geral. Estas pinturas eram, portanto, de 'uso privado', foram realizadas como um trabalho de Goya para ter efeito em sua vida mais direta; um trabalho sobre si - o que uma psicanálise, aliás, se pretende ser.
Ainda a respeito deste segundo ponto, vale descrever onde estavam dispostas as pinturas negras, dentro da Quinta del Sordo:
- Sete delas no primeiro andar, em torno da grande sala, que, de acordo com as convenções de uso das quintas nobres e burguesas com pretensões de ganhar respeitabilidade nobiliária, era o espaço de receber visitas e fazer as refeições na grande mesa de jantar. A decoração costumeira destas salas era com quadros que representassem ou paisagens agradáveis ou cenas de comida, fossem naturezas-mortas ou não. A intimididade, a tranquilidade e o cultivo da alegria, do bem-estar e da autossuficiência eram em geral expressados e praticados em torno daquelas mesas e acolhido por aquela decoração. Uma aura de sacralidade da família, do eu e da privacidade pairava no ar. Quero lembrar o leitor de que Goya foi por muito tempo o pintor oficial da família real da Espanha e teve diversas oportunidades para frequentar a vida nobre (mesmo sendo, ele próprio, um marginal naqueles espaços). E que pinturas Goya deixou em sua casa, na qual, se fosse um lar de fidalgos, se veria as cenas acima descritas?
Também temos cenas de comida, é verdade, mas um tanto heterodoxas. Temos Saturno devorando um de seus filhos (GOYA, 1819-23). Temos Dois velhos tomando sopa (id., ibid.). O comer ou é rebaixado à subsistência miserável dos velhos, desamparada, sem o olhar e o cuidado amoroso de outro humano; ou é um ato violento, destruição, por parte de uma figura poderosa em relação aos pequeninos corpos-carne. Não se pode dizer que falta ironia e crítica na decoração de interiores de Goya. Ou alimentação ou violência, mas não o prazer narcísico da autossuficiência e de degustação do prato servido. O efeito é de crítica ao eu que não quer ver o quanto o seu jantar é ainda, por um lado, um ato animal de alimentação e, por outro, um gozo opressor sobre o outro explorado (Qual o custo deste consumo? O que e quem é consumido?), a violência do devorar.
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Mulheres rindo (Francisco de GOYA y Lucientes, 1819-23) |
O eu é desnudado de sua ilusão alienada no momento mesmo da intimidade da vida entre quatro paredes. Um supereu saturnino devorador, um Outro que goza do filho está na parede. Dois velhos desvalidos, humilhados e engolindo seus pratos de sopa parecem revelar a verdade de um eu que deixa de insistir em idealizar o jantar como momento de 'barriga-cheia', de completude.
Ao redor da mesa está também Judite e Holofernes (id., ibid.). Sabemos que foi após a refeição que tal ato horroroso e parcialmente mostrado no quadro se deu: ela decapitou o tirano. Parece que temos uma direção político-ética em cena. Se em um quadro temos o tirano Saturno devorando seus filhos; no outro temos a heroína Judite que decapita o tirano Holofernes, após seduzi-lo. É preciso derrubar o tirano, o absolutismo - sem dúvida-, mas também o supereu. O ato heróico de Judite lembra a dimensão heróica da análise destacada por Jacques Lacan, na sustentação de um desejo contra o Outro tirano, através do exemplo sofocliano de Antígona diante de Creonte (LACAN, 1959-60, SÓFOCLES, ~ 442 a,C.). A ética da psicanálise de fazer advir o eu onde estava o isso exige algo do heroísmo : reconhecer o desejo que vem do isso e reconhecê-lo como afirmação de si.
No lugar de paisagens idílica, temos monstruosidades nas paredes laterais da mesa de jantar. A romaria de São Isidro (GOYA, 1819-23) com rostos idiotizados, débeis, grotescos de um lado. Do outro, o culto ao Grande Bode (id., ibid.), ao Diabo, no qual as bruxas são ainda mais assustadoras, figuras decrépitas, abjetas. Novamente a crítica de Goya vai fundo. A bela paisagem serviria para o eu não ver. A paisagem de Goya faz ver o quanto massas humanas se idiotizam diante dos Grandes Bodes ou diante da Grande Igreja. O Bem ou o Mal como ideais do eu idiotizam, submetem, assujeitam igualmente: e talvez não sejam tão diferentes assim. A crítica aqui nos lembra do incômodo freudiano quanto à sujeição ao ideal do eu/supereu por parte de seus analisados.
- No segundo andar dormia a família. As visitas não iam aos quartos. Oito quadros decoravam esta parte de intimidade máxima. E o que eles mostram? Dentre outras imagens, Homens lendo (id., ibid.) de um lado, Mulheres rindo (id., ibid.) do outro...e no meio Dois homens brigando com porretes (id., ibid.). Não se deve esquecer ainda a imagem enigmática e ao mesmo tempo assustadora de Um cão (id., ibid.), nem um pouco alusivo a mascotes ou bichos de estimação, mas a um bicho bravo, ameaçador que pode sair de trás da elevação onde está quase inteiro escondido. A reclusão à intimidade não é pensada como recolhimento à completude, mas como cenas de desencontro, conflito e vulnerabilidade. Goya, à sua maneira, também nos mostra que o eu não é senhor nem em sua própria casa. A desidealização e a ilustração de que por trás dos ideais há uma pressão violenta por subjugação atravessam também o segundo andar.
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Homens lendo (Francisco de GOYA y Lucientes, 1819-23) |
Falei bastante de como se pode ver uma crítica ao eu narcísico e ao supereu tirano nas pinturas negras de Goya. Mas elas também nos remetem à experiência do isso. Goya foi um romântico aderido à estética do sublime de Edmund Burke (BURKE, 1757). Esta estética valoriza, ao contrário da estética do belo - visto como ilusão por ela -, a verdade da instabilidade, da desarmonia, do descompasso, da angústia. Ela nos lembra de nossa pequenez diante de forças incomensuráveis. Mas esta estética também produziria reflexão, desindividuação e deleite com o que poderia ser desprazeroso. O páthos passa a ganhar valor existencial. Ora, a experiência do isso, segundo Jean Laplanche, remete exatamente à estética do sublime (LAPLANCHE, 2000).
Independentemente do objeto representado, as pinturas negras de Goya evocam o isso através de recursos técnico-pictóricos que abrem para o sublime. Por exemplo: contornos mal formados através de borrões, escuridão e pinceladas grossas; pinturas que já apontam para o não representado, para o que escapa da imagem delineada. Outro exemplo: panoramas amplos e assustadores. Mais um: composições tensas, não estáticas, mas em movimento e angulação agudos. Obviamente o conteúdo representado também conta: a velhice, a violência, movimentos de massas acumuladas como entulho, a morte, animais bravos. Estes quadros de Goya transpiram o encontro com o isso: algo de terrível vai acontecer, a angústia aflora, uma sensação de estranhamento, mas ao mesmo tempo de um humor assustador - tudo isso junto de um prazer um tanto indecoroso com o que não deveria ser representado mas é: a carne humana, a oralidade canibal, o sonambulismo da sedução, olhares cheios de desejos perversos, o culto ao que é maldito.
As pinturas negras são, à sua maneira, e a posteriori, O eu e o isso de Goya. Ali também encontramos um isso carnal, corporal, sem representação (nos borrões, no escuro, na 'vianda'); ali também encontramos um supereu violento que goza devorando seus subjugados; ali também encontramos um eu dividido entre várias imagens, em conflito, instável, reconhecido no ridículo de sua tentativa de ilusão através da fuga à intimidade. E nós, que estamos em 2023, ainda temos mais uma vez de fazer essa escolha ética: acolher o ruim, o desagradável e o angustiante como parte de nossa existência ou aplaudir uma ordem qualquer que os varra do mapa.
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Dois homens lutando com porretes (Francisco de GOYA y Lucientes, 1819-23) |
Freud e as Pinturas Negras, tema difícil. Parabéns por tentar tornar mais claras as posições freudianas. Assim mesmo difícil
ResponderExcluirObrigada Pedro. Excelente!
ResponderExcluirEsse texto vale por uma aula. Essas pinturas de Goya são atordoantes - um pintor difícil de lidar. VP
ResponderExcluirObrigado! Goya é fascinante: começou Rococó, com imagens quase pueris, e terminou Romântico e cheio de horror
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