Angústia e trauma na ameaça de violência

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O filósofo-psicanalista esloveno Slavoj Žižek publicou um interessante artigo, nesta semana (no dia 10 de fevereiro), na revista Jacobin Brasil: "Slavoj Žižek propõe um curto-circuito temporal". O ponto que quero destacar de seu artigo, no entanto, não é o tema principal do texto, mas sim um que me inspirou a pensar e escrever, na medida em que participo do grupo de pesquisa "Trauma e catástrofe", organizado por Joel Birman, na UFRJ. Me refiro à seguinte frase: 

"E é crucial acrescentar aqui que a verdadeira catástrofe já vive sob a sombra da ameaça permanente de uma catástrofe" (ŽIŽEK, 2023, https://jacobin.com.br/2023/02/slavoj-zizek-propoe-um-curto-circuito-temporal/).

O grito (Edvard MUNCH, 1893)

O contexto da discussão diz respeito, dentre outras coisas, ao efeito que as constantes ameaças tanto de golpes de estado de extrema-direita quanto de uma guerra nuclear podem ter - especialmente durante a Guerra Fria, mas ainda hoje - sobre as subjetividades. Estamos falando, portanto, da continuidade de existência da aflição, mesmo que esteja no pano de fundo, latente, da ameaça de viver um grande trauma, um grande horror.

 Enquanto o efeito subjetivo da experiência atroz do trauma foi e têm sido objeto de diversas pesquisas de psicanalistas, o tema indicado por Žižek não costuma ganhar mais tanto destaque: os efeitos subjetivos já destrutivos da constante apreensão de que algo terrível vai acontecer. Por isso quero desenvolver algumas linhas de pensamento aqui, mesmo que fiquem soltas. Peço que o leitor entenda este texto como o início de uma reflexão e não como uma teoria acabada.

No célebre Além do princípio do prazer (FREUD, 1920) podem ser encontradas algumas balizas para esta discussão na distinção que ali é proposta entre medo (Furcht), angústia (Angst) e susto (Schreck). Leiamos Freud:

"A 'ansiedade' (angústia) descreve um estado particular de esperar o perigo ou preparar-se para ele, ainda que possa ser desconhecido. O 'medo' exige um objeto definido de que se tenha temor. 'Susto', contudo, é o nome que damos ao estado em que alguém fica, quando entrou em perigo sem estar preparado para ele, dando-se ênfase ao fator de surpresa" (id., ibid., p. 23)

Slavoj Žižek

Considerando as definições dadas por Freud, ficamos embaraçados em poder decidir qual dos três termos melhor se aplica ao tema tocado pela intervenção de Žižek. Afinal, poder-se-ia defender que o tema é o medo: o objeto está definido - a hecatombe nuclear. Poder-se-ia também sustentar que, não!, Žižek trata, em seu texto, da angústia: pois a ênfase do filósofo esloveno é colocada no estado de tensão e espera constante pelo perigo acontecer. Alguém ainda poderia dizer que o texto de Žižek é original porque tenta pensar a espera constante do perigo acontecer como já sendo um perigo, uma catástrofe (o trauma?), mas desta vez sem susto? Ou talvez seja melhor considerar uma condição de assustado constante?

Algumas obras de arte recentes justamente jogam com essa angústia constante no fruidor, que o remete já para o trauma e ao mesmo tempo, por ser uma obra de arte (e assim proteger parcialmente o fruidor, pois é 'faz-de-conta'), não. Uma experiência-limite do horror futuro já vivido no presente está na estética do suspense. Hitchcock fez uma carreira em cima disso. Mas o interessante das duas obras que vou citar está no fato de que o horror está na angústia mesma do que pode ocorrer e, ao final, o que haveria de terrível não ocorre, mas o mal-estar, nem por isso, nos abandona. O horror vivido é o de ficar constantemente angustiado.

A primeira obra a que faço referência é a mostra Grande (LIMA, 2010) da artista plástica contemporânea brasileira, mineira, Laura Lima, que eu pude conhecer na Casa França-Brasil, no Rio de Janeiro, em 2010.  Uma das obras da mostra é um nicho daquele edifício transformado num quarto escuro - completamente escuro. Porém, antes de chegar àquela obra, o público já teria passado por outras, todas utilizando pessoas vivas como parte constitutiva do material estético (faltam termos para designar aquelas pessoas, seriam atores?). Somos informados de que apenas um indivíduo por vez pode entrar no tal quarto escuro, que ele deve andar até o fim da sala e voltar, se conseguir. Estas instruções somadas à lembrança de que em cada obra de Laura Lima havia pessoas reais geram no público - ao menos em mim e naqueles com quem eu estava - angústias acompanhadas das perguntas "Haverá alguém ali dentro, no breu, sozinho comigo?" ou "O que farão comigo ali dentro?". Lima nos coloca em estado de vulnerabilidade, apreensivos com o que virá, num estado de angústia constante. Andei até o fim da sala e voltei - no caminho, senti algo (Um vento? Um gesto?) nos meus cabelos - o que aumentou a angústia; saí e 'nada' aconteceu...ou melhor, o pior não aconteceu. Os outros que fizeram o mesmo que eu também sentiram o tal vento ou gesto, o que realimentou a apreensão de que há alguém mais lá dentro no escuro. Enfim, o 'nada' que aconteceu foi nada mesmo? A artista nos fez sentir a angústia constante como o que há de pior.

Laura Lima

O outro exemplo é o filme mais ou menos recente da diretora neozelandesa Jane Campion, Ataque dos cães (CAMPION, 2021). Somos introduzidos num velho-oeste bruto e assustador. Os vulneráveis, naquela época e naquele lugar (mulheres, homens fracos fisicamente, homens que não exibem virilidade) eram terrivelmente vulneráveis. Como aprendemos nos 'bangue-bangues' antigos de John Wayne, a 'Lei do Oeste' é a lei da força e da bala. O filme é brilhantemente conduzido de modo a nos deixar angustiados esperando que algo de terrível aconteça na próxima cena o tempo todo. Diferentemente da obra de Lima, na qual 'nada' acontece, no filme de Campion há um evento marcante e sinistro no final, mas de modo algum é o horror que o público espera acontecer, é algo totalmente diverso. E, no entanto, já imaginamos tudo de ruim que poderia ter aparecido na tela para conseguirmos retornar ao bem-estar após as luzes do teatro se acenderem. As imagens foram vistas em nossa mente angustiada, mesmo que não tenham acontecido no filme.

A frase de Žižek e estas obras de arte nos estimulam a pensar diferente a relação entre angústia, tempo e a experiência traumática. Estamos habituados a pensar o susto como um fenômeno relâmpago, imediato, e o consideramos como o afeto mesmo do encontro traumático (ao menos nós psicanalistas). Porém, um psicanalista próximo a Freud, Sandor Ferenczi, em seu mais conhecido trabalho sobre o trauma, "Confusão de língua entre os adultos e a criança" (FERENCZI, 1932), além de Žižek, Laura Lima e Jane Campion, autoriza os psicanalistas a pensar diferente. Ali, além do trauma-modelo a que se dedica a explicar - o do abuso sexual de uma criança, seguido de chantagem, delação e silenciamento por parte de um outro adulto de confiança que desmente o relato da criança -, o psicanalista húngaro chama atenção para algo também importante: os efeitos traumáticos de vivências contínuas ou bastante repetitivas, por exemplo, de violência física através de punições passionais ou mesmo através do terrorismo de sofrimento, no qual a ameaça ocupa um lugar importante. Abre-se a possibilidade de se pensar experiências constantes como traumáticas - assim, se o afeto a que Freud ligou o trauma é o do susto, ou falamos de um susto constante ou teremos de considerar que nem sempre o afeto do susto é o que advém (nas situações de continuidade da vivência traumática não seria impossível considerar o aparecimento do medo e da angústia).

Mais a favor da angústia como hipótese do que do medo para se pensar a intervenção de Žižek viria também o argumento de que o medo circunscreve um objeto onde o se deposita o afeto ansioso, liberando o resto da experiência humana a uma relativa calma. Ora, o texto de Žižek trata do tema do futuro; um futuro ao mesmo tempo abstrato e catastrófico e, desse modo, não funcionando como delimitação de objeto que orienta a existência a uma calma (quando longe do objeto); ao contrário, o argumento do filósofo é que como o futuro é o que está sempre por vir, ele está sempre já latente hoje no presente o tempo todo - não há descanso, não dá pra 'ficar de altos'. O afeto de angústia, de expectativa do horror, da catástrofe, propõe Žižek, já é a catástrofe. A contínua angústia é traumática.

Cartaz do filme Ataque dos cães (Jane CAMPION, 2021)

Esta enunciação é provocativa aos psicanalistas por um outro motivo. Os analistas estão habituados a pensar, segundo a ortodoxia, que a angústia funciona como um sinal de proteção contra o trauma. Que ela faz agir e se preparar um aparelho psíquico de modo a estabelecer defesas contra o perigo do trauma. Mas talvez Freud já tenha sentido que a angústia em si pode ser traumática em Inibição, sintoma e angústia (FREUD, 1926), afinal é neste texto que apresenta uma nova teoria na qual haveria dois tipos de angústia: a já mencionada angústia sinal (que prepara e ajuda o aparelho a se proteger do possível trauma) e a angústia real. Esta segunda diz respeito ao afeto experimentado na situação traumática; ou seja, aquilo que Freud chamou de susto, agora chama de angústia real. 

Mas a troca de termos não é neutra. Freud mesmo repetia isso algumas vezes, defendendo, por exemplo, a manutenção do termo libido para fazer referência à energia psíquica, indicando que não abre mão da descoberta de que ela é sexual (FREUD, 1914). Se o grande psicanalista preferiu usar o termo angústia para também designar o que se sente no trauma, isso tem relevância. Tal posição indica ao menos um mal-estar fenomenológico dos psicanalistas (talvez do próprio Freud): quando o paciente apresenta um quadro de angústia contínuo, isso pode ser o efeito de um trauma (contínuo) ou não (ser, assim, proteção contra aquele). Não é evidente separar angústia de angústia fenomenologicamente. Foi essa abertura do texto e da clínica freudianos o que permitiu que, primeiro Ferenczi, e, depois Žižek, pudessem tratar um temor constante de algo terrível se repetindo como já traumático (seja o terrorismo de sofrimento [com as ameaças que o alimentam], seja o pesadelo da bomba atômica).

Com essa possibilidade apresentada, se abre a possibilidade de se pensar todo um campo fenomenológico de nossa cultura como traumático - o que muda tudo, desde a clínica psicanalítica às políticas públicas. Me refiro, por exemplo, ao tema do racismo. Encontramos, vez por outra, no Brasil, alguns negros que dizem que jamais sofreram racismo, que sabem que há racismo, conhecem quem sofreu, mas que eles mesmos nunca passaram por isso. Antes poder-se-ia pensar essas pessoas como não traumatizadas; agora não há mais tanta certeza sobre isso, afinal elas sabem que ainda não sofreram racismo, mas podem sofrê-lo amanhã porque são negras e, deste modo, estão numa condição vulnerável. A preocupação constante e real, de fundo, do negro em ser maltratado por sua cor pode ser pensada como um efeito traumático do racismo? O negro consegue se sentir bem num ambiente de brancos mesmo quando não é maltratado, mesmo quando ainda não foi maltratado? O melhor a fazer é escutá-los.

Jane Campion

Aqui o trauma no modelo ferencziano é uma referência importante porque é pensado numa relação. Há um outro agressor e há um outro de confiança que desmente aquele que sofreu a violência. Como os brancos podem agir para que o futuro esperado do negro já em seu presente não seja catastrófico? Além de não agredir, obviamente!, eles têm de reconhecer a violência sofrida pelos negros, escutar e reconhecer a verdade de seus relatos. Desfazer a estrutura do desmentido (que é o cerne do trauma).

O tema žižekiano do futuro esperado como algo já catastrófico no presente já foi, de certo modo, abordado como uma característica de nossa contemporaneidade e exatamente através do exemplo-paradigma do pavor do perigo nuclear, pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, em seu Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade (BECK, 1986), autor consultado pelo filósofo esloveno em seu O sujeito incômodo (ŽIŽEK,  2000). O filósofo brasileiro Paulo Vaz, aliás, também pensa as relações entre cultura de risco e a consideração de um futuro em nossa contemporaneidade em seu trabalho "O conceito de risco" (VAZ, 2017). Estes autores, cada um à sua maneira, tentam demonstrar também como a tomada do futuro como um perigo possível é algo utilizável pelo poder: gerir riscos é um modo de governar corpos, coisas, práticas e mentes através do medo. Se tomarmos estas considerações políticas e as aproximarmos do que escrevemos nos últimos parágrafos - ou seja, se tentarmos pensar o racismo através das referências de Beck, Vaz e do trauma ferencziano -, será preciso que reconheçamos que o poder que faz uso da angústia do negro é um poder branco, herdeiro do tataravô escravocrata. O fato de o negro não se sentir à vontade entre brancos é de interesse do racista; é um ponto-de-ancoragem de um governo sobre o negro. 

O que foi dito num parágrafo como um trauma relacional, é aqui considerado como um certo jogo de poder: são duas abordagens e duas verdades sobre uma mesma violência, mas as duas indicam uma posição ética a se tomar - um modo de o vulnerável poder não viver seu temor como uma violência depende, por um lado, de sua tomada de palavra para falar de sua condição, e, de outro, que se escute sua palavra e se dê estatuto de verdade a respeito do que está em jogo.

Paulo Vaz

Comentários

  1. Este texto nos abre tantas questões, é uma verdadeira fonte de reflexões. A problemática que Zizek nos coloca, ligada a um futuro catastrófico e a constante expectativa do horror, como um empuxo traumático que perpassa, hoje, todos os humanos, liga-se, do ponto de vista histórico, a um ápice de vetores iniciados na 2ª Grande Guerra, com o extermínio nuclear de enorme contingente. A escala agora é planetária e o gatilho está na mãos de vários. A relação “poder global e extermínio” se configurou como uma equação repetitiva nos noticiários cotidianos. Nós, que somos ‘população’ em meio a essa racionalidade hegemônica, vivenciamos traumas sobre traumas, como entendo sugerir o autor, e sobreposição de sofrimentos, como é o caso do racismo – destacado no texto - um tipo de horror ‘específico’, de ampla envergadura. Empregado como estratégia de dominação da modernidade, certamente o que o texto propõe como ‘escuta e reconhecimento’ integram firmemente a base de combate e dissolução deste mal tão radical. Justamente por tal radicalidade, Franz Fanon e o filósofo Lewis Gordon insistem, em seu enfrentamento, na necessidade de invenção de uma outra ‘humanidade’, uma tarefa gigantesca. Belo texto, muito instigante.

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  2. Obrigado! Uma outra 'humanidade' ou, como diriam Nietzsche e Foucault, uma ultrapassagem do humano

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