O futebol científico e sua máquina - e o futebol artístico e seus craques

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No meio de uma copa do mundo fica difícil não falar, nem que seja um pouco, de futebol. Ainda mais num país que ganhou lá pelos idos de 1970, - por conta do inédito feito até então: um tricampeonato mundial - o reconhecimento de 'país do futebol'. Pier Paolo Pasolini, o cineasta e pensador italiano, naquela ocasião, chegou a dizer que enquanto o futebol europeu, e em destaque o italiano (derrotado na final daquela copa pela seleção canarinho), seria um 'futebol de prosa', o brasileiro, o de Pelé, Tostão, Gérson, Rivellino, Jairzinho e companhia, seria um 'futebol de poesia' (PASOLINI, 1971). O futebol brasileiro seria um 'futebol-arte' pois se preocupava com o jogo bonito. E hoje, ainda é assim?

Pelé driblando o goleiro do Uruguai em partida disputada na Copa do Mundo de 1970, no México 

Os jornalistas esportivos costumam dizer que alguma coisa artística e bonita se perdeu quando a seleção brasileira da copa do mundo de 1982, na qual jogavam craques como Zico, Júnior, Sócrates, Falcão e Éder, mesmo jogando bonito, perdeu para a Itália. A revanche italiana causou um estrago no futebol brasileiro: desde então houve diversas reformulações na prática do futebol brasileiro buscando torná-lo tão competitivo quanto o 'futebol de prosa' europeu. Se ainda nas copas vencidas de 1994 e 2002 (mais na segunda que na primeira) se podia ver momentos de poesia nos pés de Bebeto, Romário, Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho Gaúcho, de 2006 para cá o que temos de poesia é muito pouco. De 2014 em diante, temos Neymar - que o jogador de futebol Filipe Luís (temporariamente atuando como comentarista no canal SporTV) definiu como uma figura de caos no meio da ordem. Um sintoma destas mudanças, não só no Brasil, é o quase absoluto desaparecimento dos jogadores que antes eram conhecidos como os 'camisa 10', jogadores antes cruciais, criativos, com futebol bonito nos pés.

Há a esperança de que Vinicius Jr., Richarlison e Paquetá possam também fazer poesia, mas algo age contra isso. E é disso que quero falar. Se Pasolini preferiu comparar um futebol de prosa com um futebol de poesia, prefiro - tendo em vista o futebol que se produziu a partir dos anos 90 - pensar a partir de outro par: um futebol arte e um futebol ciência. Farei esta distinção entre arte e ciência a partir de algumas pistas freudianas.

Em seus Três ensaios sobre a sexualidade (FREUD, 1905) e novamente em "Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna" (id., 1908), Freud busca distinguir duas modalidades de sublimação da pulsão sexual, uma científica e outra artística. Enquanto na prática da ciência a pulsão é interditada de ser descarregada diretamente, na arte não. A prática científica se nutriria da energia sexual recalcada que seria desviada para uma finalidade não sexual - o cientista, sugere Freud, trabalha melhor, sob abstinência. O artista, ao contrário, é estimulado pela experiência erótica direta, o que inspiraria sua criação. 

Garrincha, jogando pelo Botafogo, deixando um adversário literalmente de quatro

A pulsão erótica, no entanto, não é experimentada psiquicamente como uma pura pressão por descarga. Essa pressão se impõe já dentro das tessituras representacionais, diria Freud (id, 1915), ou significantes, diria Lacan (LACAN, 1953). Quero dizer que essa pressão nos faz percorrer certos trilhamentos significantes que não são outra coisa senão o que chamamos fantasias. Para ser mais claro: a pressão da pulsão sexual é vivida subjetivamente como pressão pela realização de certas fantasias que, supomos, levarão à descarga daquela excitação. As fantasias são o que há de mais subjetivo e singular no aparelho psíquico - é através da fantasia que o sujeito se apresenta como desejante (LACAN, 1958-59).

Sendo assim, ao retomarmos a distinção freudiana entre sublimação científica e artística, teríamos de dizer que a primeira, ao recalcar fantasias, também impede o sujeito de se apresentar como figura singular e desejante, para, no lugar disso, oferecer uma objetividade de procedimentos. Já a sublimação artística não teria esta característica, ela se 'alimenta' da fruição e afirmação, por parte do sujeito, de suas fantasias carregadas de desejo.

Este détour pela teoria psicanalítica foi realizado para poder sustentar meu argumento, qual seja, o de que o futebol científico é um futebol que impede a aparição do sujeito, do desejo, da fantasia. O futebol artístico só existe quando, nele, se expressa um sujeito desejante, através da afirmação de sua fantasia.

Pier Paolo Pasolini

Desde que o universo do futebol virou business, virou um grande negócio onde se ganha muito dinheiro, ele passou a funcionar como uma empresa com fins lucrativos que, como toda grande empresa que quer prosperar no mundo neoliberal, adota o que se chama por aí 'métodos de gestão racional'. Este termo quer simplesmente dizer: maximizar lucros e minimizar gastos. Ora, Michel Foucault mostra muito bem como a vontade moderna de governar racionalmente (buscando minimizar gastos e maximizar ganhos), desde que se estabeleceu no século XVIII, esteve relacionada ao sonho de uma gestão científica (FOUCAULT, 1977-78). Este sonho continuou no positivismo do século XIX (COMTE, 1848) com sua bandeira de 'ordem e progresso' e ainda está presente seja no neopositivismo, seja no neoliberalismo que doutrina os indivíduos a tomarem a si mesmos como empresa a ser gerida racionalmente (FOUCAULT, 1978-79).

Na gestão científica desta grande empresa chamada o futebol, algumas coisas se impuseram com o passar dos tempos:

1) o árbitro de futebol passou a ser visto como um problema porque ele é um sujeito. Um sujeito, porque fantasia, pode se equivocar em perceber uma suposta realidade neutra. Seu julgamento pode trazer instabilidade ao jogo. A solução da empresa futebol foi tripla: desacreditar o árbitro, empoderando seus auxiliares (antes chamados de bandeirinhas) e, em seguida, criando o auxílio de última tecnologia do VAR, que supostamente eliminaria as posições subjetivas e garantiria uma objetividade irrefutável. Além do mais, as regras foram modificadas em nome de uma suposta precisão objetiva, como, por exemplo, a da 'mão na bola': não é mais a detecção de intenção no infrator o que determina a falta (ou seja, não é mais o reconhecimento de um sujeito), mas o ângulo do braço em relação à bola! Hoje sabemos que este sonho apenas reiterou que os sujeitos não foram eliminados, eles insistem por trás ou por entre as máquinas, não são capturáveis o tempo todo. De um sujeito que interpreta a conduta de outro sujeito passamos para um olho que registra a dinâmica dos corpos.

2) padronizou-se o jogo de um modo a torná-lo mais previsível e controlável. O gramado em todos os lugares deve ser cortado igualmente, os campos têm de ter as mesmas dimensões, a irrigação dos gramados deve ser idêntica, o comportamento das torcidas, nos estádios, deve ser também controlado. Já há estádios com teto fechado e ar-condicionado, para se eliminar as diferenças climáticas. O campo de futebol é um grande laboratório a ser reproduzido em qualquer lugar do planeta. 

Romário batendo o goleiro da Suécia, pela seleção brasileira, em 1994

3) O treinamento dos jogadores se tornou precoce, desde as escolinhas de futebol de crianças, onde se utilizam metodologias de ensino dos fundamentos do futebol e de tática esportiva padronizadas em áreas cada vez mais vastas do chamado planeta-futebol. 

4) Vigoram metodologias de especialização, nas quais alguns jogadores são tornados excelentes executores de determinadas funções em determinadas posições no campo, para que a máquina-equipe possa funcionar bem, seja defensiva ou ofensivamente. 

5) O desempenho das equipes passou a ser avaliado a partir de sua eficiência - e esta desenhada através de dados objetivados, matematizados ou ao menos produzidos por um maquinário científico. As estatísticas, grafos de calor, índices de desgaste muscular se tornaram informação fundamental para os treinadores.

Cada vez mais um número cada vez maior de treinadores trabalha como um gestor de empresa que quer ver uma máquina funcionar melhor e cada vez mais os jogadores são formados e treinados para funcionarem como peças desta grande engrenagem. O que se tornou mais raro foi a aparição de jogadores que fazem arte, que se expressam como sujeitos e não somente como executores de tarefas. O futebol ficou menos bonito, mas como a beleza vende, foi preciso vender que há beleza na máquina funcionando bem. Ainda assim, o sujeito resiste, na figura rara, porém valiosa, do craque.

Maradona fazendo o gol mais bonito da história das Copas, em 1986, após driblar o time inglês inteiro 

O sujeito insere num sistema ordenado algo que é interpretado pelo funcionamento regular do sistema como caos, mas é apenas o que não é inteiramente controlável pelo sistema: o desejo. Garrincha, depois de ter driblado e ultrapassado seu marcador, voltava para driblá-lo mais uma vez, sem nenhuma necessidade. Pelé era mais objetivo, era um atleta disciplinado em seu preparo físico, mas inventava jogadas inesperadas, que não estavam no manual, como sua tentativa frustrada, porém ainda assim bela, na copa de 1970, de fazer um gol de primeira, do meio do campo, rebatendo um tiro-de-meta do adversário.

Como Pelé ou Garrincha, vieram outros, e não só brasileiros, como Maradona que - ao contrário dos manuais - decidiu driblar o time inteiro da Inglaterra antes de fazer o gol mais bonito de todas as copas, em 1986. Também é o caso de Romário que fazia gols de bico, para ganhar tempo, mas desrespeitando o ensino básico de futebol: chute é ou com o peito do pé ou com o lado do pé. E por aí vai. Messi e Neymar são dois exemplos contemporâneos de jogadores assim, mas são exceções ainda mais isoladas do que em outras épocas em que perfilaram, além dos artistas já citados, tantos outros como Puskas, Didi, Cruif, Platini, Bergkamp ou Zidane. 

E mesmo Messi, Cristiano Ronaldo ou Neymar tiveram um treinamento empresarial, viraram produtos do marketing da empresa-futebol, eles próprios lucram com isso. Mesmo como sujeitos criativos foram capturados pela maximização de lucros ao tornarem suas imagens, e não só seu futebol, objetos de consumo (o primeiro como um garoto prodígio, o segundo como um atleta modelo que supera os próprios limites, o terceiro como um bad boy egocêntrico). Apesar de seus eus, Neymar, Cristiano Ronaldo e Messi são criativos - e a psicanálise ensina que é sempre assim, aliás: a força criativa vem do Isso, não do eu.

São justamente estes jogadores que insistem em se posicionar como criativos, como sujeitos que afirmam suas fantasias no jogo de futebol, e no entanto estão se tornando raros pelo modo que se produz jogadores-máquina, quem faz verdadeiramente a diferença, na maior parte das vezes, na definição do resultado! A máquina foi criada para obter um resultado, mas se os dois adversários funcionam como máquinas eficientes, o desempate virá a partir do que subverte a máquina, como já indicava Lacan até mesmo a respeito de um simples jogo de par ou ímpar em seu O seminário livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (LACAN, 1954-55). Em algum nível a torcida faz diferença, em algum nível as condições climáticas, em algum nível o acaso (a dita 'bola-vadia'), mas em um nível muito mais fácil de ser reconhecido, o craque. 

Messi comemorando um gol, pela seleção argentina, contra o México, nesta copa de 2022

Houve um tempo em que o técnico criava um sistema tático para que os grandes artistas pudessem fazer sua obra no campo. Dizem que este foi o maior mérito de Zagallo como treinador da seleção brasileira de 1970. Hoje, muitas vezes, se vê o contrário: se o jogador não é obediente, se não funciona como uma peça na engrenagem já engendrada pelo mister, mesmo que esse jogador seja criativo e/ou decisivo, ele fica de fora do time. Parece ser o caso de Dybala na seleção argentina, que nunca sai do banco de reservas porque diz-se que não pode jogar junto de Messi; parece ser o caso de jogadores impetuosos, mas não adaptados ao sistema de Tite, como Gustavo Scarpa (esse jamais convocado) ou Gabigol, na seleção brasileira - que sequer foram para a copa; preferiu-se ou por jogadores especializados em certas funções ou jogadores que se adaptam a diversas funções como peças de reposição. O que não é controlável é excluído. Isso acontece desde o início da formação dos jogadores - e o futebol fica menos bonito.

Tentou-se controlar a virtude do craque, sua criatividade. O discurso neoliberal, especialmente o das grandes empresas, da administração, do marketing e do coach, buscou ressignificar o termo criatividade tornando-o sinônimo de adaptabilidade às circunstâncias, aos desafios, mas se o craque é alguém criativo não é nesse sentido - é no sentido forte do termo: um craque é criativo se considerarmos criatividade a expressão da espontaneidade do sujeito em existir neste mundo através da expressão de suas fantasias, o que acaba muitas vezes por transformar esse mundo (FREUD, [1907] 1908; WINNICOTT, 1971; CATTAPAN, 2021).

O craque não é definível somente como o jogador habilidoso. É possível adquirir habilidades com muita capacitação, treino, método. Mas o craque é quem utiliza a habilidade, inata ou adquirida, de modo criativo, não previsto pelo código estabelecido - e, por isso, é poético, artístico. O craque é a força que desempata jogos pois se afirma como sujeito numa ordem que tem ojeriza, ironicamente, ao sujeito. Ora o sujeito aparece como ônus para a máquina, ora como bônus, mas ele jamais é a própria máquina, ele é o que escapa a ela, em alguma medida.

Curiosa a situação de um sistema que visa controlar as subjetividades para que elas funcionem de modo objetivo, o que supostamente levaria aos resultados esperados de obtenção de uma dominação sobre o adversário (e vitória de jogos), mas que só consegue, na maioria das vezes, alcançar estes mesmos objetivos quando o previsível é quebrado pela aparição do que não pode ser objetivado: o sujeito do desejo.

Por isso existe a psicanálise, para dar dignidade ao sujeito e à sua criatividade, e não para calá-lo. É sempre bom lembrar que para o psicanalista Donald Winnicott a saúde mental estaria no viver criativo muito mais do que no responder ao mundo como o mundo supostamente pede - a esse segundo modo de funcionamento psíquico, Winnicott chamou de 'Falso Self' (WINNICOTT, 1960), condição ligada, dentre outras coisas, ao sentimento de falta de sentido na própria vida. 

Fica aqui a lembrança de que a vida e o jogo ganham sentido e graça quando o sujeito deposita neles a oportunidade de se afirmar na fantasia. Espero que os técnicos e os professores de futebol lembrem disso. 

Neymar no seu período mais criativo, quando jogava pelo Barcelona, em 2015

Comentários

  1. Interessante como o texto deixa muito claro o modo como a racionalidade mercantil hegemônica impregna o futebol de hoje, silenciando o preciosíssimo espaço da fantasia dos craques em favor do cumprimento da meta coisificada (isso também se vê nas universidades, na saúde, etc). Não há exatamente um coletivo que joga, mas peões, isolados, muito bem pagos para correrem silenciados. VP.

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  2. Sim. O futebol foi "a bola da vez". Mas a situação começou no campo das empresas privadas, depois migrou para as públicas também. Obrigado V.P.

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