Seu nome é Gal

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Gal Costa morreu no dia 9 de novembro aos 77 anos - a melhor e maior cantora do Brasil. Aqui deixo minha homenagem a ela.

Capa do álbum Gal Tropical (Gal COSTA, 1979)

Para minha sensibilidade, houve duas cantoras espetaculares no Brasil. Gal Costa e Cássia Eller. No entanto, por ter morrido muito cedo, Cássia não pôde construir uma carreira com tantos matizes e tido tanta influência como Gal Costa. Cássia tinha um estilo agressivo, irreverente, debochado, impositivo e malandro, já Gal conseguiu construir diversas facetas interligadas ao interpretar diversos gêneros, o que lhe fez, inclusive, se tornar um dos raros casos de artista a ser ouvida por uma gama extremamente variada de brasileiros: nordestinos, 'sudestinos', pobres, ricos, brancos, pretos, cristãos, umbandistas, sofisticados, simples, heterossexuais, gays etc. Num país dividido como o nosso, entre vontade democrática e reação de extrema-direita, Gal é algo raro mas não único, ela é quase uma unanimidade; mesmo com todos sabendo que ela se identificava bem mais com a atitude libertária e progressista, ela é escutada por quase todo mundo - nosso país precisa cultivar gente, coisas e práticas como essa artista, que ainda nos faz sentir unidos, em relação uns com os outros. Famílias que não se falam por política escutam juntas Gal Costa, Tim Maia, Rita Lee...fica a memória de que o laço existe e insiste, e precisamos, a partir dele, tecer costuras mais estreitas de novo ou pela primeira vez.

Além disso tudo, Gal foi tão influente que nós escutamos seu estilo na boca de inúmeras cantoras que vieram depois dela. O legado de Gal está em Marisa Monte, Adriana Calcanhotto, Paula Toller, Vanessa da Matta etc. Por tudo isso e - principalmente - pela beleza que sua voz e sua interpretação impunham à experiência musical, Gal Costa foi e é a maior e melhor cantora do Brasil - e, talvez, tratando-se de música popular, a maior do mundo. 

Quanto às facetas de Gal, quero recuperar o que disse Nelson Motta a respeito de sua voz (com absoluta concordância de Caetano Veloso, ao vivo na Globonews, no dia da morte da artista): "voz de veludo, cristal e labaredas que saía daquela bocona vermelha" (MOTTA, 2022). Gal surgiu, junto de Caetano, dando prosseguimento ao modo de cantar de João Gilberto - delicado, tímido, um pouco melancólico, sussurrante, veludo. Coração vagabundo (VELOSO, 1967) é um ótimo exemplo.  Depois, quando aderiu à Tropicália, surgiu sua voz labareda, gritante e gigante, quente, raivosa e impositiva, semelhante, às vezes, a Janis Joplin, às vezes a Robert Plant, cantor do Led Zeppelin. Divino maravilhoso é o exemplo que imediatamente vem à memória (VELOSO & GIL, 1969). Mas Gal também se impôs como cantora de abrangência maior, popular, ao desenvolver o modo cristal, voz clara, limpa, pura, suave e precisa, charmosa e exata, que se escuta, dentre outras músicas, no sucesso comercial Chuva de prata (WILSON & BASTOS, 1984). 

Gal Costa e Nelson Motta nos anos 80

É preciso dizer ainda que os modos, no caso de Gal, não são fases, mas camadas que vão se acumulando. E aqui surge a participação (pequena) do pensamento psicanalítico para homenagear Gal Costa, pois é de modo semelhante que Freud pensa o que se insiste, por aí, em chamar de desenvolvimento humano. Ao contrário de um pensamento desenvolvimentista que remete a um progresso, uma evolução ascendente, em que se supõe otimistamente que um futuro é necessariamente melhor que um passado - e, assim, fica clara a influência de um certo pensamento histórico novecentista (presente tanto em Hegel [1807], quanto em Comte [1830-42] quanto em Marx e Engels [1848]) -, Freud pensa o desenvolvimento humano de modo muito diferente.

Em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, 1905), Freud nos apresenta fases do desenvolvimento do bebê à vida adulta: em destaque, as fases oral, anal, genital infantil (fálica), a eclosão dos complexos de Édipo e castração, o período de latência, a puberdade e a fase genital adulta. Relacionados a elas, Freud ainda propõe um primeiro momento autoerótico, seguido pela instituição do narcisismo e pela relação objetal adulta. Há quem compreenda esta sequência de fases como um movimento progressivo de ultrapassagem ou superação das fases anteriores e, assim, compreende todo fenômeno psicopatológico seja como uma parada ou retardamento do desenvolvimento ou como uma regressão diante de um impasse.

Porém, não parece ser este o espírito do texto de Freud. Ao contrário, se Freud nos fala de um desenvolvimento da sexualidade infantil é justamente para argumentar que não existe nem no começo, nem no suposto ponto de culminância adulto, algo da ordem de uma pureza ou de uma normalidade sem nenhuma experiência sexual perverso-polimorfa participante. Ao contrário, a dita normalidade é um composto de organizações diversas e a dita psicopatologia é apenas um outro modo de organização. Freud nos mostra neste livro seminal de 1905 - e ainda bastante subversivo nos dias de hoje -, que a constituição de nossa psicossexualidade se dá por soma, por acréscimo e, ao mesmo tempo, por complexificação. Nesse sentido, a concepção freudiana de história individual (e não só a individual, a social também, porém não abordarei o assunto aqui) se aparenta menos com aquela concepção progressiva de história novecentista e mais com a genealogia nietzscheana (NIETZSCHE, 1886), ao menos como Foucault a definiu em "Nietzsche, a genealogia e a história" (FOUCAULT, 1971). 

Caetano Veloso e Gal Costa nos anos 60

Se no início, tendo em vista as condições biológicas (neurológicas e motoras) do bebê, em conjunção com o investimento do Outro humano e sua expectativa de que o bebê se alimente, a boca é tornada a zona erógena privilegiada da experiência humana daquele momento, o que se estabelece é uma organização sexual em torno da boca que cria condições de possibilidade para: introjetar, cuspir, fruir e destruir ao mesmo tempo. Quando as condições neuro-musculares permitem, o Outro transmite suas expectativas de que o bebê controle seus esfíncteres (por exigência cultural, é claro); o Outro demanda um momento e um lugar para a micção e para que se defeque; uma organização anal, portanto, não elimina a oralidade, apenas se soma a ela, criando um fluxo libidinal da boca ao ânus, no qual o erotismo não está somente no engolir ou regurgitar, mas também no prender ou soltar as fezes tendo em vista as cobranças do Outro. Isto torna possível experiências sádicas como reter quando o Outro demanda as fezes ou expelir quando demanda a retenção, bem como reparações da contrariedade à demanda do Outro. Temos uma subjetividade mais complexa, com um repertório mais vasto, onde já há a possibilidade de dar e receber, reter e soltar, dar amor, dar ódio, introjetar, projetar, situar um dentro e um fora etc.

E isso valerá para todas as fases subsequentes. Ou seja, não se trata de superação, mas de complexificação da experiência subjetiva, de ampliação de um repertório de modos de buscar prazer e evitar desprazer. É verdade que o momento edípico-castração é crucial na estruturação das subjetividades ocidentais modernas e contemporâneas, mas isso se dá novamente pela exigência do Outro que o sujeito adentre e habite a norma fálica que costura nossa cultura e impõe uma interpretação de quaisquer outras experiências sexuais a partir de sua referência; por isso a psicopatologia será relacionada à adequação a tal norma. No entanto, mesmo que esta norma sexual seja a modelagem hegemônica, ela é, do mesmo modo como cada organização sexual, uma forma possível, e o mesmo vale para o que os normalizadores chamam de psicopatologia, são modos de nodar, costurar a experiência erótica do sujeito (LACAN, 1975-76). É preciso dizer também que as organizações sexuais citadas, a oral, a anal, a genital infantil, são formas habituais e muito frequentes de construção de uma sexualidade, mas não são as únicas - na vida singular de cada um ou de certos grupos vê-se emergir outras possibilidades de erotismo; como exemplo cito o caso de Elizabeth von R. e seu erotismo da perna (BREUER & FREUD, 1895) ou o caso do fetichista cujo desejo se ligava ao brilho no nariz (FREUD, 1926).

Enfim, trata-se da construção de uma estilística do erotismo e, por extensão, da existência (BIRMAN, 1996). Cada um, numa complexa experimentação de vivências individuais e expectativas e interpretações provindas do Outro, constrói um modo singular de viver sua sexualidade, no qual participam, por soma e pela tecitura de relações várias, as diversas organizações sexuais (oral, anal, fálica etc.) compondo um repertório diverso e interligado à disposição do sujeito. O que alguns tomam por regressão não seria uma involução, mas apenas o uso de algumas modalidades de erotismo não privilegiadas no momento. E assim o sujeito se constitui através de um estilo singular e complexo de viver o erotismo.

Gal Costa e Tom Jobim nos anos 90

Voltemos para Gal Costa. A construção de seu estilo também não aparece como uma superação de estilos. Vê-se isso com clareza, por exemplo, em seu álbum homônimo de 1969, onde coabitam a já mencionada expressão da labareda de Divino maravilhoso com a canção seguinte, a doce e aveludada interpretação de Que pena (Ele já não gosta mais de mim) (BEN, 1969). Novamente, quando Gal já estava estabelecida como desenvolvedora de um estilo cristalino, grava em estilo labareda Brasil (CAZUZA, ISRAEL & ROMERO, 1988) ou em estilo veludo Wave (JOBIM, 1967). Seria violento dizer que Gal regrediu. Faz mais sentido considerar que joga com suas possibilidades, com seu repertório.

Vamos um pouco além. O estilo de Gal não é veludo ou cristal ou labareda. É veludo e cristal e labareda. Se isso faz sentido, eu diria que há duas canções que marcam a singularidade do estilo de Gal Costa de modo muito bonito. Nelas se vê não a passagem de um modo ao outro, mas uma mistura indissociável de elementos do veludo, do cristal e da labareda. Me refiro às canções Meu nome é Gal (R. CARLOS & E. CARLOS, 1979) e "Força estranha (VELOSO, 1978). 

Na primeira, presente de Roberto Carlos e Erasmo Carlos à cantora, mestres em compor canções que agradavam desde a patroa branca e católica à empregada doméstica preta e evangélica, encontramos uma letra que justamente explicita o que eu havia dito no início do texto a respeito de Gal: ela ama igual pretos, brancos, cultos, incultos, religiosos, ateus, de família importante ou não...e talvez por isso seja amada por todos, lembrando que o que une é o amor. Mas escolhi tratar desta canção para comentar que a primeira estrofe é cantada como um veludo em que salta aos poucos, de modo efervescente, excitações de labareda, a segunda estrofe é labareda mas ao mesmo tempo cristalina; numa espécie de continuidade, Gal vai transmutando veludo em labareda, depois em cristal, para ao final da canção a labareda ferver sem deixar o cristal de lado e mantendo no fundo a doçura aveludada que a letra pede.

Gal Costa interpretando Brasil (CAZUZA, ISRAEL & ROMERO, 1988), nos anos 80

Na segunda, a beleza da letra de Caetano Veloso serve de terreno para Gal fazer presente novamente a mistura de veludo, cristal e labareda. Dessa vez não há gritos quentes de labareda, mas a força afirmativa e angustiada, no entanto controlada, contida pela delicadeza e pela tristeza também presentes na melodia e na letra. Mas tudo isso é ordenado pela voz cristalina de Gal que causa na audiência a impressão de que há algo de uma altivez, de uma vitória no canto, da força do canto e da voz sobre a força estranha que a poderia fazer embotar no veludo ou queimar na labareda. Aqui, o cristal serve de força otimista e afirmativa da arte sobre a dor. Por isso me parece a canção mais bonita e comovente interpretada por Gal Costa, de uma beleza que nos faz chorar pela morte mas também pela vida de e em Gal. Difícil não identificar essa canção com a própria obra de Gal, em especial os versos:

"Por isso uma força me leva a cantar

Por isso essa força estranha...

Por isso é que eu canto, não posso parar

Por isso essa voz tamanha" (VELOSO, 1978)

p.s.: Há psicanalistas que gostam de interpretar o significado das obras de arte, no caso dizendo que, seja Força estranha ou, por exemplo, O que será (a flor da pele) (BUARQUE, 1976), remete ou ao desamparo fundamental, ou à angústia diante do Real, ou à pulsão, ou à libido, ou ao desejo ou seja lá o que for. Não considero que este tipo de interpretação sirva para outra coisa senão do que para fechar o problema que a obra de arte coloca, como se a abertura aos diversos significados possíveis, a abertura ao pensamento e ao afeto incomodasse. É uma atitude, a meu ver, antiartística fixar um significado à obra de arte. Prefiro tratar a obra de arte tal como fazem Umberto Eco (1968) e Gilles Deleuze (1969), como um problema que abre questões e não algo que supõe respostas que o encerrem. Por isso não creio que cabe dar um significado às canções interpretadas por Gal, nem mesmo à obra e ao estilo de Gal, cabe apontar a singularidade e originalidade de seu estilo. 

Obrigado Gal Costa.

Gal Costa nos últimos anos

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