O Catar é logo ali...
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Hoje começou uma grande festa mundial, a Copa do Mundo de futebol, no Catar. Mas esta festa já começa marcada por ter sido colocada água no chopp, ou melhor, por não ter chopp na Copa, o que para alguns parece um grande problema. Desde que este país foi escolhido pela FIFA como sede da Copa do Mundo, e novamente agora, quando se inicia a Copa, diversas vozes no chamado mundo ocidental se posicionaram de forma crítica e até mesmo contrária à realização dos jogos naquele país árabe.
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Estádio de Lusail, Lusail, Catar (Norman FOSTER + PARTNERS, 2021) |
Há suspeitas e mesmo acusações de que o sheik Hamad bin Khalifa, monarca absoluto do Catar, tenha 'comprado' a eleição de sua nação como sede do Mundial. As críticas ao país ser um Estado Absolutista, aliás, são fortes. Há incômodo, por parte de muita gente no ocidente, de a Copa do Mundo se realizar em um país onde os operários que ergueram os estádios de futebol da Copa terem trabalhado em condições quase-escravas - inclusive se registram mortes de alguns deles por conta dessas condições precárias de seu ofício. Há ainda a crítica ao cerceamento, controle e subjugação da liberdade das mulheres em fazer uso do próprio corpo e das próprias roupas como bem quiserem, enfim, pela desigualdade política entre homens e mulheres. Claro, há também, no Catar, algo que ofende muitos ocidentais: a homossexualidade é crime, motivo de punição religiosa e estatal, sujeita a castigos e prisão. Encontramos também críticas à proibição do consumo de álcool e da prática do jogo e até mesmo desagrados em relação à proibição catarense ao consumo de carne de porco!
Houve e há incentivos aqui e acolá ao boicote de participar e assistir à Copa do Mundo. Quanto à participação, o boicote não veio - nenhum dos classificados para a Copa marcou posição de não ir e não jogar o torneio. Quanto ao público, saberemos somente após a Copa qual foi a audiência do evento. Posso me enganar, mas creio que a audiência será satisfatória para quem lucra com o evento. Algum cinismo paira no ar...talvez ligado ao petróleo catarense. Houve, todavia, na história, pressões de países ocidentais que geraram efeitos libertários, em certo sentido, como a britânica sobre o Brasil pelo fim da escravidão ou a do ocidente sobre a África do Sul pelo fim do Apartheid. Por outro lado, houve intervenções do mesmo ocidente cuja justificativa era libertária mas que se mostraram o reverso disso, como, por exemplo, a colonização das Américas ou a recente invasão americana e britânica ao Iraque.
Tanques estadunidenses invadindo Bagdá, Iraque, em 2003 |
Sou um homem branco, brasileiro, que acha que é ocidental (não sei se os europeus concordariam comigo). Sei, por conta de nossa história brasileira, o quanto as críticas do ocidente, mesmo que queiram se pautar em valores universais, são eurocêntricas, afinal estes tais valores universais foram inventados pelos próprios europeus. Os valores iluministas, dentre eles os direitos humanos, são ideais que, quando utilizados pelos europeus na lida com outros povos, na prática, se apresentaram como instrumento do imperialismo. No século XIX os europeus julgaram o mundo a partir de seus critérios: os povos escuros, pretos, pardos, vermelhos e amarelos passaram a ser vistos como subdesenvolvidos - em relação ao conceito de desenvolvimento europeu: que, na época, aliás, incluía a capacidade de erguer e fazer se proliferar um maquinal industrial-fabril que, agora no século XXI, as consciências dos próprios europeus vêm dizer que é um gesto subdesenvolvido porque polui e destrói o planeta.
Antes, no século XV, os europeus entraram de cabeça na escravização e exploração de índios e pretos africanos como mão de obra barata para tocar o desenvolvimento das terras conquistadas à força nas Américas e, por consequência, enriquecimento das metrópoles europeias. No século XIX, com a Revolução Industrial correndo na velocidade da Maria-Fumaça, passaram a compreender a escravização como um ataque aos Direitos Humanos e, deste modo, transformaram os escravos em assalariados da ordem capitalista, bem como consumidores de mercadorias.
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Fábricas à meia-noite (Georges SEURAT, 1882-83) |
Esses exemplos me parecem suficientes para, portanto, desconfiarmos de duas coisas: 1) Da verdadeira aderência dos ocidentais a esses valores inventados por eles, os direitos humanos. Parecem ser lembrados, nas relações norte-sul, quando convém bancar o Civilizador dos bárbaros, para melhor dominá-los. 2) Mesmo que acreditassem piamente nos valores criados por eles mesmos, não se pode decretar que tais valores sejam universais, ou, ao decretar, não se pode impô-los a outros povos, a não ser que se queira correr o risco de tornar tais valores libertários no seu oposto: instrumentos de tortura e opressão.
A Organização das Nações Unidas, e também o Comitê Olímpico Internacional e a FIFA querem ser vistos como instituições internacionais de laços e resoluções de conflitos entre países, a primeira através da diplomacia, as outras duas através da sublimação dos conflitos na disputa esportiva. Isso supõe que as diferenças estejam presentes nos encontros entre as nações. Pequenas diferenças, como roupas ou tipos físicos, para grandes diferenças como a organização macropolítica dos países (democracia, autocracia, capitalismo, comunismo, Islã, cristianismo etc.) ou mesmo a micropolítica (Como vivem as mulheres? E os homossexuais? Como atua a polícia? etc.). Se as diferenças não aparecem nesses encontros, o sentido deles se perde e um sinal de alerta acende.
Se as diferenças não podem aparecer é porque, então, se exige de todos a submissão aos mesmos valores, aos mesmos protocolos. A submissão ao Um e a intolerância absoluta com a diferença é uma marca do ocidente ao menos desde que o Império Romano deixou de ser politeísta e se tornou cristão. O monoteísmo - seja ele judaico, cristão ou muçulmano - é intolerante com a diferença: só pode haver um Deus, uma verdade, um código de leis, uma moral...e quem não se submete a Ele, é um pecador, um inimigo, um perigo pois põe em xeque Sua soberania. A cristianização da Europa se deu assim. As Cruzadas tiveram essa causa de fundo. A colonização do resto do mundo encontrou sua maior eficácia na conquista dos corações e mentes através da catequese e da conversão.
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Peter Sloterdijk |
Acontece que o Iluminismo, supostamente, foi a vitória da razão sobre a religião, como defendeu Voltaire (1763). Agora os valores, modernos por isso mesmo, teriam de ser construídos pautados na razão, e não mais na opressão e no obscurantismo. A liberdade guiará o povo! Se seguirmos as reflexões do filósofo Peter Sloterdijk, em sua Crítica da razão cínica (1983), teremos de ser menos otimistas e mais ponderados quanto ao assunto. Na esteira de Kant, Sloterdijk pensa o iluminismo fundamentalmente como a prática da crítica. Quando a crítica para e dá lugar a valores, regularidades, ordens, estabilidades, o que encontramos, de novo, é uma moral imposta.
De certo modo é o que Jacques Lacan mostra a respeito do próprio Kant (LACAN, 1964). Para livrar a Humanidade da opressão dos autocratas e das morais subjugantes, o filósofo setecentista propôs que abracemos um imperativo categórico ético que valha para todos em quaisquer circunstâncias - e assim, a Humanidade viveria em paz e feliz. Ora, Lacan mostra como Kant apenas esconde algo que ainda está presente em seu imperativo categórico - que o sujeito se submete ao discurso e à vontade do Outro. Um Outro goza do assujeitamento de cada um que se conduz a partir de uma regra que não é sua senão através da submissão àquele. Sade revelaria a verdade de Kant, provoca Lacan, pois, em sua A filosofia na alcova (SADE, 1795) apresenta também a proposta de uma regra geral para todos, uma regra que também levaria ao gozo de todos, mas o marquês não tergiversa - ela é imposta por alguém que quer gozar do corpo dos outros. Essa seria a verdade de toda estrutura de poder, de toda moral - mesmo do imperativo categórico kantiano e de toda boa vontade ocidental em criar regras justas para todos.
Portanto, Kant teria duas facetas. Uma, a do crítico, que alimenta um movimento transformador, inquieto, de luta pela liberdade - ela abre o caminho para a escuta, para a troca de ideias, para a conversa. Outra, a de uma razão cínica que se impõe mascarando o quanto pode ser opressiva por se apresentar como a única alternativa, qualquer outra coisa é barbárie, e, assim, ela se propõe como continuidade laica do cristianismo que também se estabelece como única alternativa ao pecado e à maldade. Essa segunda faceta de Kant, tal qual o cristianismo, cala, emudece o outro, não sustenta a diferença como possibilidade potente.
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Quando a paciente Emmy von N. manda Freud calar a boca e escutá-la (BREUER & FREUD, 1895), algo de revolucionário acontece: ele cala a boca e a escuta. Ao escutar o que aquela mulher queria ou sentia necessidade de falar, Freud dava a ela a condução do tratamento. Ele passou a tentar não julgar mais seus pacientes, dar a eles um espaço de fala livre, sem submissão às regras mais básicas de uma conversa comum - a coerência, que se siga uma linha de raciocínio, que o argumento seja consistente. Não! Freud seguiu na direção inversa - ao estabelecer como regra fundamental da psicanálise a associação livre, ele radicalizou a liberdade de expressão do sujeito, pois, ao convidá-lo a dizer tudo que lhe vem à mente, do infame ao moral, do ridículo ao sério, do insignificante ao principal, do erro ao certo, abriu-se a possibilidade de baixar o domínio do eu sobre o discurso e fazer se manifestar o sujeito do Inconsciente com menos dificuldade (FREUD, 1912).
Para que a associação livre do paciente se apresente como manifestação do Inconsciente é preciso que o analista escute. E esta escuta tem como condição, diz Freud, a atenção uniformemente suspensa do psicanalista - também chamada de atenção flutuante (id., ibid.). Ou seja, o analista não seleciona conteúdos, ele não direciona o assunto, não julga, nem hierarquiza o material trazido pelo paciente. Ele escuta tudo o que é dito em sua materialidade, em sua concatenação aparentemente disparatada, das palavras aos ruídos, dos silêncios aos atos. E com isso ele cria condições para que o sujeito se relacione com seu próprio discurso como um Outro (LACAN, 1953-54). O sujeito elaborará sua posição ao falar e enfrentar seu dito, ao criticar sua posição de sujeito em relação ao discurso que profere, ao que afirma, ao que nega. Cabe ao analista intervir para que este processo não pare. Eis a crítica na análise. Se, ao contrário, o analista trabalha apresentando significados como palavras-últimas a respeito da verdade do sujeito, ele estará mais próximo da violência cínica que sempre está rondando as práticas iluministas.
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Caetano Veloso |
Não saber o que o outro vai dizer, vai pensar, nem já saber o significado do que o outro diz é condição para o exercício da psicanálise, para a posição de analista. O saber que se produz na análise não se dá sem o trabalho/elaboração do paciente (FREUD, 1914). Quando tomamos a atitude de já saber sobre o outro, a conversa termina e o juízo decreta o destino daquela relação. Isso impede a elaboração.
Entendo que se tomarmos a escuta psicanalítica como uma potente prática de liberdade, teríamos de dizer que a atitude dos ocidentais em relação aos outros povos, muitas vezes, parece ser traduzida assim: "Não aceito você porque você não está de acordo com os meus valores". É uma versão do eurocentrismo que só perdura quando não há escuta. Quero dizer que o sujeito não se escuta, não escuta o quão parcial e violenta é sua posição, quanto também não escuta o outro como alguém absolutamente diferente, só faz laço com as afinidades, com as semelhanças, mas não com as diferenças. Como Caetano Veloso diria a respeito do choque cultural: "Narciso acha feio o que não é espelho" (VELOSO, 1978). Escutar é o caminho para elaborar algo novo na relação entre as partes e, também, na relação de cada parte consigo mesma.
Não quero negligenciar o quanto, para valores iluministas ocidentais, o modo como, em diversas culturas, os homens tratam as mulheres ou os líderes religiosos - e sua moral religiosa - tratam os fiéis parece algo anacrônico, ofensivo, repugnante até. Mas o que fazer com isso? Essa é a questão. Impor leis diferentes ao país? Não seria algo violento? Fortalecer os oprimidos, naquele país, contra os opressores? Como? Não foi exatamente essa a origem do Talibã e da Al Qaeda? Poderiam me responder: devemos fazer isso sem armas! E eu responderia com outra pergunta: qual a diferença entre essa atitude e a de um catequista?
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Osama bin Laden, inicialmente apoiado pelos EUA contra os invasores soviéticos no Afeganistão, e depois líder da Al Qaeda, organização que tomou os próprios EUA como seu maior inimigo |
Trata-se de um tema dificílimo, um impasse. Creio que a contribuição psicanalítica na lida com esse problema é a de tentar construir condições de possibilidade de escuta da alteridade e, com isso, quem sabe, se elaborar algo de novo a partir do encontro. Precisamos de dispositivos de escuta, conversa e elaboração.
p.s.: Se as críticas ocidentais ao Catar são ambivalentes em seus interesses, o que dizer de críticas particularmente brasileiras àquele país? Aqui também temos maus tratos às mulheres aos montes, somos o número um em feminicídio no mundo. Aqui também tem trabalho que beira a escravidão. Aqui também temos uma elite milionária e um povo miserável. Aqui também temos o crescimento do fundamentalismo religioso e de ataques à democracia, uma quantidade preocupante de manifestações de valores fascistas e moralistas. Teríamos que, com Sloterdijk, falar mesmo em razão cínica. Ou seja, o Catar é logo ali ao lado...
Muito difícil mesmo ouvir o outro através de valores que não são os nossos... E ainda não julga-lo!
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