Mecanismos paranóicos na cultura contemporânea

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Eu já estava preparado para fazer o que prometi: discutir as eleições de 2022 no Brasil. Dedicarei, sim, algumas palavras ao tema, mas considerarei também os dias seguintes ao pleito. Essas eleições presidenciais, cujo resultado se apresentou como o mais apertado desde a redemocratização do país, na década de 1980, se considerarmos que é a primeira vez (desde que há o direito à reeleição) em que o presidente no cargo concorre e perde - mesmo fazendo uso de toda a máquina governamental, do apoio do chamado Centrão, de toda uma rede de propaganda digital (onde se veicula muita mentira, aliás), do apoio descarado de igrejas evangélicas que identificam Jair com o Messias e Luís Inácio com Lúcifer -, foram uma grande vitória de quem sustenta, afirma e luta pela manutenção e aprimoramento da democracia. A frente ampla democrática, representada e capitaneada por Lula encontrou apoio de Guilherme Boulos a João Amoedo, do MST a Armínio Fraga. E venceu.

Lula, entre Geraldo Alckmin e Dilma Rousseff, comemorando sua vitória eleitoral no último domingo

A alegria, o alívio e a esperança em um futuro menos belicoso e mais cidadão desabrocharam imediatamente - e a noite de domingo passado foi de festa para metade do país. O próprio Lula, em seu discurso, pontuou que governará para todos, que não há dois Brasis, mas um só. Todavia, parte da metade que votou em Jair Bolsonaro reagiu inconformada. 

De uma massa de votantes os manifestantes que gritam nas ruas são sempre uma minoria, mas, no caso em questão - o número de votantes no candidato do PL -, há ainda outras coisas a se dizer: a) nem todos são apoiadores de Bolsonaro, muitos têm ódio ao PT (assunto a ser discutido, quem sabe, em outro post), muitos têm o hábito de votar no status quo e, além destes dois tipos de eleitores de Bolsonaro, já começam a se revelar indícios e até provas de compras de votos e de voto coagido (seja pelo patrão, seja pelo líder religioso [e pela comunidade religiosa], seja pelas milícias). 

Ainda assim, nos arrisquemos a ser pessimistas e consideremos que uma imensa quantidade de gente votou sem se sentir coagida, mas por convicção, no candidato que aplaude torturadores e simpatiza com ideais fascistas; isso quer dizer que quase metade dos eleitores brasileiros é fascista? Acho improvável. Certamente foi uma minoria exaltada desta massa - em termos numéricos - que fechou estradas e se manifestou diante dos quartéis pedindo um golpe de Estado, uma intervenção militar (federal), a queda de Lula ou a anulação do resultado das eleições. Mas esse evento numericamente irrisório se torna significativo por alguns motivos: 

Imagem, desta semana, de manifestantes bolsonaristas cantando o Hino Nacional para um pneu : quem sabe seja um modo de começar a aceitar que estão diante de um espaço vazio? 

1) Isso jamais aconteceu antes num processo eleitoral brasileiro, ao menos desde 1989. 2) Esse movimento repete (eu quase disse 'imita') o ocorrido nos Estados Unidos da América: a infame invasão do Capitólio. 3) Tal qual nos Estados Unidos, o movimento não foi espontâneo, mas fomentado e articulado com antecedência nas redes sociais (e no Brasil, aparentemente, com a conivência da direção da Polícia Rodoviária Federal - as investigações a respeito da PRF já se iniciaram). 4) Vários vídeos que circularam na internet mostrando cenas seja dos bloqueios nas estradas, seja dos pedidos de golpe de Estado diante dos quartéis, nos fizeram ver rostos e comportamentos que o bolsonarismo ainda não havia levado às ruas (em massa). Até então, naquelas passeatas e motociatas pela Avenida Paulista e pela Avenida Atlântica, o que se viam eram em geral brancos, em sua maioria homens, adultos e idosos, aparentemente representantes das elites paulistana e carioca. Dessa vez, não. No Twitter, o jornalista Igor Mello registrou imagens, vídeos e um texto descrevendo a diferença que viu nesta semana, na manifestação pedindo golpe em frente ao Panteão Duque de Caxias, no Rio de Janeiro: dessa vez havia famílias de diversas classes sociais, gente pobre e gente rica, gente muito religiosa, pretos e pardos presentes. 5) Além disso, os vídeos de Mello, bem como diversos outros (além de notícias veiculadas pela imprensa tradicional que vão se avolumando), registram cenas difíceis de acreditar, algumas beirando o ridículo (como um grupo cantando o hino nacional para um pneu de caminhão), outras trazendo à tona a violência e o horror atuados por gente do movimento (como um grupo cantando o hino nacional, em Santa Catarina, para um tanque, enquanto fazia a saudação nazista ou como as agressões físicas e assassinatos que têm ocorrido por aí, inclusive de crianças e adolescentes, como ocorreu em Belo Horizonte), mas, de um modo geral, fica a pergunta: como isso foi possível?

Creio que, para responder essa pergunta, precisamos considerar que foi-se criando uma subcultura (nem tenho tanta certeza se é ainda uma subcultura) em que este comportamento é esperado. Dentre os mecanismos formadores desta subcultura, destaco a presença de alguns mecanismos que, do ponto de vista da psicanálise, caracterizam um funcionamento psicótico. Com isso não quero de modo algum dizer que toda aquela gente seja psicótica (embora um bocado dentre eles deve ser, como em qualquer grupo humano), muito menos quero tomar o adjetivo 'psicótico' como sinônimo de psicopatológico, mesmo que na história do século XX tanto a psicanálise, quanto a psicossociologia, a criminologia, a psicologia e, obviamente, a psiquiatria tenham o feito reiteradamente.

Prefiro fazer o movimento contrário, aquele de Freud. Foi Freud quem afirmou que o Inconsciente não era um fenômeno exclusivo da psicopatologia, mas sim geral, de todos os humanos (FREUD, 1900). Foi ele também quem fez o mesmo com as perversões (id., 1905), o narcisismo (id., 1914), a autodestruição (id., 1920) e a crença em delírios (id., 1937). Em suma, Freud, ao estudar o que aparecia de modo claro nas psicopatologias, compreendia o que aparecia de modo mais sutil na dita 'normalidade'. Elencarei a seguir alguns mecanismos psicóticos - e mais especificamente, paranoicos - que estão sendo veiculados de modo a enformar uma certa subcultura. Estes mecanismos precisam ser entendidos como modalidades de defesas dinâmicas contra o mal-estar. 

Manifestantes bolsonaristas, em Santa Catarina, cantando o Hino Nacional, fazendo a saudação nazista e pedindo um golpe militar, nesta semana. 

a) Em "Neurose e Psicose" (id., 1924) e "A perda da realidade na neurose e na psicose" (id., ibid.) Freud esclarece que o principal conflito psíquico que caracteriza a psicose é um conflito entre o eu e a realidade externa. É um mecanismo psicótico se afastar da realidade que, de algum modo, fere o eu narcisicamente, fere o eu e seus ideais. Ainda no estudo que fez da psicose do 'Presidente Schreber' (id., 1911), Freud já indicava que a psicose supõe uma rejeição da realidade, uma Verwerfung, (e Lacan tornou isso um conceito definitório do modo psicótico de negar [LACAN, 1953-54]). A rejeição da realidade indicaria a destruição do registro de algum sinal da realidade que colocaria o narcisismo do indivíduo em cheque.

  - Ora, a subcultura que vemos aparecer rejeita qualquer dado, fato, informação, notícia, teoria, narrativa que venha pôr em crise seus valores, sua visão de mundo que alimenta seu amor-próprio. Por exemplo: "a eleição não pode ter sido legal porque isso vai contra o nosso sentimento de que somos os corretos e vitoriosos, não aceitamos perder", "Querem investigar o presidente Bolsonaro - e seus supostos crimes de rachadinhas - apenas para desestabilizá-lo, ele é honesto e ponto! Chega disso!" ou, claro "Não existem mortes por COVID-19. São caixões sem corpos dentro". É preciso dizer que a rejeição da realidade é instrumentalizada seja como palavra de ordem por formadores de opinião dentro destes grupos ("não leiam notícias dessas mídias, leiam apenas destas daqui"), seja como o próprio funcionamento das chamadas 'bolhas' da internet: seja no Google, no Facebook, no Instagram, no Youtube etc quanto mais acessamos certos conteúdos, mais materiais relacionados a eles recebemos e se não acessamos certos conteúdos, a chance de recebermos material associado a eles se torna mínima...ora, num curto prazo, só receberemos informações que nos agradam - quanto às desagradáveis, elas deixarão, por mágica, de existir! É assim que Freud define o funcionamento do eu-prazer, o eu que não aceita incorporar nada de ruim, um eu que rejeita se submeter ao princípio de realidade (FREUD, 1915, 1925).

b) Ainda nos textos acima mencionados (e em outros), Freud identifica no delírio um modo de reaproximação tipicamente psicótica com a realidade. Em geral, não é comum uma rejeição total e absoluta da realidade, isso resultaria num quadro catatônico (id., 1914). O delírio seria um modo de uso da linguagem como discurso indiscutível, impregnado de certeza, duro, que, apesar das dificuldades que impõe, tece laços com a realidade e, ao mesmo tempo, mantém a rejeição da parte da realidade que ainda abomina. O delírio é uma tecitura de um discurso pautada na afirmação de um desejo a qualquer custo, uma espécie de realização em discurso de um desejo de modo a reescrever a realidade para que o desejo se afirme e, ao mesmo tempo, a rejeição do que põe o delírio em cheque continue a operar.

  - Novamente, a subcultura abraça discursos delirantes que, em parte condicionam a rejeição de parte da realidade e, em parte, são construídos como substitutos à realidade rejeitada. Esses discursos veiculados seja nas redes sociais, seja em sermões religiosos, seja na militância política já ocorrem dentro da bolha que rejeita o contraditório, e, por isso, são a única leitura da realidade aceita como possível. Eles servem, portanto, fundamentalmente para dar sentido e justificar a posição tomada e para o eu continuar a se amar. Por exemplo: "Jair Bolsonaro é o Messias e Lula é o Anticristo" é a crença absoluta de alguns, mesmo que o 'Messias' pregue a tortura, a eliminação dos adversários e o armamento da população, sempre haverá a resposta vaga "Ele sabe o que está fazendo"; ou "Existe uma grande conspiração comunista para dominar o mundo e precisamos nos defender dela" é outra crença só possível depois de se ter rejeitado a realidade de que os únicos países comunistas no mundo atual são os enfraquecidos e decadentes Cuba e Coreia do Norte, o que permite, de modo delirante, sustentar que a França, o Partido Democrata dos EUA, a ONU e a OMS são secretamente controladas pelos conspiradores comunistas.

Edifício-sede da ONU, Nova York (Oscar NIEMEYER & LE CORBUSIER, 1949-52)

c) Freud já sinalizava, também, um mecanismo de defesa tipicamente psicótico: a projeção. Para que o eu permaneça imune ao mal-estar não bastaria a ele rejeitar a realidade, ele precisaria também não identificar em si mesmo nada que o faria deixar de se amar. Como a realidade é rejeitada, se ele projetasse na realidade aquilo que há de ruim em si mesmo, ele o rejeitaria também e, assim, manteria sua imagem salva e íntegra. O resultado é que o eu se identifica com tudo o que é bom e a realidade rejeitada guarda tudo que é mau. A projeção revelaria o desejo inconsciente, porém aparecendo como algo que vem de fora, que vem do outro rejeitado, e não como algo que habita o sujeito.

- Vejamos o que se repete monotonamente nos discursos destes fanáticos neofascistas brasileiros: "o Alexandre de Moraes e o PT querem estabelecer uma ditadura no Brasil", mas quem foi pedir golpe militar foram os bolsonaristas!; o próprio Jair Bolsonaro diz aos quatro ventos que admira a ditadura militar brasileira instaurada em 1964, como também a de Strossner no Paraguai e a de Pinochet no Chile. Novamente, foram bolsonaristas que fizeram a saudação nazista ao cantar o hino nacional brasileiro - e não houve ditadura mais infame na história que aquela de Adolf Hitler. Outro exemplo: Discursos como "A esquerda quer instituir o abuso sexual de crianças, torná-las gays etc" põem na conta da esquerda práticas e costumes que não parecem ser defendidas por nenhuma ideologia, porém são repudiadas por figuras ilustres na extrema-direita ao mesmo tempo em que as revelam como habitando suas fantasias, como o sinistro caso em que o presidente Bolsonaro disse que 'pintou um clima' (sic) entre ele e meninas de 14 anos venezuelanas, ou como a história assumida como verdade pela ministra Damares (sem apresentar provas) de que estavam, no Pará, extraindo dentes de crianças pequenas para facilitar a prática do sexo oral...quem criou esta história não revela outra coisa senão as fantasias que habitam sua mente! É nesse sentido que, em psicanálise, se pode dizer que mesmo quando mentimos dizemos a verdade.

d) Lacan contribuiu de modo crucial com a teoria psicanalítica das psicoses ao esclarecer que a rejeição da realidade (mencionada no ítem 'a', mais acima) precisaria de um complemento conceitual. Essa rejeição é também, por ele, chamada de foraclusão (LACAN, 1956) - ou seja, de inclusão fora...fora do que? Do campo simbólico, ou seja do campo discursivo que orienta e estabelece uma cultura. Lacan vai além e diz que o que é foracluído é o significante Nome-do-Pai. O que seria isso? Um modo de responder a essa pergunta seria lembrar o mito fundador da nossa civilização, segundo Freud (FREUD, 1912-13), e que Joel Birman interpreta como mito fundador da cultura moderna (BIRMAN, 2006): o mito segundo o qual os filhos teriam se reunido para assassinar o pai da horda primeva de humanos, para, em seguida, terem o devorado num banquete canibal que resultaria no seguinte: cada filho guardaria uma parte do pai em si mesmo, cada filho se identificaria ao pai, mas nenhum seria igual a ele e, por amor ao pai, cada um deles abdicaria de ocupar seu lugar, ou seja, cada um internalizaria a interdição de possuir a mãe e as irmãs como objeto de seu gozo - cada um seria marcado pela castração, por uma ferida narcísica indelével. O que restaria do pai morto seria seu nome como referência (LACAN, 1964): o Nome-do-Pai é um nome, um significante, e um significante é a morte da coisa (id., 1953); o Nome-do-Pai seria, portanto, ao mesmo tempo, crítica e continuidade à cultura machista e falocêntrica - como a nossa -, pois o significante marcaria, ao mesmo tempo, nossa identificação com esta cultura, mas, ao mesmo tempo, indicaria que o Pai está morto, que ele restou como um nome, um mero significante, que não só o sujeito é castrado, como o Pai também é barrado, uma vez que está morto. Se o Nome-do-Pai é um significante, um nome e não uma coisa, o campo simbólico é inconsistente.

  Internalizar o Nome-do-Pai seria internalizar a morte do Pai, a morte do Rei, a morte de Deus que Nietzsche formulou como acontecimento marcante da modernidade (NIETZSCHE, 1886). Não é por acaso que, para Freud, as religiões que, em seu tempo, se adaptaram à modernidade foram religiões em que se encena a morte de Deus/Líder/Pai (no cristianismo com o Calvário e no judaísmo com a amalgamação de dois Moisés, onde um segundo Moisés tenta restabelecer o legado de um primeiro Moisés derrubado por seus seguidores [FREUD, 1938]). Se Deus está morto, resta aos modernos utilizar a ciência (que é caracterizada por Freud como saber inconclusivo, parcial, criticável, exatamente porque se pauta no princípio de realidade [FREUD, 1927]) como modo de se situar e dar sentido ao mundo e à existência. Até mesmo as querelas entre religiões teriam de se submeter à razão crítica e refletida que se desenvolve ao lado da ciência (VOLTAIRE, 1764). A experiência religiosa seria, desse modo inibida, laicizada, desencantada, como se vê no surgimento de um personagem como Benjamin Franklin (WEBER, 1908).

Benjamin Franklin (Joseph Siffred DUPLESSIS, 1778)

  Ora, foracluir o Nome-do-Pai seria, ao contrário, um modo de eliminar o registro da morte de Deus. Nosso Senhor não estaria morto, a ciência seria um assassino de Deus - seria preciso rejeitá-la -, a crítica seria monstruosa, coisa do Diabo. Deus seria um poder supremo e, ao mesmo tempo, seria impossível de se utilizar de recursos simbólicos para se relacionar com ele, uma vez que seria uma potência gozosa infensa a negociações ou pactos. O que estaria em ação não seria um retorno ao pré-moderno, pois a marca da modernidade não se apaga por vontade, melhor seria chamarmos de uma reação antimoderna, identificando modernidade a crítica e ciência que, como lembra Freud, com Copérnico, Darwin e ele mesmo, trouxeram três grandes feridas narcísicas à humanidade: o homem não é o centro do universo, não é uma espécie tão diferente assim dos símios e o eu não é senhor nem mesmo em sua própria casa (FREUD, 1917). Se em suas primeiras reflexões sobre o tema Freud aproximou a experiência religiosa da neurose obsessiva (FREUD, 1907), o que se viu no desenvolvimento de sua obra foi destacar o quanto há de parentesco entre religião e psicose: ambas são profundas rejeições da realidade (a religião rejeitaria, por exemplo, a morte) e pela substituição dela por um discurso delirante inquestionável (id., 1912-13, 1927, 1937).

  - Vê-se na extrema-direita brasileira a emergência vigorosa de um fundamentalismo cristão neopentecostal que, em alguns casos, parece foracluir o Nome-do-Pai. Por exemplo, quando se vociferava que não se deve representar Jesus na cruz, há um certo tempo, se explicava isso afirmando a iconoclastia protestante, o desprezo pela adoração de imagens, pois o que deveria ser verdadeiramente amado seria Deus como nome sem imagem, o que se podia depreender não era a foraclusão do Nome-do-Pai, mas, muito pelo contrário, a absoluta adoração da figura do Pai Simbólico (um mero significante, um mero lugar quase vazio); mas, de uns tempos para cá, outro motivo para não se representar Jesus na cruz surgiu (motivo inclusive para se pedir a demolição do monumento Cristo Redentor no morro do Corcovado!): diz-se por aí, agora, que não se deve representar Jesus na cruz porque Ele não morreu, critica-se os católicos por adorarem um cadáver, mas o Jesus vivo é que é o verdadeiro Deus. Aqui a morte de Deus é rejeitada - Ele não é um significante, Ele é a coisa. Tomar o discurso religioso como a palavra de Deus viva, não como uma referência simbólica - enfim, o fundamentalismo religioso - pode muitas vezes ser compreendido como uma abolição da realidade moderna, tornando o indivíduo mero objeto do gozo de Deus diante de um mundo externo caótico e incompreensível. Nesse modo de viver a experiência religiosa, o texto religioso funciona como delírio compartilhado que perdura como única verdade possível e inquestionável - qualquer crítica poria o Deus vivo em risco de morrer, por um lado, e, por outro, poria o questionador em risco de ser brutalmente violentado pelo próprio Deus (ou pelo Diabo). É nesse contexto que o Deus tirânico do Velho Testamento é relembrado como ameaça àqueles que questionam o bondoso Jesus do Novo Testamento.

  Novamente seria preciso dizer que a censura a respeito de onde colher informações é importante, mas no caso, aqui, a pregação doutrinária por muitos anos parece demonstrar sua força. Restaria, para concluir, por hoje, a pergunta: Mas por que tanta gente escolhe rejeitar tanto a realidade externa hoje em dia?

Suspeito que isso se deve a outra doutrinação: a neoliberal. Nela, se o indivíduo fracassa em enriquecer, em prosperar econômica e socialmente, isso se daria pela sua incompetência em gerir sua própria empresa que, no caso, é ele próprio (FOUCAULT, 1978-79). Entrar em comunidades que nos protegem de fracassarmos é um modo de proteção contra o perigo de virar refugo da ordem neoliberal. Mas as comunidades neofascistas não criticam a ordem neoliberal, apenas aparelham indivíduos a sobreviver nela; elas ainda exaltam o individualismo, a teologia da prosperidade, o ideal de si como um empreendedor de sucesso, apenas admitindo minimamente o óbvio: somos dependentes de outros humanos. Elas apenas veiculam discursos que explicam o fracasso não mais como um fracasso individual, mas como um fracasso causado pelo inimigo, conspirador, mau e comunista. Ainda se pautam em fracasso e sucesso, ainda tentam individualizar o fracasso e ainda estão comprometidas em fazer do eu uma empresa de sucesso.

Eles estariam parcialmente certos, pois um fracasso nunca é somente de um indivíduo, mas também de uma comunidade em não ser um ambiente propício para aquele indivíduo. Ou seja: para criticar o neoliberalismo e o neofascismo é preciso que a democracia seja comunitária. É na experiência comunitária como lugar de troca de afetos, de hábitos e habitação, é que é possível estabelecer raízes democráticas que nos protejam de sectarismos movidos por mecanismos paranoicos e paranoides, psicóticos e psicotizantes. 

Mãos à obra comunitária, então!

Cristo Redentor, Rio de Janeiro (Paul LANDOWSKI & Carlos OSWALD, 1920-22)

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