Meloni e O Leopardo

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Costumo fazer minhas postagens nos finais de semana. Esta é minha última postagem antes do dia da votação no segundo turno das eleições para governadores e presidente do Brasil de 2022 porque, não importa qual seja o resultado, não creio que estarei em condições de escrever neste blog domingo que vem à noite. Será preciso um mínimo de distanciamento temporal para elaborar o que é que venha a acontecer.

No entanto, não quero também me abster de discutir o momento político que vivemos. Minha decisão é comentar a consolidação de um governo de extrema-direita, simpatizante do passado fascista, exatamente na terra onde o fascismo foi inventado - a Itália. Mais que isso, quero comentar um fato paradoxal: a Itália nunca teve uma primeira-ministra mulher...e agora tem, Giorgia Meloni, uma mulher aparentemente avessa a qualquer discurso feminista ou mesmo de empoderamento feminino.

Giorgia Meloni acompanhada de seu apoiador, Silvio Berlusconi

Meloni é mulher, obviamente, tal como, na França, a principal figura da extrema-direita, também é; me refiro a Marine Le Pen, filha de Jean-Marie Le Pen que se tornou maior em termos de capital político que o próprio pai. Se Le Pen não chegou ao posto mais alto do poder na França, Meloni conseguiu tal proeza. Como podemos entender essa situação curiosa, a extrema-direita fascista, machista e patriarcal, ter como sua principal personagem uma mulher? Creio que o conceito freudiano de formação de compromisso pode nos ajudar a interpretar essa particularidade da extrema-direita contemporânea.

Jacques Lacan deu um nome para os diversos fenômenos estranhos da conduta humana em que Freud pôde escutar o Inconsciente: formações do Inconsciente (LACAN, 1957-58). Seriam formações do Inconsciente os sintomas neuróticos (FREUD, 1895), os sonhos (id, 1900), os atos falhos (id, 1901), os chistes (id, 1905) e até mesmo parte da própria dinâmica da transferência, ou seja, do tipo de relação que se desenvolve entre paciente e analista, na qual o paciente atua fantasias inconscientes na sessão de análise sem se dar conta (id, 1912). 

No que diz respeito às formações do inconsciente acima listadas, Freud as compreende não como irrupções puras do material inconsciente na vida consciente, mas, justamente, como formações de compromisso. Tal termo quer dizer o seguinte: há um conflito entre os desejos inconscientes e a imagem de si que o eu quer preservar; aliás, pode-se dizer que há desejos que permanecem inconscientes exatamente porque o eu quer preservar certa imagem de si mesmo. Ele recalca - ou seja, esquece, não quer saber, pressiona ao esquecimento consciente - certas lembranças, ideias ou fantasias que manchariam a imagem de si a ser preservada. 

Marine Le Pen e seu pai, Jean-Marie

Aqui três observações se fazem importantes:

 1) O eu quer manter uma certa imagem de si a todo custo porque esta imagem é objeto de amor, carinho e amparo por parte de outros humanos, em particular, daqueles de quem mais se espera a proteção contra o desamparo fundamental, condição em que viemos ao mundo - desamparo diante da realidade externa, vivida como potencial (e muitas vezes real) fonte de desprazer e angústia, bem como desamparo diante das próprias pulsões que emergem da experiência corporal, excitações as quais não sabemos descarregar, senão sob orientação, aprendizado, imitação do outro humano (id., 1926).

2) O recalcamento é explicado por Freud como uma desvinculação forçada de uma ideia e um afeto. A ideia é tornada inconsciente e o afeto encontra um destino seja no corpo, no pensamento ou é ligado a um objeto externo, quando o recalcamento é bem-sucedido (id., 1915). Trata-se de um mecanismo de defesa do aparelho psíquico contra o desprazer - ou seja, age em nome do princípio do prazer. Ao menos do prazer de manter uma imagem de si como objeto que supostamente garante o amparo e o amor do Outro: a ideia a que o desprazer estava ligada é esquecida e o afeto desprazeroso encontra um destino distante da imagem preservada do eu. 

3) Entretanto, ocorre, às vezes, de o recalcamento ser malsucedido. Isso quer dizer que a ideia impregnada de desejo escondida no Inconsciente assedia o sistema Pré-Consciente/Consciente com tamanha intensidade que parece que irromperá novamente no eu. Uma medida desesperada do eu para ainda preservar sua imagem é fazer concessões, fazer um compromisso com o Inconsciente. As formações do Inconsciente são, assim, formações de compromisso entre o desejo inconsciente que pressiona por chegar ao aparelho motor sob o controle do eu, por um lado, e o esforço do eu de continuar a conservar uma imagem a ser amada pelo Outro. O resultado será o seguinte: o desejo inconsciente emergirá no eu, mas na condição de se manifestar distorcido, disfarçado, irreconhecível, como uma figura estranha e incômoda. É o caso dos sintomas neuróticos, dos sonhos, dos atos falhos etc.

Giuseppe Tomasi di Lampedusa 

Portanto, o uso que Freud faz do termo formação de compromisso se aplica fundamentalmente a uma espécie de tentativa de balanceamento, por parte do eu (ou seja, da instância que quer ser amada), das pressões do Inconsciente com sua insistência em se preservar como objeto identificável de amor, mesmo tendo de aceitar um corpo estranho, um sacrifício de gozo, como solução de momento.

De certo modo, esse mecanismo é expresso na famosa frase 'se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude', dita pelo personagem Don Fabrizio Salina, no romance O leopardo (1958) do escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa que, aliás, em 1963, foi adaptado magistralmente para o cinema por Luchino Visconti (1963), com Burt Lancaster interpretando aquele personagem. É preciso contextualizar a frase famosa do romance de Lampedusa: 

Tudo se passa na segunda metade do século XIX, na Sicília dos tempos de unificação da Itália, Don Fabrizio Salina é o mais poderoso nobre local, herdeiro da história, posses e respeito de incontáveis gerações de senhores feudais, e se dá conta de que a unificação da Itália, movimento fundamentalmente liberal-burguês, é o sinal da iminente decadência ou mesmo derrocada de seu poder e de seus descendentes caso se deixe os eventos seguirem o fluxo iniciado. Como salvação possível para o poder, fortuna e glória de sua família, o já idoso Don Fabrizio decide casar seu sobrinho com uma jovem e bela pequeno-burguesa chucra, filha do futuro prefeito, homem de negócios sem nenhuma educação refinada. Essa seria a medida desesperada para manter ainda alguma imagem de poder, mesmo que uma concessão tenha sido feito ao corpo estranho, à burguesia: eis a mesma estrutura da formação de compromisso freudiana, porém no campo da política. Temos visto esse tipo de formação de compromisso no campo da reação política: aliam-se defensores da nobreza, da monarquia, do Antigo Regime com burgueses ávidos de sustentação moral para seus negócios. 

Cartaz do filme O leopardo (Luchino VISCONTI, 1963)

Giorgia Meloni também é uma formação de compromisso. A extrema-direita, num mundo no qual a esquerda tem lutado pelo empoderamento feminino e a direita liberal pela transformação de cada um - não importa o gênero - em um empreendedor de si, precisou aceitar uma face feminina. É um modo de mostrar que 'se adaptou aos novos tempos', que parece progressista, mas este objeto incômodo - a mulher - é aceito somente na condição de não incomodar o que realmente importa - a imagem que deve ser preservada: a de um mundo no qual a hierarquia social tem a figura do falicismo patriarcal branco e europeu como seu ápice. Meloni e Le Pen são mulheres que assumem, reiteram publicamente, a norma fálica e o domínio patriarcal. Marine reitera que é filha de Jean-Marie, e faz tudo em nome do pai ou da pátria. Meloni declara aos quatro ventos que reverencia os falecidos papa João Paulo II e presidente estadunidense Ronald Reagan como seus mestres - e, claro, nas sombras de seu discurso, sabemos que o fantasma de Benito Mussolini volta a assombrar o Quirinal.

O desejo de casar o neoliberalismo burguês de Reagan com o catolicismo conservador de João Paulo II é bem claro quanto a como o neofascismo replica a famosa frase de O leopardo: muda-se em direção ao neoliberalismo como concessão ou talvez contrapeso de manutenção de uma ordem hierárquica pesada, autoritária e que, justamente, se antepõe à fantasia de que com todos sendo empreendedores de si, haveria uma competição aberta no mercado, o sonho liberal realizado. A manutenção de uma estrutura de poder patriarcal, racista, misógina, nacionalista e ultra religiosa guarda modos de seleção entre os competidores que tem por efeito exatamente impedir a competição entre iguais - não haveria condições iguais, mas privilégios garantidos aos Don Fabrizios de hoje.

De certo modo, o economista Thomas Piketty já denunciava, em 2013, no magistral O capital no século XXI, o quanto, por mais mudanças que tenham ocorrido, algo não mudou do século XVIII para hoje em dia: o capital ainda é, no longo prazo, primordialmente, acumulado pelos rentistas, por quem tem - em última instância - terras, propriedades. Ele não muda de mãos, salvo exceções insignificantes no que diz respeito ao montante acumulado e ao tempo de preservação da riqueza. Ao contrário, ele cada vez mais se acumula nas mãos  dessa elite. Piketty põe mesmo em questão o tema da herança de bens como uma instituição que preserva o poder e garante a inequidade na concorrência capitalista. Em suma, poderíamos dizer que Piketty, num caminho diferente, mas que concorda com as impressões de Norbert Elias em O processo civilizador 2: formação do Estado e civilização (1939) e que ecoa a famosa frase de Lampedusa (da qual Meloni é a atual encenação), acusa o capitalismo de nunca ter rompido com a estrutura feudal, nobiliária, hierárquica, patriarcal e machista de poder. Ao contrário, o poder não quer, de verdade, uma sociedade unicamente capitalista - ou seja, uma sociedade de pura competição de produtores-comerciantes em nome da acumulação individual de capital. Os poderosos não querem nada disso porque vivem melhor da mentira desta promessa; querem manter a injustiça na base da competição - ou melhor, querem anular a competição.

Por isso ninguém mexe na instituição da herança. Don Fabrizio ainda precisa garantir o poder para seu sobrinho. O capitalismo como o conhecemos - incluindo sua versão neoliberal-neofascista - é uma formação de compromisso com a estrutura feudal.

Alain Delon e Burt Lancaster em cena de  O leopardo (Luchino VISCONTI, 1963)

 Acontece que esta estrutura não é só econômica, ela inclui costumes, hábitos, valores, práticas que sustentam a imagem da hierarquia social pautada no homem branco europeu. A religião e seu reencantamento do mundo, reação ou resistência à modernidade, hoje, continua sendo o meio mais eficaz de difundir na sociedade esta imagem do macrocosmo político, tornado inquestionável.

No microcosmo dos pacientes de psicanálise, também se vê o mesmo conflito e tentativa de fazer uma imagem perdurar. Através de suas formações de compromisso entre desejos que insistem por se afirmar (desejos acéfalos, imajados através de pulsões parciais, disruptivos em relação à ordem egóica, anárquicos, que se direcionam apenas por uma vontade de gozar não toda capturada pela norma fálica, que apontam para outra coisa [LACAN, 1957-58]) e uma estrutura hierárquica com a qual o eu se identifica, que o sustenta e a qual ele sustenta, o eu e sua identidade de homem ou mulher de bem, imagem que reflete, em última instância, o olhar e a vontade de Deus-Pai.

A abertura às pulsões parciais e aos desejos inconscientes se oporia ao fechamento no falo; por isso um psicanalista como Joel Birman (BIRMAN, 1998), inspirado pelos últimos textos de Freud sobre o assunto (FREUD, 1932, 1933, 1937), associa aquela abertura à experiência da feminilidade.

Giorgia Meloni e Marine Le Pen são, assim, formações de compromisso entre a potência disruptiva da feminilidade e a ordem falo-patriarcal. O que sobra, no entanto, desta mistura são mulheres desfeminadas, mulheres falo-patriarcais, das quais nada, senão a aparência, se relaciona à abertura e ao desejo.

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