Marcas diante das quais não se pode recuar
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Por ora gostaria de comentar a arte de um pintor estadunidense, expressionista abstrato: o radicado novaiorquino Franz Kline cujo apogeu de seus trabalhos data dos anos 1940 e 1950.
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Sabra (Franz KLINE, 1966) |
Kline fez parte do mesmo movimento que grandes nomes como Jackson Pollock e Mark Rothko, o expressionismo abstrato, o primeiro movimento de vanguarda nas artes plásticas cujo epicentro foram os Estados Unidos da América. Os anos 1940 vêem, com a ascensão do nazifascismo e da eclosão da Segunda Guerra Mundial em solo europeu, a vanguarda artística mudar-se para o outro lado do Atlântico pela primeira vez na história. O que corresponde não somente com a mudança de cenário para as vanguardas artísticas, como também à ocupação, por parte dos Estados Unidos, da dianteira no campo das potências econômicas e políticas do mundo desde então. O que serve de lembrete, aliás, a respeito do quanto as artes fervilham onde o poder está: seja para reiterá-lo como para criticá-lo. No caso de Kline não é muito claro qual sua posição em relação ao poder da águia americana, mas certamente sua obra pode ser compreendida como marcada pelos horrores da guerra. Este pintor, apesar de menos conhecido que Pollock - e suas obras extásicas - ou Rothko - e suas obras etéreas -, tem uma importância grande em, através da abstração, registrar a época em que vivia.
Os quadros de Kline foram, tal como os de Pollock, criados através de gestos irruptivos. Mas, enquanto as obras do segundo mostravam uma espécie de escrita fluida, um transe, uma dança complexa sincopada e multicolor, as do segundo, ao menos as mais conhecidas, parecem mostrar algo diverso. Não continuarei a comentar o trabalho de Pollock, já o fiz em outro texto deste blog.
Ao mesmo tempo em que os quadros de Kline parecem registrar um ataque, uma violência brutal, preto no branco (quase toda sua obra é literalmente feita de tintas preta e branca sobre a tela), algo diante do que temos de nos haver, sem escapatória, o que é impossível de não relacionar com o morticínio que marcou o mundo daqueles tempos, evocam, ao mesmo tempo, traços da escrita chinesa. Na psicanálise foram desenvolvidas algumas ideias que parecem se conjugar com a obra de Kline: me refiro aos conceitos de marcas do trauma e traço unário.
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Contra-forte (Franz KLINE, 1956) |
Ainda em 1897, numa carta trocada com seu amigo Wilhelm Fliess, registrada como "Carta 52", Freud esboçava um modelo tópico de aparelho psíquico no qual se concatenavam os registros mnêmicos em uma certa ordem. Antes de tudo, na hipótese apresentada, estes registros mnêmicos são considerados traços; além disso, eles estariam sujeitos, de tempos em tempos, a rearranjos segundo novas circunstâncias, a retranscrições, poder-se-ia dizer. O modelo freudiano da ocasião supunha cinco etapas diferentes, numa progressão ascendente possível, que iria desde o primeiro - as percepções, nas quais, a rigor, nada se registra, mas que é experimentada como uma excitação, até a consciência, na qual também nada se registra, mas apenas se foca num material já registrado. As três etapas intermediárias é que diferenciam três modos de registro mnêmico da experiência.
Os tais três modos de registrar seriam; a) as indicações ou índices de percepção que se dispõem conforme associações por simultaneidade, ou seja, não se relacionam temporalmente, seu tempo é o imediato, presente, indicam uma imagem que se repete; b) a inconsciência (que mais tarde Freud renomeará de Inconsciente), que guarda lembranças que Freud chama de conceituais, ou seja, nas quais nexos diversos, toda uma rede interpretativa e associativa se liga às representações; e c) a pré-consciência (mais tarde, o Pré-Consciente), que Freud relaciona nesse texto ao nosso eu reconhecido, ou seja, àquelas lembranças com que nos identificamos, sintônicas à imagem que queremos ver de nós mesmos - e, por isso, acessíveis à consciência. Em comparação com os textos psicanalíticos posteriores de Freud, como, por exemplo, A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900), o que há de mais original neste esboço que se encontra na "Carta 52" são as indicações de percepção. Elas parecem indicar um modo de marcar traços mnêmicos que não se associam à cadeia inconsciente, são anteriores ao próprio Inconsciente.
Pois bem, o tema de traços mnêmicos que não formam cadeia psíquica retornará quando Freud se dedicar a pensar as neuroses traumáticas em 1920. Freud passa a pensar que o trauma tem o efeito de uma violenta excitação que o aparelho psíquico não foi capaz de assimilar, de associar à sua rede de representações psíquicas. Não foi possível criar sentido, nexo, para alguma experiência; o aparelho psíquico foi pego de surpresa sem ter recursos simbólicos para significar e erotizar algo que resta, que permanece como violento e excessivo. Mas Freud lembra também que o traumatizado repete compulsivamente em sua mente, em seu corpo e em sua conduta a cena que convencionou-se chamar de traumática. Ela se impõe opressivamente, os sonhos traumáticos repetem a cena terrível e violenta que o sujeito quereria esquecer, por exemplo. A cena é incontornável, não se desenvolveu defesas eficazes para destituí-la de seu efeito danoso. Pois bem, essa cena que se impõe e não se associa à cadeia de representações poderia ser teorizada como uma indicação de percepção, o que recuperaria a hipótese do esboço de 1897.
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Mahoning (Franz KLINE, 1951) |
O traumático se impõe, assim, como uma marca violenta e inescapável. É preciso vê-la, não desviar o olhar e enfrentá-la para se elaborá-la. Poder-se-ia pensar que a obra de Kline, de certo modo, tem esse efeito. Cada pintura de Kline não mostra uma representação, mas, sim, um índice de percepção da experiência aterradora - quem sabe da guerra, quem sabe da opressão nazifascista, quem sabe do que mais?...e mais ainda: na medida em que cada quadro de Kline, ao mesmo tempo, lembra a escrita chinesa, nos lembra duas outras coisas valiosas:
1) o registro violento, a marca do trauma, é já a possibilidade do início de uma inscrição psíquica, ela é ao mesmo tempo condição de uma retranscrição para a cadeia associativa inconsciente, como ela própria já é um traço, um registro mínimo, basal, uma ossatura simbólica - é a isso que Jacques Lacan faz menção quando propõe o termo traço unário: um mínimo de registro simbólico, um mero traço, que por ser traço indica-se como uma unidade; porém não unidade no sentido de formação de um todo, de um conjunto fechado, mas unidade como primeiro índice de uma contagem, o um que vem antes do dois, do três, do quatro etc. Um traço unário não é um significante pois um significante pressupõe uma cadeia de significantes; o traço unário é anterior à cadeia, mas, ao mesmo tempo, é condição da escrita da cadeia ao ser associado numa série.
2) a escrita é violenta, ela é marcação de sulcos numa superfície. Dito de outro modo, escrever simbolicamente não é se opor à força violenta do trauma, do real; ao contrário, é utilizar daquela força e lhe dar destinos, derivas, percursos que servem de força necessária para a elaboração. É o que outro modelo freudiano de aparelho psíquico, o do Projeto para uma psicologia científica (FREUD, 1895), já previa, modelo que inspirou o texto "Freud e a cena da escritura" de Jacques Derrida (1967), que, por sua vez parece ter inspirado Lacan a escrever "Lituraterra" (1971) que, como o nome já indica, pensa a escrita como o trabalho do lavrador com o arado. Quando Lacan buscou pensar as relações entre Simbólico, Real e Imaginário através do recurso do nó borromeano, localizou o traço unário na interseção do Simbólico com o Real (LACAN, 1975-76) - na medida em que o traço unário ainda não forma cadeia, na medida em que é marca do trauma, em que remete a um índice simbólico ainda brutalmente afetado pelo excesso do real, em que ele próprio, como marca violenta, é real, é aquele traço - é aquele troço.
Que Franz Kline e os psicanalistas, então, nos lembrem que as cenas traumáticas não serão esquecidas e que tentar esquecê-las ou desviar o olhar é perda de tempo e saúde. O real se impõe. O melhor a fazer é, a partir delas, começar a escrever algo que destine o excesso excitatório para vias mais elaboradas, que sentidos sejam dados à violência, que o impacto da cena sirva de força para traçarmos um percurso menos doloroso e mais proveitoso.
Por hoje é só. É o que foi possível escrever...
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Chefe (Franz KLINE, 1950) |
Texto Marcante!
ResponderExcluirGratidão