Deus e o Diabo na Terra do Neofascismo
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Nos últimos dias, o Diabo foi convocado, no Brasil, diversas vezes. O discurso político de extrema-direita adotou o tom agressivo, obscurantista, e, no entanto, aparentemente eficaz do medo do Diabo. Ao associar qualquer ideia, pessoa ou prática, não importa de que espectro político for, ao Diabo, convence-se muita gente a se afastar daquela figura ou prática - me refiro aos muito religiosos, claro. Seja um candidato ou partido político, uma ideologia, uma prática artística, uma atividade lúdica, uma religião...tem sido sempre eficaz, quando se quer provocar o afastamento de boa parte da sociedade em relação àqueles, de sugerir ou mesmo afirmar que eles têm relações com o Diabo.
Uma política, uma moral e mesmo uma estética do Diabo se erigem, novamente, na civilização ocidental. Esta mesma civilização criou o Diabo, ela mesma o colocou no armário. E ela mesma o convoca de novo a perambular por aí.
Em um belo texto, "O que é autoridade?" (1954), Hannah Arendt, dentre outros temas, discute uma teoria, uma política e, talvez, uma estética do Diabo. Não é de modo algum um artigo datado, mesmo tendo sido escrito há tanto tempo - e isso porque foi escrito para discutir o problema do totalitarismo, que volta a nos assombrar agora. Arendt tenta marcar a diferença entre um poder que se exerce através da violência da referência à autoridade, que não tem força coercitiva, não é uma lei, mas não é uma mera opinião - a autoridade aprova ou desaprova, serve de parâmetro, mas não de obrigação.
O Diabo, detalhe do Juízo Final (GIOTTO da Bondone, 1303), Capela degli Scrovegni, Pádua |
A autoridade, nos conta Arendt, era uma ideia e uma prática romanas. Autoridade era a virtude dos antepassados, maiores, com mais grandeza e brilho que os atuais. Estes últimos visam, por sua vez, através das referências àqueles, se orientarem na existência, através da preservação do que se estabeleceu por aqueles. Roma era, assim, uma sociedade estruturalmente conservadora. Já o poder não necessariamente; é assim que Arendt interpreta a famosa máxima de Cícero - o poder reside no povo, a autoridade no senado (CÍCERO, 51 a.c.).
A grande mudança que levou o Império politeísta romano a se transmutar num Império cristão foi verdadeiramente uma revolução, na medida em que alterou estruturalmente as relações entre autoridade e poder. A autoridade passou das mãos do senado, representante da memória das famílias fundantes dessa figura sagrada - a cidade de Roma - para as mãos da Igreja que sacraliza, dessa vez, o advento do Cristo. Se a sociedade romana era conservadora pois se organizava para conservar o estabelecido e estar à altura dos gigantes do passado, a sociedade cristã é ambígua quanto a esse assunto.
O cristianismo obviamente conserva o evento passado da Paixão de Cristo como referência moral, mas ao estabelecer a injunção de imitar Cristo, também aponta para um presente, já que Jesus é o Deus do presente e Ele observa e julga nossa conduta. E Michel Foucault lembra que o cristianismo também se orienta como preocupação com o futuro: com a salvação, que é conquistada ou não tendo em vista o juízo que Deus faz e fará da passagem de cada um de nós por este mundo (FOUCAULT, 1980-81).
Hannah Arendt |
Além desta grande mudança no que concerne à autoridade, vale lembrar que o poder que já tinha saído realmente das mãos do povo há muito tempo, quando a república romana ruiu diante da ditadura e do Império, com o progresso do cristianismo para além da queda de Roma, passou para o domínio do príncipe. Porém, o poder do príncipe não é simplesmente uma continuidade ao poder que se exercia na civilização romana com os imperadores exatamente por conta das transformações no campo da autoridade: se antes autoridade e poder eram experiências políticas, agora só o príncipe exerce poder político e sem autoridade que o sustente, pois esta migrou para o campo da religião. Para que seu poder fosse ungido de autoridade, o príncipe teve de se submeter ao poder da Igreja e à mitologia de que ele recebia seu lugar e seu poder de Deus, sob a supervisão e controle daquela. Houve príncipes que resistiram a essa submissão, mas ao preço de perder respeito e autoridade (ELIAS, 1939).
Mas o que fez com que a Igreja e Deus tenham perdido sua autoridade, séculos depois, no Iluminismo e na modernidade? Arendt acredita que foi uma tática de dominação criada pela Igreja medieval: a invenção do Inferno e a ereção do personagem do Diabo a protagonista da experiência da vida e da morte de cada um dos fiéis - Diabo tornado ser real, que se esconde nas sombras, que seduz, com quem se pactua ou de quem nos protegemos. Como personagem ativo - sempre ativo - e, por isso, seria preciso permanecermos vigilantes por medo de sermos levados para o mau caminho. O medo do Inferno e de seu senhor, o Diabo, foram instrumentos de persuasão dos cristãos, um modo de controle eficaz das condutas, que os mantinham obedientes, mas ao mesmo tempo evidência da fraqueza da autoridade da Igreja e de sua palavra de amor e caridade.
Toda uma iconografia em que não mais somente as referências a Deus e à Paixão apareciam passou a ser construída na Idade Média. O Diabo, os demônios, os gárgulas, os monstros, a maldade, passaram a ser também representados pelos artistas medievais. De certo modo foi um dos pontos fundamentais na passagem do estilo Românico, conciso, depurado de imagens, conforme o qual a Igreja era uma grande fortaleza segura contra o mundo exterior, para o estilo Gótico, no qual o edifício de culto era vazado por muitas janelas, não mais uma fortaleza, afinal o Diabo é persuasivo, sedutor, muros grandes e portas fechadas não vão contê-lo. A estratégia para combater o Mal é pedagógica: a Igreja ensina através das imagens o que é o Bem, o que é o Mal e como conduzir-se, além de através de sua beleza vertical atrair a alma para cima, para o Céu e não para os prazeres rasteiros deste mundo de pecados instilados pelo Demônio.
A Sé de Lisboa (1147-século XIII), um exemplo de arquitetura românica |
Era como se tivesse sido necessário acrescentar um elemento a mais na vida do cristão pois percebia-se que ele se distanciava demais da referência à Paixão como autoridade a partir de onde pautava suas escolhas na vida. Era preciso persuadir o cristão a não pecar não somente porque não era o caminho de Jesus, mas que, ainda por cima, o Diabo iria se apossar de sua alma e torturá-la no Inferno. A persuasão não era necessária antes, seu uso é a evidência da derrocada da autoridade - a persuasão é o exercício de poder moderno por excelência na medida em que supõe a relação entre iguais (é democrática). Mas o Inferno também condicionou a Igreja a adotar práticas violentas contra os próprios cristãos que se afastavam do dogma; era possível torturá-los ou queimá-los em nome de salvar a comunidade da maçã podre que levaria todos para as mãos de Satanás, como era um meio de salvar aquela alma através do sofrimento. A violência, acrescenta Arendt, é o meio de exercício de poder totalitário.
O Inferno e o Diabo demoliram a ordem medieval, ao mesmo tempo em que foram uma de suas principais características. As luzes e a democracia foram a vitória da persuasão inventada pelo clero medieval como exercício do poder. O nazifascismo preferiu herdar a violência da Igreja medieval, mas sem Inferno e sem Diabo.
E agora o fundamentalismo religioso contemporâneo convoca o Diabo a ocupar a cena do campo político novamente. Como o medo do Diabo autoriza a violência, talvez seja por isso que o fundamentalismo religioso se dê bem com o neofascismo. A Igreja católica o abandonou sob efeito do pensamento crítico iluminista, deixando a ele o lugar de "má consciência"; cabe aos críticos de hoje ainda tentar o mesmo no que se refere a outras religiões cristãs que crescem em número e poder exponencialmente.
A Catedral Nossa Senhora de Chartres (1145-1225), Chartres, França - um exemplo de arquitetura gótica |
Freud fez sua parte quanto a isso. Em "Uma neurose demoníaca do século XVII" (FREUD, 1923 [1922]), se debruçou sobre a história de um pintor chamado Christoph Haizmann, do século XVII, que teria feito um pacto com o Demônio. O psicanalista defende que o pintor nada mais era que um neurótico e que as neuroses se transformam no contexto histórico em que se formam. Enquanto no século XX, sob efeito da biopolítica e medicalização da vida (FOUCAULT, 1976), era comum um neurótico interpretar seu sofrimento como orgânico, na era das Guerras Religiosas entre católicos e protestantes, era comum interpretá-la como a incidência do Demônio sobre aquele corpo e aquela alma. Freud, herdeiro do iluminismo que foi, escreve, ainda na introdução de seu estudo:
"A nossos olhos, os demônios são desejos maus e repreensíveis, derivados de impulsos instintuais [pulsionais] que foram repudiados e reprimidos [recalcados]. Nós simplesmente eliminamos a projeção dessas entidades mentais para o mundo externo, projeção esta que a Idade Média fazia" (FREUD, 1923 [1922], p. 87)
E o que faz com que, hoje, nossos contemporâneos, adotem práticas medievais para se relacionarem com seus desejos recalcados? O último parágrafo da segunda sessão deste artigo de Freud pode nos ajudar a estabelecer uma hipótese:
O Demônio (Christoph HEIZMANN, 1677) |
"Um homem que caiu em melancolia por causa da morte do pai deve realmente ter gostado muito dele. Se assim foi, no entanto, é muito estranho que esse homem tenha tido a ideia de aceitar o Demônio como substituto do pai que amara" (id., ibid., p. 98)
Se nos afastarmos do caso em sua singularidade e o tomarmos como caso paradigmático de um tipo mais geral e contemporâneo, creio que podemos fazer uma interpretação da chamada do Diabo para o jogo político em pleno século XXI. Nosso século é herdeiro de três séculos de crítica ao Pai, de descrença ou ao menos problematização da sociedade como concebida como sistematizada num patriarcado enrijecido e transcendental. Numa palavra, nós somos herdeiros da morte de Deus nietzscheana (NIETZSCHE, 1883) e do assassinato do pai, pelos filhos, freudiano (FREUD, 1912-13). O fundamentalismo religioso contemporâneo é uma reação desesperada, melancólica, à morte de Deus: recorrem até mesmo ao Diabo para salvar Deus - e, como Freud escreve no mesmo artigo de que recolhi as citações acima:
"Não é preciso muita perspicácia para adivinhar que Deus e o Demônio eram originalmente idênticos - uma figura única posteriormente cindida em duas figuras com atributos opostos" (id., 1923 [1922], p. 102.)
Convocar o Diabo é, desse modo, ainda convocar uma potência transcendente, um Outro que pode, à sua maneira, gozando certamente, organizar o mundo. Chamar o Demônio é tornar possível expressar toda a violência e o ódio que o melancólico - tal como o pintor do artigo de Freud - deposita sobre si mesmo. Freud já nos dizia em um texto contemporâneo a esse que a melancolia é a cultura da pulsão de morte (id., 1923) e também nos dizia, noutro texto, que a pulsão de morte é, muitas vezes, localizada em nossa experiência, como algo da ordem do demoníaco (id., 1920).
O Sabá das bruxas (Francisco de GOYA y Lucientes, 1797-98) |
Postas as peças do quebra-cabeça, podemos dizer que quem não aceita a morte de Deus pois o que lhe restaria seria um desamparo angustiante como resto, pode cair num quadro melancólico. Este quadro melancólico encontra, às vezes, no fundamentalismo religioso, um destino para a pulsão de morte que põe o eu em risco. Esta ganha, junto dos desejos recalcados que o sujeito não encontra mais força para conter, o nome de Diabo - e, assim, ganha nome, sentido e a consistência de um Outro que, se não ampara ainda, ao menos é localizável: a angústia real se torna medo e o medo pode ser administrado através de precauções, inibições e todo o arsenal defensivo típico da fobia (FREUD, 1926). Melhor a fobia que a melancolia!
Mas como Arendt tentou mostrar, o medo do Diabo demole ainda mais a autoridade que se buscava em Deus, pois mostra a relativa fraqueza de Deus diante do seu Inimigo. Daí o recurso à violência se torna válido, desesperado e, ao mesmo tempo, orientado, como se vê nas reações agressivas angustiadas de muitas crianças fóbicas voltadas contra o adulto que as aproximou do objeto fóbico. É preciso matar quem trouxe o Mal, quem deveria ser um parceiro e se mostra alguém em quem não se pode confiar. Trazer isso para a política é favorável ao totalitarismo.
Em oposição, o que se espera da herança de três séculos de crítica é que é no governo dos homens pelos homens, no exercício do poder democrático, que se deveriam construir redes de amparo, de cuidados - mas isso não é possível com um Estado mínimo. Eis o paradoxo: o Estado mínimo nos aproxima do totalitarismo (através da violência e/ou do fundamentalismo religioso, que surgem como modos de gestão social numa sociedade sem autoridades e onde o Estado se isenta de cuidar), enquanto o Estado provedor, de cuidados, menos, pois o amparo que oferece não permite prosperar aquilo que os próprios religiosos chamam de 'mercado do desamparo'. Sem desespero, há possibilidade para a discussão ponderada de como a gestão dos recursos de cuidado deve ser feita, mantém-se assim o uso da persuasão e, por extensão, da democracia.
Cena com o Demônio no filme Fantasia (ALGAR, JACKSON & others, 1940), dos estúdios Disney |
“Sem desespero, há possibilidade para a discussão ponderada”. Exatamente isso. Nosso desafio: furar o desespero.
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