Sentir o racismo com Vinícius Júnior e Eliana Schueler Reis

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Vinícius Júnior é um dos maiores jogadores de futebol brasileiros do momento que, muito provavelmente, comporá o elenco da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo do Catar, a se realizar ainda neste ano de 2022. O ex-jogador do Flamengo atualmente é uma das principais estrelas do maior clube de futebol do mundo, o Real Madrid. Por ser evidentemente negro, mesmo sua condição de famoso, admirado e rico não lhe permitiu escapar da agressão racista que tem se tornado de ocasional a constante no universo do futebol da Europa e da América do Sul. Inúmeros episódios de discriminação racial foram registrados, só no mundo do futebol, nos últimos meses. O episódio de manifestação pública de racismo desta vez foi o seguinte: Pedro Bravo, presidente da Associação Espanhola de Empresários de Jogadores e branco, disse, num veículo de imprensa espanhol, que Vinícius Júnior deveria deixar de fazer macaquices, que lugar de dança é no Sambódromo - referindo-se às danças comemorativas de gols de Vinícius Júnior (que muitos outros jogadores também fazem).

As 'dancinhas' que jogadores de futebol - em particular os africanos e os latino-americanos, com destaque para os brasileiros e os colombianos (povos evidentemente marcados pela cultura e pela cor negras) - fazem após o gol, para comemorarem o feito, às vezes são executadas entre os atletas do mesmo time, às vezes são direcionadas à torcida, às vezes para as câmeras de TV. Ronaldinho Gaúcho dançava, Robinho dançava, Neymar idem, Vinícius Júnior também, para citar alguns atletas negros e famosos brasileiros. Alguns brancos, como o colombiano James Rodríguez, também são conhecidos por suas 'dancinhas'; mas mesmo nesse caso, as 'dancinhas' são passos de uma dança de origem negra, a salsa. Sem dúvida essas 'dancinhas' sublinham a alegria da feitura do gol, contudo, ao mesmo tempo, reencenam a ginga, o jogo de corpo e a habilidade daqueles jogadores que são, justamente, exemplos de um modo de jogar futebol que se costuma chamar de futebol-arte: um futebol que se apropria de características da própria arte da dança.

Vinícius Júnior dança após um gol pelo Real Madrid

Um futebol que mobiliza os afetos do adversário e do público como a arte da dança o faz - irrita, seduz, ludibria, faz parecer fácil o difícil, torna o movimento dos corpos menos a reprodução de uma máquina (como era o sonho do futebol soviético na Copa de 1958, como pareceu ser por muito tempo o futebol alemão e, ainda, como é o tiki-taka espanhol, cujo nome não por acaso remete ao relógio) e mais uma arte cênica. O apogeu do futebol brasileiro, com as conquistas das copas de 1958, 1962 e 1970, e seu maior nome, o negro Pelé, são a expressão maior do futebol-arte até hoje. O futebol-dança brasileiro parece ter muito do efeito da dança negra sobre o futebol; por isso, nenhum problema haveria em um jogador de futebol negro, ao fazer o gol, simplesmente dançar e, com isso, sinalizar que seu futebol é tributário de um modo de dançar proveniente das tradições dos povos negros. Mas parece que essa manifestação de alegria e cultura negras incomoda alguns, ou talvez muitos...brancos.

Vinícius Júnior decidiu gravar um vídeo reafirmando suas 'dancinhas', lembrando que não são nenhum desrespeito, mas a expressão de sua alegria e indica o que parece óbvio: o comentário do empresário é racista. Racista, acrescento eu, porque se irrita com um modo de manifestação do corpo negro, pura afirmação de sua alegria, sua dança, exigindo uma conduta discreta e subserviente, que lembra a expectativa típica do branco no poder: que o negro seja comportado, que ele seja 'um bom negro'. Racista, enfim, porque se a dança fosse realizada por um branco, muito provavelmente não seria tachada de 'macaquice', ou talvez, se o fosse, seria qualificada como 'comportamento de negros', pois sabemos muito bem que uma das ofensas mais pesadas e frequentes, no meio do futebol e fora dele, é chamar um negro de macaco - o que alude a uma hierarquia entre as raças, querendo ver os negros numa condição quase inumana, enquanto os brancos estariam no topo da pirâmide da definição de humano. 

O aumento de episódios de racismo e as represálias mínimas ou inexistentes a eles - a tolerância à intolerância -, levaram a FIFA a organizar recentemente debates e campanhas contra o racismo (principalmente ao mais comum, o racismo contra os negros). Os resultados por ora foram pífios. O episódio com Vinícius Júnior poderia ser mais um apenas, mas não é por dois motivos:

Michael Jackson, o Rei do Pop, dançando

1) Considerar como mais um é normalizar e naturalizar o insuportável e o traumático, o que é, já, uma derrota e uma repetição da violência. Um material só pode ser designado psicanaliticamente como traumático exatamente porque ele se repete compulsivamente (FREUD, 1920) - e se repete compulsivamente porque não conseguimos transformá-lo em discurso compartilhado que, só nessa nova condição, ganha a possibilidade de virar memória, ressignificação e, finalmente, passado que não mais se repete. Eticamente não devemos tratar nenhum desses casos como mais um, cada um deles é ocasião para se produzir discurso na tentativa de elaborar a violência traumática do racismo. E nem juridicamente, pois se há a violência é porque alguém é violento - e este, no Brasil, por sua história de escravidão, é o branco. Elaborar o trauma supõe que devemos ressignificar e barrar, então, não só a violência sofrida pelos negros, mas também a violência perpetrada em atos e palavras pelos brancos.

2) Este episódio é marcado pela arte da dança, o que mostra que o racismo não incide única e exclusivamente sobre a cor da pele e as formas do corpo dos negros (cabelos, nariz, lábios etc.), mas também sobre sua produção cultural e artística, que é considerada por Bravo como macaquice, ou seja, ela é desmentida naquilo que qualifica o humano como diferente de muitos outros animais, dentre eles os macacos. A arte é uma parte não utilitária da experiência cultural - e, assim, é impossível de ser explicada a partir de alguma necessidade biológica fundamental -; ela seria, por isso mesmo, para Goethe (1833), a forma cultural por excelência, em oposição a outras atividades ainda realizadas pelos humanos para satisfazer suas necessidades, como o trabalho ou a guerra, por exemplo. A dança é uma das mais elaboradas, características e expressivas artes dos negros da África, do Brasil, dos Estados Unidos ou do Caribe. Os ritmos que os negros introduziram nas músicas mestiças das Américas contagiaram o mundo; me refiro ao jazz, ao rock, à rumba, à salsa, e ao samba - certamente - mas também à própria formação do que virou tanto a música quanto a dança pop internacional, onde se vê misturas de hip hop, funk, reggaeton, reggae, dentre outros ritmos cujo balanço indica a marca de diversas culturas negras amalgamadas a outros estilos não negros. É isso o que a dança de Vinícius Júnior também significa: ele dança a cultura negra alçada a gosto popular internacional...e isso irrita o racista que vê a arte branca em desvalia. Ninguém dança nem balé clássico nem danças folclóricas europeias quando faz gol.

A dança de Vinícius Júnior, afirmada como expressão de alegria, é também a marca de um gozo que o opressor tem horror em ver no oprimido. Nas fantasias do opressor/senhor seria ele quem deveria gozar às custas do escravo. Mas o que se percebe é que a dança, em particular, é uma vitória dos negros sobre os brancos - eis uma nova faceta da famosa dialética do senhor e do escravo apresentada por Hegel (1807) e retomada por Lacan (1969-70). A dança é uma arte de resistência negra, é também o que o Branco vive como um gozo que não experimenta senão através da imitação desajeitada ou do voyeurismo ao negro - não à toa, todo mundo dança as músicas dos negros em festas espalhadas por todo o mundo branco. Falando lacanianamente, o fato de os brancos se renderem à dança dos negros é um sinal de que o Branco situa nos negros um mais-de-gozar a ser capturado, e poderíamos dizer também que é um sinal de que a tentativa de erigir o Branco como ideal encontra ali seu fracasso. A inconsistência do Outro branco se denuncia na dança negra contagiante e alegre - e o racista, inserido numa dinâmica perversa, como Lacan ensina a respeito da perversão sádica (1963), se precipita como puro instrumento do gozo do Outro (Branco) sobre o negro tornado sujeito sofrente dividido: o perverso age para sustentar uma consistência onde não há consistência - no Branco como superior.

A capoeira, dança/luta inventada pelos negros escravizados no Brasil

Outro episódio ligado ao racismo também me impactou nesta semana, o qual remete menos à abordagem lacaniana da psicanálise e põe em cena outro grande nome, Sándor Ferenczi. Eliana Schueler Reis, psicanalista colega do EBEP-RJ, e Jô Gondar, do CPRJ, lançaram, na última quarta-feira, o livro, assinado pelas duas, Com Ferenczi - o coletivo na clínica: racismo, fragmentações, trânsitos (REIS & GONDAR, 2022). Tive a alegria de ir ao lançamento, reencontrar, beijar e abraçar muita gente que não via desde que a pandemia do COVID-19 chegou. Foi um sopro de alegria e esperança a celebração daquele livro. Não só por isso, como pretendo mostrar abaixo.

Alegria e esperança quando vividos sozinhos às vezes podem parecer sentimentos tolos. Mas quando vividos em relação com o que os tensiona, podem servir de força na tentativa de elaborar situações difíceis. Ler o primeiro capítulo da obra, assinado por Reis, foi muito comovente. A autora nos conta como o racismo passou ao primeiro plano de sua clínica. O sofrimento de uma paciente negra com o racismo que sofria e sua (de Eliana S. Reis) dificuldade de lidar com o que a paciente trazia a fizeram se dar conta de como o racismo, além de moldar a figura do negro como alvo sofrente, também molda o branco (no caso, a analista), lhe causando cegueiras, surdezes, desconsiderações, insensibilidades.

A autora evoca Ferenczi para lembrar que falhou em "sentir com" (FERENCZI, 1932). A coragem, a honestidade, a tragicidade do depoimento de Eliana Schueler Reis são da ordem do heroico, da franqueza que cabe a um analista ter, e do angustiante também, pois lembra a todos os brancos - incluindo eu mesmo - o quanto é preciso analisar o racismo em cada um de nós, pois ele nos molda e nos atravessa de forma às vezes inconsciente

Eliana Schueler Reis 

Reis, citando Pinheiro, diferencia branquidade de branquitude: a branquidade diz respeito ao não reconhecimento do racismo que atravessa e molda brancos e negros e a branquitude é a condição de quem é branco e reconhece o quanto o racismo é um importante e estruturante eixo da subjetivação brasileira há muito tempo. O próprio texto de Reis pode ser lido como um testemunho ou um relato de viagem da travessia da branquidade à branquitude, é o reconhecimento dos danos do racismo em sua história profissional e afetiva. Por sua nudez, o texto é comovente e, como todo ato heroico, deveria servir de inspiração para outros a se lançarem nesta travessia. Aposto em sua potência de ser um instrumento importante na colocação do racismo em análise, dos efeitos do racismo não só sobre o negro, mas também sobre o branco - o que poderia, quem sabe, dar destinos diferentes à dança; porque não dançar, aliás, juntos? "Sentir com" é um modo de dançar junto e "sentir com" implica que o analista se posicione a escutar o paciente não numa posição de autoridade, de segurança de seu lugar, ele deve - como costuma escrever Reis - afinar sua escuta, se pôr em sintonia com o paciente. 

O "sentir com" ferencziano não é a mesma coisa que o "sentir com" de outras psicologias; é comum tratarem o "sentir com" como uma alternância entre o eu do analista e o do paciente, aquilo que Lacan chama de alienação imaginária para combater a ego-psychology (LACAN, 1954-55). Não creio que esta é a única maneira de considerar o "sentir com", ao menos na perspectiva ferencziana e de Eliana S. Reis notadamente, nem creio que Lacan situaria Ferenczi dentre os moralistas da ego-psychology; ao contrário, Lacan era um dos poucos em sua época a recuperar Ferenczi do silenciamento que Ernest Jones impôs à sua obra (BIRMAN, 2014). O "sentir com" remete ao acolhimento do outro nas condições em que ele fala e se posiciona; remete ao reconhecimento de um sujeito em sua singularidade; tem mais a ver, portanto, com prestar escuta, sustentar a dignidade de alguém que fala situando-se numa posição que torna possível o contato, mesmo que ambos estejam demarcados, no campo simbólico, por delimitações, cegueiras e surdezes instituídas pelos lugares que ocupam (como Lacan bem mostrou em seu célebre "O seminário sobre a 'Carta Roubada''', de Edgar Allan Poe [LACAN, 1955-57]), como os lugares simbólicos de terapeuta-paciente, branco-negro, homem-mulher, heterossexual-homossexual, adulto-criança, rico-pobre dentre outros. Nesse sentido é que "sentir com" é uma noção potente e, por que não?, revolucionária, pois aposta no estabelecimento de condições de possibilidade da quebra de lugares instituídos, o que permitiria a emergência ou a construção de novas modalidades de relação. 

O "sentir com", desse modo, não teria muito a ver com a alienação imaginária. Teria também menos a ver com uma concepção do campo simbólico como estruturado de uma vez por todas e estável, repetindo uma mesma ossatura falo e eurocêntrica, e mais com uma concepção daquele campo como estabelecido e sustentado tal como se apresenta pela reiteração de relações de poder que, se postas em jogo por certas estratégias - e o "sentir com" é apenas uma delas -, novos ordenamentos simbólicos entram em gestação, tal como se faz na produção estética, na arte. O texto de Eliana Schueler Reis para este importante livro escrito com Gondar, "Reflexões de uma psicanalista branca diante do racismo estrutural no Brasil", é a certidão de nascimento de um outro modo de se posicionar, por parte de uma branca (que é psicanalista), diante de uma negra (que é paciente), manifestando algum remapeamento do campo simbólico que a atravessa mas no qual ela também interfere, desse modo ele não só é de uma dignidade e honestidade ética certeiros como de uma força estética comovente ao criar novos possíveis.

Sándor Ferenczi com Sigmund Freud 

A luta contra o racismo precisa da dança afirmativa de alegria do negro Vinícius Júnior e de seu depoimento cheio de seriedade, a mesma luta precisa da afirmação de branquitude de Eliana Schueler Reis ocasionada, dentre outros motivos, por seu "sentir com", e de seu depoimento cheio de seriedade. A luta contra o racismo pode, então, se fazer com(o) arte - e a arte é, como Freud já comentava em "Escritores criativos e devaneio" (1907), ao mesmo tempo ludicidade e seriedade.

Comentários

  1. Bacana isto: a luta contra o racismo com(o) arte.

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  2. Excelente todas as colocações da da Elina S. Reis. Está de parabéns, pois a discriminação racial aqui também é sentida nos menores detalhes.

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