A tatuagem e a passagem ao ato

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Um brasileiro, motorista de aplicativo, chamado Fernando Andrés Sabag Montiel, tentou assassinar a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, na quinta-feira primeiro de setembro de 2022. Se infiltrou na multidão que se reunia em frente à residência da ex-presidente, se aproximou dela, estendeu o braço segurando uma pistola e disparou, a poucos centímetros, no rosto de Kirchner; a arma aparentemente travou e a vice-presidente saiu ilesa. O homicida foi capturado e, desde então, sabemos que é um brasileiro descendente de argentinos e chilenos.

Não quero fazer o que tenho lido pela mídia por aí: estão construindo um perfil de anormal para Montiel: sofreu bullying, sem amigos, dependende da mãe, o avô matou a esposa etc. Construir um perfil do inimigo público, do indivíduo perigoso a partir de sinais como esses é que é perigoso, pois: 1) Individualiza o problema da violência, centrando-o na figura do desviante, o anormal, de quem Michel Foucault mostrou bem que serve de isca para a normalização de todo o campo social, para todo um dispositivo de regulação social que vai da psiquiatria, passando pelo direito até a assistência social (FOUCAULT, 1974-75), 2) Falando estritamente como psicanalista, não se pode, através de fatos da história de alguém, determinar que sujeito é aquele. É o campo da realidade psíquica, das fantasias, que delineia a posição ética do sujeito diante do que sua história lhe aprontou (FREUD, 1897). O que resultaria de dizer afobadamente quem o sujeito é e o que pode se esperar dele a partir de fatos e registros da polícia, da escola e dos vizinhos é uma nova versão daquilo que Freud chamou de psicanálise selvagem (id., 1910), ou seja, algo muito distante de uma psicanálise, algo violento, dessa vez mesclada a uma criminologia.

Com isso não quero de modo algum 'aliviar a barra' de Montiel, mas creio que devemos lidar com situações muito sérias como essa com mais rigor. Individualizar o crime e o ódio a partir de uma história pessoal mantém a força social de certos discursos violentos e perversos que atravessam indivíduos e grupos centrado na relação de certos tipos de indivíduos com outros tipos de indivíduos, como é o caso das ideias e ato neonazistas desta versão real e sul-americana do Taxi Driver (SCORSESE, 1976) [é impressionante como este filme é brutalmente atual: recomendo vê-lo ou revê-lo, nestes tempos]. Mais interessante que ontologizar tipos de indivíduos é prestarmos atenção nos discursos que individualizam e enformam subjetividades neonazistas.

O que me interessa discutir hoje é o fato de já se estarem proliferando discursos que desconfiam se Montiel era realmente um neonazista, um fanático de extrema-direita, ou se, na verdade, tudo não se passa de um truque político para salvar a pele de Cristina Kirchner, na medida em que foi condenada à prisão muito recentemente. Entendo que um discurso como esse é minimamente irresponsável e quero centrar meu argumento na tatuagem do sol negro, símbolo nazista, que Montiel exibe em seu corpo, se estendendo de seu braço a seu antebraço.

Sabemos que hoje em dia já se desenvolveram técnicas para retirar, apagar tatuagens, porém elas são muito caras para um motorista de aplicativo pagar. Sabemos também que muita gente, depois de se arrepender de uma tatuagem (por exemplo, o nome de um namorado no braço se torna um grande problema após o fim da relação), faz outra tatuagem cobrindo a primeira. Porém, uma tatuagem do tamanho da que Montiel fez, um grande sol negro, tornaria cobri-la muito dispendioso. Com isso quero dizer que quando se tatua algo no corpo, não se pode compará-lo a uma mudança de imagem tal como cortar o cabelo, fazer a barba ou usar um piercing. A tatuagem é algo feito para ficar, para durar, para marcar de modo indelével um corpo, ainda mais quando é grande.

Imagens na internet de Montiel exibindo sua tatuagem do sol negro

Justamente porque se trata de algo para mudar o corpo daquele momento em diante, há quem faça suas tatuagens em partes discretas do corpo, nunca vistas senão pelos mais íntimos ou, ao menos, não vistas quando se está com as roupas que se usa em espaço público. É o caso de quem tatua as costas, de quem tatua a barriga, de quem tatua os pés, de quem faz tatuagens pequenas, por exemplo. Mas há também quem tatua partes do corpo que geralmente estarão expostas e à vista de todos; tatuagens no rosto, nas mãos, no pescoço e nos braços (especialmente no antebraço) são desse tipo - e este é o caso de Montiel. Ou seja, este sujeito não só quis marcar seu corpo com algo durável, difícil de ser retirado, como também quis exibir sua tatuagem: e ela é um símbolo nazista.

É difícil imaginar um símbolo tão explícito da posição política de alguém, tão explícito a respeito também de seus valores morais, de sua relação com os outros, quanto um símbolo nazista. Se alguém o expõe na pele e, assim, aferra sua imagem àquele símbolo, é quase certo que não se trata de um falsário, alguém que fingiria ser um nazista para alimentar um tal jogo político pró-esquerda. É muito improvável imaginar alguém marcar sua pele, gerar nos outros reações necessariamente intensas (sejam as reações aversivas ou as simpatizantes), por muito tempo, e estar apenas fingindo. Essa tatuagem condiciona todas as relações sociais do sujeito. Marcar a pele com o selo do nazismo é um ato de uma radicalidade que não pode ser negligenciada. É preciso levar à sério o perigo do neonazismo desavergonhado deste personagem como de todos os outros que flertam com símbolos nazistas.

A tatuagem foi e é uma prática presente em diversas culturas, porém, há especificidades da tatuagem moderna/contemporânea ocidental. Walter Benjamin propõe pensarmos a modernidade (e eu estenderia tal característica a nosso momento contemporâneo) como um processo de desmontagem, quebra, destituição das grandes narrativas que atravessavam a existência de cada indivíduo ou grupo pré-modernos no ocidente (BENJAMIN, 1936). Tais narrativas, ao contrário do que se costuma dizer, não eram um impedimento à singularização, pois cada um se construía a partir delas, mas contando-as de modo singular, 'cada um acrescentando seu ponto ao conto'. A modernidade, ao desmontar tais narrativas, deixou a nu o desamparo fundamental de todo ser humano: não sabemos, sem tais narrativas, que sentido dar à existência. A crítica iluminista não é senão um exemplo mais claro do processo modernizante, crítica cujos principais adversários eram as autoridades da tradição, da religião e do poder aristocrático-monárquico. A modernidade instituiu, assim, uma realidade em que o destino de cada indivíduo não está pré-estabelecido, a história é aberta, mas também a 'geografia': o indivíduo moderno não tem raízes que o definam essencialmente, mesmo que forças religiosas e nacionalistas ainda funcionem como resistência ao desenraizamento e à desterritorialização modernos (COSTA, 2004). 

Haveria, no mundo moderno, tatuagens que remetem a uma marcação tradicional do corpo, localizando-o em determinado grupo social, quase de modo essencializante, como, por exemplo, as tatuagens da yakuza, a máfia japonesa. Há também - e cada vez mais -, por efeito da modernidade, tatuagens que não remetem mais a um lugar social, mas apenas servem ao indivíduo inscrever em si marcas singulares, expressar, ao invés das narrativas gerais, narrativas singulares e, às vezes, solipsistas.

Amy Winehouse cantando com suas tatuagens à mostra

Alguns psicanalistas se debruçaram sobre o fenômeno contemporâneo cada vez mais comum de tatuar o corpo, algo que se generalizou pelas diversas classes sociais no mundo ocidental mais ou menos dos anos 1980 para cá. Para Didier Anzieu (1990) a tatuagem tem um valor metonímico da realidade psíquica, é uma materialização quasi-hieroglífica das fantasias psíquicas, é um modo de realizar no corpo um desejo recalcado, uma narrativa singular imagetizada; porém isso não explicaria a moda de tatuar-se que vige de uns tempos para cá. Joel Birman (2005) chama a atenção para outro aspecto do tatuar-se e, dessa vez, tenta dar conta do que há de fundamentalmente atual nesta prática: o processo doloroso de marcar o corpo com agulha e tinta remeteria à experiência-limite e desesperada de uma juventude jogada à invisibilidade identitária; tatuar o corpo seria, para o autor, um modo de adquirir certa visibilidade através da inscrição de linhagens e ascendências imaginárias diante do absoluto desamparo diante do Outro; as tatuagens seriam, assim, sinais do fracasso contemporâneo do sistema simbólico-filial, mas, ao mesmo tempo, um esforço de criar algum tipo de distinção social. Ainda na perspectiva de sinalizar o famoso declínio do Nome-do-Pai, alguns autores propõem pensar a tatuagem como evidências de falta de recurso simbólico para se fantasiar; ao contrário do que pensa Anzieu, então, para esses autores, as tatuagens - sendo elas inscrições no corpo - diriam respeito bem mais à tentativa de escrever e assegurar a permanência não mais virtual, mas real, de sentidos para si mesmo. Macedo e Paravidini (2015) nos lembram, entretanto, que as tatuagens, dependendo do sujeito, podem ser compreendidas de modos muito diferentes, não tendo elas, portanto, tal como qualquer significante, significado único, ao contrário, sua significação se dá dentro do contexto associativo que o sujeito tatuado traz. 

De qualquer maneira, inspirados nas reflexões psicanalíticas, podemos dizer que marcar uma parte geralmente visível da pele com o sol negro nazista serve de insígnia heráldica pós-moderna que, como todo traço fascista, remete a um sonho - ou talvez um delírio - de retorno ao pré-moderno; estão ali apresentados, ao mesmo tempo, o desterro de todos nós modernos, o uso de recursos individuais para lidar com o desamparo e a saída denegatória fascista que aposta de novo num identitarismo duro. Serve para dizer como o sujeito quer ser reconhecido, é um ato individual, singular que, ao mesmo tempo, determina o pertencimento a um grupo social mais ou menos estabelecido, mesmo que sinistro e criminoso. Participa, portanto, da construção da imagem corporal como algo não solipsista, mas como tentativa de posicionamento social. É como se a tatuagem nazista inscrevesse (n)o corpo (n)um lugar, tamponando o que lhe falta.

O que faltava àquela imagem de si e precisava ser incluído foi presentificado por Montiel com o sol negro nazista. Lacan ensina que aquilo que aparece como restante, faltante à imagem corporal, o objeto a, quando faz a falta faltar - ou seja, quando se torna presente demais -, dito de outro modo, quando o sujeito não encontra mais condições para experimentar a si mesmo como sujeito desejante, a quem algo falta, ele sofre efeitos perigosos (LACAN, 1962-63). Antes de tudo, a angústia. E, se ocorre concomitantemente de este sujeito se dar conta de que seu desejo e a Lei são figuras conflitantes, ou seja, quando o sujeito se vê destituído de sua dignidade, de sua fala, pelo Outro, ocorre outro efeito: a passagem ao ato. Lhe sobrou o lugar de objeto a, o dejeto, o sujeito está em risco de desaparecer - agora ou morre ou mata.

Tatuagens características da yakuza, a máfia japonesa 

Marcar a si mesmo com um símbolo nazista, um novo componente epidérmico de sua própria imagem (a qual ele exibia com orgulho em selfies postadas na internet), ao mesmo tempo em que lhe dá um lugar social - o do neonazista -, reitera seu lugar de absoluto marginal, inimigo público, resto, lixo, que ou morre ou mata. Hannah Arendt mostrou muito bem que o nazismo histórico serviu, ao mesmo tempo, de recurso identificatório para uma massa de decaídos, a ralé, cheia de raiva de sua degradação social - seja a raiva dos poderosos, do status quo, como também raiva dos mais humilhados e pobres, dos apátridas, dos doentes mentais, dos homossexuais, dos judeus...enfim, daqueles que já eram resto, já eram os sem valor social. O medo do nazista é de se identificar aos párias, de se perceber idêntico àqueles sem valor social nenhum, àqueles de quem ele tem nojo. Para evitar isso, reage com violência seja contra os humilhados, seja contra as forças do poder, e mais ainda quando as duas figuras se juntam, por exemplo, na figura dos políticos cuja agenda é, supostamente, de lutar pelos mais humilhados. Seria esse o caso da tentativa de homicídio de Cristina Kirchner?

Lamento que nem todas as autoridades brasileiras se comunicaram de modo a demonstrar enfaticamente seu repúdio não somente à brutal tentativa de assassinato de Kirchner, mas também ao triste e perigoso fato de ter sido efetuada por um brasileiro neonazista. Seria importante que se expressasse publicamente a absoluta rejeição por parte da Civilização Brasileira ao nazismo, como também se indicasse que não se trata somente de um indivíduo isolado com uma tatuagem nazista e tentando matar uma liderança política, mas de um perigoso movimento difuso que existe no Cone Sul - no Chile, na Argentina, no Paraguai, no Uruguai e certamente no Brasil. Seria contundente e responsável reconhecer que no Brasil não se trata apenas de indivíduos isolados. 

Se a tatuagem do brasileiro Fernando  Montiel expõe publicamente seu nazismo, que, em contrapartida, o poder público também exponha publicamente que ao mesmo tempo que reconhece sua existência, que não subscreve sua posição, que afirma que o nazismo é crime! Isso é muito importante pois desde a Era Vargas houve e há grupos simpatizantes do nazismo; desde o próprio Getúlio (e o destino de Olga Benário Prestes não nos deixa esquecer isso), passando pelos integralistas e, hoje em dia, no governo Bolsonaro, tivemos terríveis manifestações de aproximação com a estética nazista, como a de um ex-secretário de cultura repetindo um discuso de Goebbels ao som de Richard Wagner. 

Antes tarde do que nunca: é preciso que o discurso democrático, antifascista e antirracista se inscreva não na pele, mas nas orientações simbólicas do que significa ser brasileiro e, se isso fosse feito pelo poder público, representaria uma marca identificatória importante para toda a nação. Se for preciso, diante do desenraizamento moderno criar raízes, que as raízes estejam nos valores democracia e multiplicidade.

Enquanto as principais autoridades brasileiras não se manifestam assim, ao menos é bom saber que o sol amarelo da bandeira argentina, por lá, é mais forte que o sol negro nazista. 


Comentários

  1. Texto maravilhoso, forte, decidido! Parabéns, Pedro!

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    1. Um texto capaz de produzir a compreensão e angústia também, desvelando o impensável doloroso para um leigo. Mesmo assim, deixa a sensação de que algo ou alguma palavra ainda possa nos salvar. Ka’lika/SC

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  2. Podemos continuar a falar disso, Ka'lika. Escrever mais, ler, debater...O problema maior vem quando nos calamos.

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