A morte assistida - um último ato psicanalítico

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O dia 23 de setembro é a data da morte de Sigmund Freud, ocorrida no ano de 1939. Não faria muito sentido lembrar desta data agora caso não remetesse a algum tema que concerne à atualidade. O que remete à atualidade é o modo como morreu Freud. Para quem não sabe, Freud havia combinado com seu amigo e médico, Max Schur, que o auxiliasse a morrer quando pedisse, que quando não aguentasse mais continuar a viver devido à dor causada por seu câncer no palato (que perdurava mesmo após mais de trinta cirurgias) que Max Schur administrasse a eutanásia de Freud (através de uma dose letal de morfina) - e, como foi noticiado há poucos dias, o cineasta Jean-Luc Godard decidiu morrer, agora em 2022, de maneira semelhante.

Jean-Luc Godard

Como se pode ler nas biografias escritas por Ernest Jones (1961) e por Peter Gay (1988), o biografado Sigmund Freud teve uma crença meio supersticiosa em alguns momentos de sua vida a respeito de uma morte iminente, como se soubesse a data em que fosse morrer, e, por isso, se ocupou de 'deixar tudo preparado' pois, afinal, em breve partiria. Muito de sua organização do movimento psicanalítico, de suas missivas e de seus artigos e livros publicados se deve à pressão da iminência da morte; era preciso produzir uma obra antes que a morte chegasse. A morte não veio quando acreditou; por exemplo, Freud achava que não passaria dos 60 anos: Freud morreu com 83 anos.

Isso poderia ser tratado como  um sintoma de Freud, mas me interessa mais é sinalizar o quanto seu modo de morrer está intimamente relacionado à sua obra psicanalítica, registrando o quanto foi pautado por uma ética que não era outra coisa senão a prática da clínica e das teorias por ele desenvolvidas em sua própria existência, em sua vida, em sua morte. Pretendo mostrar isso a seguir.

Em seu artigo "As pulsões e seus destinos" (FREUD, 1915), um dos destinos mencionados no título é chamado de retorno em direção ao próprio eu: trata-se de uma direção possível a ser dada à força pulsional que visa satisfação, sob uma pressão constante; quando o objeto que a moção pulsional busca falta na realidade, é possível - diz Freud - que a pulsão tome o próprio eu como objeto a partir do qual a descarga de excitação ocorre. Freud descreve um movimento de dobra, no qual a pulsão dobra-se sobre si mesma, incidindo sobre o corpo e originando ali o que ele descreveu noutro lugar como o narcisismo. Agora a própria superfície corporal é tomada como objeto de satisfação sexual, agora surge um eu que é objeto de amor por parte de si mesmo.

Em "As pulsões e seus destinos", Freud propõe que compreendamos os diversos destinos dados à pulsão como defesas contra a pressão pulsional que, se não encontra via para descarga, se acumula produzindo desprazer. Ora, o narcisismo e, por extensão, o eu, são, portanto, defesas contra a pulsão. O eu tomar a si como objeto de amor é, para Freud, um modo primitivo do psiquismo se defender contra a exigência de descarga pulsional e contra a falta de objeto externo.

Max Schur, médico e amigo de Freud, que administrou sua eutanásia 

O objeto externo a que Freud se refere indica o quanto dependemos de outros para encontrar prazer. Explico: desde seu Projeto para uma psicologia científica (id., 1895), publicado postumamente, Freud já descrevia um processo de formação do aparelho psíquico absolutamente dependente do outro humano. O autor supõe que o bebê humano vem ao mundo sem estar suficientemente programado instintualmente para saber se defender contra a pressão das excitações que atacam o aparelho neurológico. É uma ação específica de outro humano que, ao orientar, auxiliar, 'ensinar' o bebê humano a encontrar tanto objetos quanto modos de se relacionar com os objetos o que vai tornar possível a existência daquele aparelho psíquico como que regulada por fixações/trilhamentos que cartografam o mundo através das marcações prazer/desprazer. Por exemplo: o seio é oferecido pela mãe ao bebê para nutrí-lo e para acalmá-lo; através desta ação a mãe constrói uma via de descarga pulsional do bebê, da boca ao seio, da língua ao mamilo, do leite à garganta, do seio quente ao rosto do bebê...todo um esquema de relações e meios de encontrar prazer é construído na psiquê do bebê através do manejo do Outro. Isso quer dizer que os objetos a que nos ligamos não são uma relação direta eu-outro, mas são sempre valorados, determinados, indicados por um Outro.

Sendo assim, retornar dos objetos para o eu não é unicamente um modo de se defender contra a pressão pulsional, mas é também um modo de se defender das incertezas da realidade externa (o outro, o objeto, estará ainda lá?) como também é um modo de se defender da determinação dos trilhamentos construídos pelo Outro. No fringir dos ovos o que temos é o seguinte: o narcisismo é um modo de apagamento da alteridade da pulsão, da realidade e do Outro. É um modo de não ver o quanto nossa existência só faz sentido na relação com outros humanos - o quanto a dependência é constitutiva das subjetividades.

Nesse sentido, uma parte importante do trabalho de uma psicanálise pode ser compreendido como uma desalienação da solução narcísica, o que remete ao reconhecimento da castração - ou seja, à situação psíquica em que não nos vemos mais plenos narcisicamente, fálicos, mas faltosos, desejantes de outros humanos.

Quando Freud desenvolve sua teoria da pulsão de morte, o argumento de que uma análise deve desconstruir a solução narcísica se torna ainda mais robusto pois a pulsão de morte incide antes de tudo sobre o si mesmo, é uma pulsão de morrer (id., 1920). A tentativa de construir um amor por si mesmo, narcísico, que expurgue a ambivalência de sentimentos quanto a si mesmo, tem por necessidade a exteriorização da pulsão de morte como pulsão de destruição dos outros humanos. Dito de outro modo, cria-se uma situação quase-maniqueísta, paranóide, na qual o eu é objeto de amor e o que não é eu é destinatário da violência e do ódio. As pulsões de vida e morte estariam des-fundidas nessa dinâmica e economia (id., 1923). O tratamento psicanalítico teria por efeito, ao destituir o eu de sua ilusória pureza narcísica, justamente a fusão das pulsões de vida e de morte, o que levaria também o eu a aceitar o que há de odioso em si e investir de erotismo ambivalente os objetos antes só repugnados do mundo exterior.

Rainer-Maria Rilke

As pulsões de morte sempre vencerão, no entanto - lembra Freud (id., 1920). Todos morreremos. Toda vida caminha para a morte, porém cada vida traça seu caminho singular em direção à morte porquanto há uma escolha ética e estética a respeito de como queremos morrer. Escolher um modo de viver é também escolher um modo de morrer e Freud literalmente escolheu uma forma de morte, combinando com seu médico, aliás, os passos a serem dados. Parece ter querido mais uma vez tornar consciente um processo que em geral é inconsciente, atuando o preceito nunca abandonado de seu trabalho analítico.

Num breve e comovente ensaio chamado "Sobre a transitoriedade" (id., 1916), a que já fiz referência noutro post deste blog, Freud discorre exatamente sobre a escolha que fazemos diante das relações entre vida, morte e fruição. Descreve ali um diálogo com um poeta que poderíamos chamar de melancólico - e que tudo indica tratar-se de Rainer-Maria Rilke. O poeta argumenta que lhe é impossível amar a beleza de uma flor pois ela não duraria muito, ela murcharia em breve e morreria; para o poeta só a imagem da flor viva é bela, e a vida deveria ser registrada como eterna, o que quer dizer que qualquer reconhecimento da morte estragaria a fruição estética. Freud, ao contrário, indica outro modo possível de nos relacionarmos esteticamente com a transitoriedade das coisas: para alguns é exatamente porque o esplendor da flor é fugaz, momentâneo (como é a vida) que ele é belo; Freud destaca ao mesmo tempo a fragilidade, a precariedade, da vida e seu alto valor. Dito de outro modo, a vida só tem sentido na sua relação com a morte e com o fruidor da vida, o outro humano. Qualquer tentativa de negar a morte ou a condicionante participação dos outros humanos na nossa existência se arrisca a enveredar pela melancolia. O melancólico, escreverá Freud no ano seguinte, sofre de não aceitar a perda do objeto, passando a ser abatido por sua sombra (id., 1917).

Enquanto Freud se sentiu capaz de conviver com a morte que o habitava (o câncer) e enquanto se percebeu em relação com os outros, podendo dar e receber prazer aos outros, quis viver. Enquanto trocou cartas, enquanto pôde atender pacientes, enquanto leu e escreveu textos, enquanto atuou na política psicanalítica, quis viver. Enquanto pôde ajudar sua família quis viver. 

Utilizando de sua fama, reputação e dinheiro, mesmo já debilitado pela doença e pela idade, Freud conseguiu não só se salvar do extermínio nazista, mas também salvar parte da família e até seu médico, Max Schur, arranjando, com o auxílio de Marie Bonaparte e Ernest Jones dentre outros, um exílio na Inglaterra. Já em terras inglesas, salvou também a psicanálise do extermínio. Mas quando nem seu cão se aproximava mais dele devido ao fedor que sua prótese bucal exalava, somado à dor e à fraqueza que sentia, decidiu morrer. Decidiu morrer quando percebeu que havia cumprido sua última missão e quando suas relações de prazer com os próximos se extinguiam - nem seu cão se aproximava mais...seu lugar na rede libidinal se extinguia.

Mas até mesmo seu último ato foi um ato em que Eros venceu a morte. Sua morte foi uma escolha - e mais: ocorreu com o auxílio, a ação específica de um outro humano. O laço erótico esteve presente mesmo no momento de sua morte. Será a mesma ética que levou Jean-Luc Godard a decidir pela morte assistida? 

A casa em Londres em que Freud viveu em exílio e morreu - atualmente é o "Museu Freud"

Quanto a Godard, ainda não tenho informações suficientes para sequer levantar uma hipótese, mas gostaria de sinalizar que este tipo de escolha pela morte - ao menos a de Freud - difere bastante de um suicídio como desistência da vida. Alguém pode decidir morrer exatamente porque não suporta aceitar o quanto a vida é marcada pela morte, tal como o poeta melancólico de "Sobre a transitoriedade". Alguém pode decidir morrer porque só acredita na possibilidade de felicidade na referência narcísico-fálica da completude e da eternidade, de modo que qualquer fissura neste ideal pode levar a uma derrocada catastrófica. Alguém pode decidir morrer por um tédio terrível diante de um mundo que não lhe interessa, pois toda a libido está no eu. Podemos nesses casos falar em desistência da vida. Me parece que não se trata da situação de alguém que acredita que cumpriu sua obra e que agora já pode ir.

Peter Gay terminou seu livro sobre Freud com a seguinte frase: "O velho estóico conservou o controle de sua vida até o fim" (GAY, 1988, p. 650). Michel Foucault em A hermenêutica do sujeito (1981-82) bem como Paul Veyne, em Sêneca e o estoicismo (1993), nos esclarecem alguns pontos da filosofia estóica que favorecem a interpretação de Gay. Dentre outras características, o estoicismo busca justamente fazer coincidirem teoria e prática, em suma, é uma filosofia diretamente ocupada com a ética (e a estética) da existência. Além disso, o estoicismo trabalha o eu como um problema - ele deve ser conduzido e moldado pela razão, e não pelos apetites, de modo que uma existência só encontra sentido na sua função social: quando já se realizou o que uma vida estava incumbida de fazer pelo lugar na cultura ocupado por aquele sujeito, mantê-la ainda seria egoísmo, seria irracional. À sua maneira, com as transformações que a modernidade impôs, a psicanálise - e a vida de Freud - reatualizam certos temas estóicos: a psicanálise é também antes de tudo uma ética da existência que ocupa o sujeito de tratar seu eu como um perigo nas suas relações com os outros, com o Outro e consigo mesmo, na medida em que ele apaga as relações de dependência que tornam a vida possível. O modo de morrer de Freud foi um último ato ético e estético que materializou a verdade da psicanálise sobre sua existência. Um ato psicanalítico.

Comentários

  1. Parabéns pelo artigo. Este assunto tem sido objeto de minhas reflexões

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  2. Parabéns pelo artigo!
    Maravilhoso , onde você apresenta que Freud corrobora o seu estudo sobre a dependência do ser humano, desde seu nascimento até sua morte, com a presença de amigo e médico.
    Além de fazer uma busca por outras situações semelhantes ao de Freud. Excelente a pesquisa e o artigo.

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