Viva o gordo!

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No último dia 5 de agosto morreu Jô Soares, um dos maiores humoristas do Brasil. O texto de hoje o homenageia com reconhecimento de algo que considero um de seus maiores méritos: Jô, em ato, nos ensinou a rir de si e de nosso país.

Jô Soares em seu talk-show

Jô não gostava de ser chamado de 'fortinho', 'cheínho', muito menos de 'pessoa com obesidade'. Jô se definia como gordo, por anos teve um programa na TV Globo chamado Viva o gordo!, por outros anos, no SBT, seu programa se chamou Veja o gordo e, em seus talk shows sempre saudou o público com o famoso "Beijo do gordo!" (sic). Mais do que isso, Jô fazia piadas com sua gordura; fazia piadas também a respeito de outras de suas características não muito elogiáveis em nossa cultura: seu exibicionismo, a ingenuidade de quando era criança e seus trejeitos considerados efeminados pelos machões de plantão. Fazia piada também de sua condição de brasileiro e da tragédia (ou será comédia?) que é viver nesse país governado historicamente por uma elite corrupta que alternou no poder com uma casta militar conservadora e autoritária. Numa palavra: grande parte do humor de Jô era rir de si e de sua condição.

É verdade que Jô também ria e nos fazia rir dos outros, também fazia humor - às vezes bem ácido, beirando o escárnio - dos outros. Mas rir e fazer rir de si mesmo é uma característica que não se costuma ver por aí. Rir dos outros é comum, todo fofoqueiro faz isso - e eles estão em cada esquina. Não foi, certamente, o único a fazer isso. Oliver Hardy, o gordo da dupla O gordo e o magro já ria e nos fazia rir tanto de sua gordura quanto de sua suposta esperteza há muito tempo; aqui no Brasil, o brilhante concorrente de Jô, Chico Anysio, também ria e fazia rir de si - no caso, de sua condição de cearense de cabeça chata do interior, de Maranguape (e sabemos o quanto a população do sudeste discrimina o nordestino) - e também de ser brasileiro. E, fundamentalmente, o humor judaico, como se aprende no ótimo Humor judaico: do Éden ao divã (SCLIAR, M; FINZI, P. & TOKER, E., 1990), esteve majoritariamente, ao longo da história do povo judeu, na sabedoria judaica de saber rir e fazer rir de si. O exemplo mais famoso talvez seja mesmo a persona criada por Woody Allen - alguém que faz graça da sua própria condição de judeu, neurótico, hipocondríaco, franzino, baixinho e cético. 

Temos em comum neles todos que riem de si a seguinte característica: eles riem dos traços que os tornaria pessoas vulneráveis ao preconceito, à rejeição social.

Jô Soares representando o Capitão Gay

É como alguém de dentro da tradição judaica que Freud exalta, em seu artigo "O humor" (FREUD, 1926), precisamente esta capacidade de fazer troça de si mesmo. O exemplo que apresenta no texto - o do condenado à morte na forca que, ao ser acordado numa segunda-feira para ser levado ao cadafalso, comenta "Bem, a semana está começando otimamente" (id., ibid., p. 165) - é o de alguém rindo da própria condição.

Para Freud, há algo da ordem de uma grandeza e elevação no humor - em especial no humor que toma a si mesmo como objeto da 'pilhéria'. Tratar-se-ia do triunfo do narcisismo, do amor-próprio, mesmo numa situação em que o eu é alvo de críticas e ataques. Nas palavras de Freud, 

"o ego [do humorista que torna a si mesmo o alvo da chacota] se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter prazer (...). O humor não é resignado, mas rebelde" (id., ibid., p. 166)

Freud arremata seu artigo sugerindo que o humor seria, então, a contribuição feita ao cômico pela intervenção do supereu. Dito de outra maneira, o humor faz aparecer o olhar e o discurso do supereu sobre o eu, mas, diferentemente de outras situações - psicopatológicas - em que o efeito do supereu sobre o eu é de violência (neurose obsessiva, melancolia, p.e.), no humor, o supereu gera um prazer libertador e enobrecedor no eu, ao retirar dele o peso, a obrigação, a exigência de perfectibilidade fálica; é como se a mensagem do supereu fosse: 'é possível se amar mesmo nas condições adversas em que se veio e se está no mundo'. Surge, na pena de Freud, um supereu condescendente que, ao mesmo tempo que continua a criticar o eu, não exige deste que persiga um ideal que emula a figura do opressor; ao contrário, transmuta em ideal do eu a própria capacidade de crítica e autocrítica, o que permite ao eu se identificar prazerosamente com ele e não se defender automaticamente em prol de um narcisismo fálico. 

Jô Soares representando Zezinho

Aliás, a valorização deste humor astuto é própria da tradição crítica do pensamento alemão do Esclarecimento, na qual identificar-se à argúcia crítica é a revelação de uma superioridade intelectual frente à burrice afetiva. Obviamente não se trata de algo exclusivo da tradição alemã, este mesmo uso do humor se encontra, por exemplo, em obras de Voltaire como Zadig ou o destino (VOLTAIRE, 1748) ou Cândido ou o otimismo (id., 1759) e em Machado de Assis (1881, 1899), mas está em peso nas produções literário-filosóficas de Herder (1744), Lichtenberg (1765-99), Heine (1834-40), Nietzsche (1888), do próprio Freud (1905) e de Franz Kafka (1912-27),para quem seus textos sinistros eram peças de humor.

Freud não o diz em seu artigo, mas eu acrescento que o humor revelaria uma aceitação crítica da própria castração e, ao mesmo tempo, faria emergir um outro erotismo não falocêntrico, mas parcial, ligado a prazeres não autorizados pela imposição de uma sujeição ao erotismo narcísico-fálico. Isso diz respeito à economia psíquica do humorista, sem dúvidas, todavia tem efeitos que ultrapassam o solipsismo, contagiando de algum modo os normais-neuróticos a também rirem de si mesmos e abandonarem, por algum tempo, ao menos, sua sideração pelo falo. Quando um paciente em análise consegue rir de si, aliás, é um bom sinal de que o tratamento está andando.

Este retrato do humorista feito por Freud faz jus ao caso de Jô Soares - e também de Chico Anysio - que já faziam shows solo muito antes de adotarmos o termo norte-americano stand-up comedy, que tem a vantagem, no entanto, de revelar muito do que se passa: ficar e manter-se de pé sozinho, diante de um enorme público pode ser assustador, ainda mais fazendo graça de si mesmo ou de condições desagradáveis que compartilha com o público...e, mesmo assim, o que ocorre é a comédia, e não a humilhação. A linha tênue entre a humilhação e o humor era dominada por esses mestres que faziam a gente chorar de rir com eles, conosco e com o que mais fosse alvo do humor.

Jô Soares e Flávio Migliaccio fazendo o quadro do Padre Alemão

Não se pode simplesmente decretar como um ato sádico, arrogante ou ressentido quando Jô partia para o ataque para rir e fazer-nos rir dos outros (uma crítica à sua postura em seu talk show reiterada diversas vezes por parte do público que torcia o nariz para seu humor). Entendo que esta crítica cabe a um outro caso, o do humor fascista, que é tão popular hoje em dia, de novo; humor que humilha o fraco para o forte se sentir ainda mais fálico. Pode-se seguramente dizer que não era isso o que fazia Jô por dois motivos: 1) porque ele ria de si mesmo na mesma toada em que ria do outro; o humor de Jô tinha o espírito de fazer-nos não levar tão à sério nossos melindres narcísicos, era um humor iconoclasta exatamente porque - antes de tudo - derrubou o ídolo mais difícil, o próprio eu, debochando de sua gordura, de seu exibicionismo, de sua altura etc. 2) porque quando Jô partia para fazer graça do outro, em geral, era de um outro opressor, não do fraco - algo a que, aliás, o grupo de humor Porta dos fundos dá continuidade de modo muito interessante. Basta vermos alguns dos personagens que apareciam em Viva o gordo!: o político corrupto, o oficial militar, o padre ou mesmo o telespectador mediano e boçal, um exemplo do fascista enrustido, que só queria ver mulher pelada e mais nada.

Escrevo este texto em homenagem a Jô sublinhando estas características que o faziam um grande homem e humorista - mesmo sendo baixinho! -, exatamente porque parece ter saído de moda o humorista que ri de seu próprio eu. É cada vez mais comum vermos na internet, em shows, na TV ou no cinema a figura do humorista que quer se mostrar como uma pessoas simpática, divertida, que domina a situação, que não ri de si, ao contrário, que se leva muito a sério, que é tão preocupado com sua imagem que, muitas vezes, tem o visual de um galã - bonitão, jovem, sarado, bem vestido, com um penteado fashion e cheio de si (mas não de gordura, ele é magro e saudável), pronto para rir dos outros. Só faz piada de si para destacar características elogiáveis e não seu calcanhar de Aquiles. Cheio de narcisismo fálico.

Jô representando o General Gutierrez, militar argentino fugitivo da redemocratização em seu país, escondido no Brasil, fingindo ser baiano

Não está mais na moda o baixinho franzino verborrágico e de óculos de aros grossos (Woody Allen), o negro caretereiro, nanico e com voz esganiçada (Grande Otelo), o cearense de cabeça chata e raquítico (Chico Anysio), o gordo baixinho e exibicionista (Jô Soares). Uma vez Jô disse que quando tentou emagrecer, ficou sem graça; como se diz por aí: fica a dica. A figura caricatural, grotesca, objeto da piada, tem deixado, cada vez mais, de ser o 'si mesmo' e passado a ser o outro. Não é possível não assinalar esta característica do humor contemporâneo e não lembrar das charges assustadoras dos racistas, machistas e nazistas: o alvo de suas piadas (o negro, a mulher, o judeu) é tratado de modo humilhante para que o piadista e seu publico se sintam sadicamente fálicos.

O que pode nos proteger do efeito violento deste humor do opressor é que se tome de novo a destituição narcísica como orientação ética preliminar do humor, como sustentáculo da anarquia iconoclasta própria da estética humorística. Rir de si mesmo é o que o fascista não consegue fazer, sua subjetivação é toda construída para sustentar o falocentrismo narcísico de si e de seu grupo (o partido, a religião, a nação). Primeiro riamos de nós mesmos! Sugiro, então, que tomemos Jô Soares como uma importante referência ética no humor. Seu último ato de humor de que tenho notícia, as hilárias cartas publicadas na Folha de São Paulo endereçadas à VoSSa ExcelênSSia (como escreve Jô) Jair Bolsonaro, propondo uma conversa sobre o nazismo e sobre o COVID-19, são um ótimo exemplo destas duas características reunidas: para nos fazer rir do presidente Bolsonaro (e quem sabe fazê-lo rir de si?), Jô, no texto, apresenta como condição, fazer graça de si mesmo e de nossa situação geral - como brasileiros - também. É o humor de alguém que ri de si contra alguém que só ri dos outros.

Muito obrigado, Jô! E aos outros, veja o gordo! Viva o gordo!

Cláudia Raia e Jô Soares no quadro Vamos malhar

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