Fogo contra civilização

  - SE VOCÊ QUISER LER ESTE TEXTO EM SEU IDIOMA, PROCURE A OPÇÃO "TRADUTOR" (TRANSLATOR) NO CANTO SUPERIOR ESQUERDO DA TELA -

Nesta semana, um assentamento do Movimento dos Sem Terra (MST), em Macaé, próximo a Rio das Ostras onde fica o campus da UFF em que trabalho, foi inteiramente destruído por um incêndio. A comunidade local - inclusive a acadêmica da UFF - ficou bastante chocada com o ocorrido e está tentando auxiliar as vítimas, que são, ao mesmo tempo, vítimas do fogo e da injusta distribuição de terras no nosso país. 

Incêndio no assentamento do MST de Rio das Ostras

Não tenho, ainda, informações a respeito das causas do incêndio. Contudo, se considerarmos este incêndio em conjunto com outros que ocorreram nos últimos anos e horrorizaram o país, creio que se pode discorrer sobre a força simbólica e ao mesmo tempo material que eles têm em nossa história recente e que, talvez, ajudem a pensar nossa cultura. Me refiro a uma série de incêndios chocantes: o do Museu Nacional, o do Ninho do Urubu, o do Pantanal, o da Amazônia e, agora, esse.

Antes, porém, gostaria de comentar alguma coisa a respeito de um texto de Freud que relaciona a aquisição do controle sobre o fogo e o desenvolvimento da civilização (FREUD, 1932). Ali Freud se debruça sobre o mito de Prometeu buscando a verdade histórica que jaz por trás dele e de outros mitos e lendas de outras culturas a respeito do domínio sobre o fogo: "Aqui deve estar (...) um conteúdo essencial das lembranças distorcidas da humanidade" (id., ibid., p. 184).

Para quem não lembra, Prometeu cometeu um crime contra os deuses, roubou o fogo deles e o conduziu, num pau oco, para os homens, para, depois, ser punido por Zeus, da seguinte maneira: foi acorrentado num rochedo onde, toda noite, um abutre lhe devora parte do fígado. Prometeu é punido na sede dos desejos segundo os antigos - o fígado - o que levaria a seu crime ser facilmente visto como ter ousado desafiar os deuses através da afirmação dos desejos humanos, demasiado humanos (o que, aliás, era a típica interpretação romântica do mito), indestrutíveis, e, por isso mesmo, eternamente sendo destruídos pelo abutre. Freud também considera que controlar o fogo, mantê-lo, não apagá-lo significaria também a renúncia à satisfação da libido que permanece ardendo e impondo-se, assim, como o primeiro ato civilizatório humano.

Prometeu (José de RIBERA, 1652)

Ainda para Freud, apagar o fogo remeteria à satisfação erótica uretral/fálica: o pênis, ao descarregar o jato de urina, aliviaria a excitação, apagando o 'fogo' interno e também apagando com essa 'água' o fogo real, externo. O pênis é, assim, a primeira mangueira para apagar incêndios. O fogo externo, com toda sua potência, exatamente porque remete ao calor excitatório, aposta Freud, também simbolizaria um falo - um outro falo, de outro portador. Logo, estamos considerando, aqui, uma situação, uma cena de disputa fálica. Pode-se dizer, então, com Freud, que o ato civilizatório estaria em não mais querer destruir o outro que poderia ser visto como rival, mas em renunciar a isso, mantendo-o de pé. 

Ao contrário, a lógica da rivalidade entre indivíduos que almejam se impor e controlar os outros, se colocando na posição de soberanos a todo custo, seria anti-civilizatória. Dito de outro modo, é a fixação no erotismo fálico o que leva a interpretar outras forças que possam se afirmar - como é o caso do fogo - como fálico e, portanto, rival. Na lógica falocêntrica, o homem, suposto detentor do órgão de gozo, é, nas palavras de Lacan, poder em pura perda (LACAN, 1972-73): ele está sempre medindo, disputando, tentando se reafirmar como fálico, acirrando, à revelia de suas intenções, a angústia de castração, violência contra qualquer outro que se afirme, mesmo que essa afirmação nada tenha a ver com uma disputa, mas seja apenas diferença, um outro modo de ser. 

Nietzsche, em Genealogia da Moral (1886) propôs pensarmos dois tipos de moral, uma dos fortes, outra dos fracos. Poder-se-ia pensar que os fortes são os que querem se mostrar fálicos, mas surpreendentemente é a moral dos fracos que mais parece relacionar-se com a lógica fálica: nela, inveja-se, ressente-se da força dos outros (os fortes), considerando-os maus, inimigos, e, assim, buscando-se, através de artimanhas, conquistá-los; enquanto a moral dos fortes funciona de modo completamente diferente, é como se se falassem línguas diferentes: ela divide o mundo entre o que é bom e o que é ruim, o que interessa e o que não interessa; o forte faz, age, não considerando o outro como alguém que deve ser vencido, ele não está ocupado com o outro, mas sim em afirmar sua vontade, procurar o que é bom, seu modo de ser, seu estilo; seu problema é que o outro se sente ofendido com ele por ele não se interessar pelo modo de vida daquele, achando-o ruim; o fraco (que queria ser adorado, ser fálico) se sente humilhado por não gerar interesse, fica ressentido, enraivecido. O forte pode pagar o preço de uma ofensa sem intenções sofrendo a vingança da agressão que nem imaginou nem desejou causar, ele apenas quis ser.

A lógica do ressentimento dos fracos é que é a fálica. Ela é, por exemplo, um dos motivos para muita gente sentir horror à feminilidade, ao movimento feminista, aos homossexuais ou a formas de prazer não-fálicas (e isso, aliás, inclui o próprio Nietzsche e sua misoginia [id., 1885]). O que, segundo Freud, seria, repito, anti-civilizatório.

Feito este détour filosófico após uma introdução psicanalítica ao tema do fogo, antes de comentar os incêndios acima citados, quero lembrar ainda que o artigo de Freud sobre a aquisição do fogo é uma espécie de adendo ao seu ensaio Mal-estar na civilização (FREUD, 1930). Neste último, Freud nos mostra que a civilização é pautada na renúncia à satisfação direta das pulsões em nome de laços mais estáveis, nos quais a chama não se apaga. Mas Freud também lembra que a renúncia à satisfação das pulsões não incide somente sobre as pulsões de vida, mas também sobre as pulsões de morte, e o efeito disso é que a violência que seria exercida contra o exterior é, então, voltada em direção a si mesmo: isso vale para indivíduos, como para grupos ou povos; eis a verdadeira causa do mal-estar na civilização, que, comumente, se expressa no sentimento de culpa.

Prometeu cria o ser humano, sarcófago romano, 240 a.c.

Seguindo o raciocínio de Freud, temos o seguinte problema: enquanto a civilização trabalha para sustentar laços e ampliá-los, ela também leva à autoagressão, por exemplo, através da culpa. Mas há sempre uma possibilidade, diante da dor moral que a experiência da culpa carrega: há movimentos - de tempos em tempos - de expulsão da culpa. Culpar, de novo, o outro, o bode expiatório - isso é agir contra a civilização em nome da sustentação de um determinado grupo; agredir certos outros, destruí-los, é um modo de certos grupos sobreviverem e se amarem. Na chave da lógica falocêntrica, os grupos atacados são imajados como rivais que querem se impor, que querem subjugar os outros e, assim, encontra-se motivos para desejar - e às vezes atuar - a morte, a destruição deles. Na lógica da disputa fálica, como indica Lacan ao estudar os fenômenos da identificação segundo a lógica do imaginário (LACAN, 1948), o outro é um espelho em que o sujeito se vê; dizendo melhor - o sujeito vê em si um outro e vê no outro sua própria imagem simétrica. Sugiro, então, continuando a discussão freudiana sobre a disputa entre o pênis cheio de água e o fogo, que pode-se muito bem se identificar não somente ao falo que urina, mas também  ao fogo que quer destruir o outro tomado como um suposto falo que quer apagá-lo, que é visto como quem quer 'mijar nele'.

Incêndio no Museu Nacional, Rio de Janeiro, em 2018

E, assim, chegamos, finalmente, aos incêndios que vêm queimando o Brasil. 

1) O incêndio do Museu Nacional foi uma tragédia tanto cultural quanto intelectual, pois além de museu, ali também funcionava um dos mais respeitados programas de pós-graduação do Brasil. Ver o museu ser devorado pelas chamas foi muito triste - como também foi muito triste o incêndio da Notre Dame de Paris, naquele mesmo ano. Porém, mais triste foi saber que alguns brasileiros tornaram pública a doação que fizeram à restauração da catedral gótica de Paris, porém não tive notícias do mesmo - nem dos mesmos montantes de dinheiro - no que diz respeito ao palácio da Quinta da Boa Vista. Além da posição colonial que só vê valor na cultura europeia, e não na brasileira, o incêndio do Museu Nacional simbolizou o descaso e também a transformação em inimigos tanto da classe artística quanto dos intelectuais acadêmicos em geral que foram quem mais e melhor expressaram o choque com o incêndio. O que se seguiu reforça isso: a erradicação do ministério da cultura, a acusação das universidades de serem centros de balbúrdia ou conspiração golpista. 'Que queimem no Inferno', talvez algum defensor da ordem falocêntrica poderia dizer; afinal, esses artistas e intelectuais têm a mania de criticar o poder...'devem ser rivais'. E para completar o quadro, parece que alguns monarquistas estavam incomodados com o fato de o museu ter permanecido nas mãos da UFRJ, considerando que o melhor seria devolvê-lo aos herdeiros da família real!

Aqui vale uma nota; quando Freud tomou conhecimento, em 1933 (um ano depois de seu artigo sobre a aquisição do fogo) da fogueira que Hitler fez com livros de diversos intelectuais, inclusive livros do próprio Freud, ele comentou, com seu humor de sempre, que via naquilo um progresso pois, no passado, não queimariam os livros e sim as pessoas. Muita gente vê em Freud um pessimista, mas esta frase nos mostra um Freud otimista iludido. Ora, sabemos que o nazismo queimou primeiro os livros e, depois, queimou também as pessoas. O nazismo é a evidência maior, assim, de como, de dentro da civilização, pode emergir a barbárie anti-civilizatória (ADORNO & HORCKHEIMER, 1944). Portanto, quando vemos um museu e o trabalho dos intelectuais arderem em chamas e, em seguida, uma resposta insossa por parte dos dois presidentes que governaram o Brasil de lá para cá, Michel Temer e Jair Bolsonaro, deveríamos ficar ressabiados e não tranquilos como Freud equivocadamente parecia estar ainda em 1933, mas não mais em 1938, quando teve de fugir da Áustria para não morrer queimado.

O que restou dos aposentos do Ninho do Urubu após o incêndio de 2019

2) O incêndio no Ninho do Urubu matou crianças. Estas crianças eram promissores atletas do Clube de Regatas do Flamengo, que dormiam no centro de treinamento do clube (o Ninho do Urubu), mas, antes de tudo, eram crianças pobres que queriam realizar seus sonhos de serem jogadores de futebol do Flamengo e os sonhos da família de tirá-los da pobreza. O incêndio ocorreu justamente quando o Flamengo botou suas contas em dia e conseguiu, através de sua capacidade de arrecadação econômica, se tornar uma das maiores potências do futebol sulamericano, com alguns craques no elenco que garantiriam (e garantiram) ao clube estar sempre disputando títulos e alegrando sua torcida, a maior do país. O modo como a instituição lidou com a morte dos jovens atletas importa. Não me refiro aos processos jurídicos em ação, não entendo do assunto, mas  posso comentar os atos simbólicos: o clube, na figura de seu presidente Rodolfo Landim, não transmitiu à torcida, à imprensa e ao público em geral, a consternação por aquelas mortes que se esperava de sua pessoa e da instituição que representa, não mostrou como aquelas vidas importam, não chorou publicamente por elas. Pareceu, com isso, que elas foram sentidas bem mais como empecilhos na construção da nova imagem do clube, como perigos contra a atração de parceiros econômicos (de público em geral, de sócios-torcedores, de patrocínio, da imagem comercial), importantes para a meta do clube em se mostrar uma potência futebolística quasi-empresarial. As famílias dos meninos do Ninho do Urubu foram tomadas - simbolicamente -, pela diretoria do clube, como rivais que queriam prejudicar o clube economicamente: acontecimento sinistramente análogo ao modo como o presidente Jair Bolsonaro - aliás, apoiado e apoiador daquele presidente do Flamengo - procedeu diante das mortes por COVID-19; não mostrou consternação ou apoio público, pois estas mortes e o medo delas seriam, no discurso do presidente, inimigos da economia, que não podia parar, e de seu governo, que deveria se mostrar como força bem sucedida em elevar o Brasil, de modo messiânico, à glória.

3) O Pantanal e a Amazônia têm queimado muito nos últimos anos. Sabemos, através de um ex-ministro da agricultura do atual governo, que há uma vontade de 'deixar a boiada passar' (sic), ou seja, de beneficiar, como for possível, as forças ruralistas. Quem é o rival da boiada, ou melhor, dos proprietários da boiada e de seus apoiadores? A resposta é óbvia: a floresta e quem vive nela e dela, seja humano ou não. 'Que queimem!'. Novamente o sonho fálico de tornar o país - e alguns indivíduos - cada vez mais poderosos economicamente rivaliza com as preocupações ecológicas com o bem-estar e o futuro de todos nós (inclusive dos próprios 'empresários de bois') como concorrente numa disputa de falos. 

Incêndio no Pantanal, 2020

4) O assentamento do MST queimou. Bem, o atual governo e seus apoiadores já disseram muitas vezes - inclusive no programa de governo apresentado na candidatura de 2018 - que um dos objetivos deste governo, se eleito, seria destruir a esquerda no país. O projeto era de destruição não só da esquerda, mas das políticas criadas por ela e das instituições historicamente vinculadas à esquerda. Ora, o MST sempre foi um movimento de esquerda que luta, antes de tudo, pela reforma agrária. Novamente é tomado como rival, inimigo, como alguém que deve queimar, e não alguém com quem se tem de dialogar. Por isso, há algo de anti-civilizatório no discurso deste governo e em um bocado de suas práticas.

As causas destes incêndios foram várias, alguns acidentes, alguns crimes, alguma negligência aqui ou acolá. Não me interessa neste artigo focar este ponto e sim o modo como estamos lidando com eles. Este modo porta a marca de nosso tempo. Há quem goze com os incêndios do assentamento do MST, da Amazônia, do Pantanal e do Museu Nacional como uma vitória. Há quem não queira admitir a dor e o horror das mortes do incêndio no Ninho do Urubu como se isso fosse uma armadilha contra um projeto de poder. 

Prefiro viver numa civilização em que cuidamos da cultura, da intelectualidade, das florestas, das crianças e de quem não tem terra para plantar nem viver. E que quando não o conseguimos, lastimamos o ocorrido, pranteamos a perda, fazemos o luto com os rituais que convêm, tentando, mais à frente, melhorar nossas práticas de cuidado para não repetirmos tais tragédias. Parece o óbvio. Mas precisa ser dito. 

Lembremos Freud: o ato civilizatório não está em rivalizar, mas sim em aceitar que outras forças podem arder por aí. Nem mijar nos outros, nem incendiar, mas guardar o fogo consigo e fazê-lo aquecer nossas lareiras, onde podemos formar um lar para vários: eis o gesto prometeico civilizador.

Incêndio na Amazônia, 2020

Comentários

  1. Excelente, Pedro. Muito bem articulado a nossa história recente.

    ResponderExcluir
  2. Obrigado! E olha que nem incluí a Boate Kiss para o texto não ficar grande demais!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Trompe l'oeil na formação de psicanalistas

Psicanálise, velhice e solidão (e uma crítica a Pasternak)

Um ato falho histórico ou O Inconsciente nas franjas do marketing