Dois modos de honrar o Pai: um conservador, outro libertário
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Levando em consideração que o domingo 14 de agosto é o segundo do mês, e por isso é o dia dos pais de 2022, e que na última quinta-feira 11 de agosto foi lida publicamente uma nova Carta pela Democracia na faculdade de direito da USP, reeditando o ato que ocorreu em 1977, quero discutir aqui o papel do Pai como ideal. Relacionarei, no corpo do texto a seguir, portanto, o dia dos pais, a Carta pela Democracia e o Pai em psicanálise.
O filho punido (Jean-Baptiste GREUZE, 1778) |
Especialmente no campo psicanalítico, parece que, recorrentemente, se manifestam duas formas de se relacionar com o Pai: Figura a ser preservada, deificada, a que devemos nos submeter como garantia de estabilidade psicossocial? Ou pai que deve ser morto em nome do novo?
Esta dupla relação dos psicanalistas com o Pai se deve a) à história pessoal de Freud, b) à história do movimento psicanalítico e c) à teoria psicanalítica.
a) Em sua história pessoal, sabemos, através de seus relatos (FREUD, 1925), acentuados por seus biógrafos Ernest Jones (1961) e Peter Gay (1988) que, quando criança, Freud viveu uma cena impactante, talvez traumática: Andava pelas ruas de Viena, de mãos dadas com seu pai, quando um antissemita agrediu e ofendeu o pai do pequeno Sigmund, considerando-o 'escória judaica'. O menino achou que seu pai revidaria, mas o velho Freud apenas saiu da cena humilhado com a cabeça baixa. Sigmund não podia tolerar aquilo! Por isso, ao mesmo tempo em que seu pai foi desidealizado como figura poderosa, potente, perfeita e heróica, o menino jurou para si mesmo que, ao atingir a maturidade, nunca aceitaria ser tratado assim, que iria se impor diante do agressor. E eu acrescentaria: e assim limparia o nome da família, honrando o pai. E, talvez, parte de sua trajetória, parte de seu esforço em ser reconhecido internacionalmente como um grande cientista, respeitado por muitos, se deva - acreditam os biógrafos - a essa cena.
Esse episódio da história pessoal de Freud ao mesmo tempo serve de exemplo como talvez de estímulo ao seu estudo da relação ambivalente com o pai própria do arsenal fantasístico dos psiconeuróticos (em especial os obsessivos, apesar de que Freud suspeitasse sofrer de histeria). Muitos anos depois, na palestra sobre o mito individual dos neuróticos (LACAN, 1953), Jacques Lacan é assertivo sobre o assunto: diante do pai humilhado, o sujeito visa, através de suas fantasias/sintomas, salvar o pai - este é o núcleo do quadro psiconeurótico. Ao mesmo tempo em que o sujeito, por amor, se dedica a salvar o pai, quando ele próprio consegue realizar o que o pai não conseguiu, atualiza a humilhação do pai, agora superado pelo próprio filho. O caso clínico de Freud conhecido como o do 'Homem dos ratos' (FREUD, 1909) é exemplar quanto a esse assunto e, não por acaso, serviu de base argumentativa na palestra de Lacan acima mencionada.
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Cena de Fanny e Alexander (Ingmar BERGMAN, 1983) em que o pastor-padrasto confronta o rebelde Alexander |
b) Ao criar o movimento psicanalítico, Freud, acompanhado de seus poucos discípulos dos primeiros anos do século XX, visava divulgar a prática terapêutica e o conhecimento produzidos pela psicanálise bem como esclarecer a respeito de práticas e teorias que, seja por falta de rigor ou charlatanismo, diziam-se inspiradas em Freud, mas que, na verdade, diferiam profundamente da psicanálise. Importava também ganhar respeito científico-acadêmico, além de desvincular a psicanálise do jargão pejorativo de 'ciência judaica', pois ela era praticada por um pequeno grupo cuja maioria dos membros era, de fato, formada por judeus, numa Europa onde o antissemitismo se desavergonhava novamente, como ocorre de tempos em tempos.
Foi nesse contexto que a alcunha de 'pai da psicanálise' foi, aos poucos, se ligando a Freud; foi também quando Freud passou a considerar Jung seu 'herdeiro', seu 'filho predileto' que ainda tinha a vantagem de não ser judeu e, assim, salvaguardar a psicanálise do preconceito racial-religioso (GAY, 1961). Jung foi tornado o presidente da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) porque era criativo, brilhante, porque Freud tinha muitas esperanças quanto a ele e devido aos fatos de estar vinculado a um hospital universitário, por não ser judeu (ao contrário! Era filho de pastor) e a trabalhar e prosperar noutro país que não a Áustria, mas sim a Suíça, expandindo, deste modo, os 'domínios' do movimento.
Não vou recapitular com detalhes, aqui, a história que se segue. Jung se distanciou demais, tanto em sua prática quanto em sua teoria, da psicanálise, sendo, tal como Stekel e Adler, retirado/expulso da IPA e do movimento psicanalítico (FREUD, 1914). Esta história se repetiu com muitos que, devido aos rumos de sua prática ou de suas ideias, divergiam do que já estava estabelecido. Foi o caso de Reich, por exemplo. Rank e Ferenczi foram desacreditados, neutralizados, levados a um certo ostracismo, sem serem expulsos, é verdade. As tensões na escola inglesa, entre Melanie Klein e Anna Freud, talvez levassem a um destino terrível para a primeira caso não se tivesse construído uma costura diplomática entre as duas forças - efetuada por nomes como Fairbairn e Winnicott. E, novamente, a história se repetiu com Lacan, 'excomungado' da IPA...mas que, ainda assim, continuou se afirmando como psicanalista e, na verdade, se fortalecendo ao fundar uma escola e um movimento que perdura até hoje sem se submeter ao punho forte daquela Associação.
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Zeus (século I), Villa Getty, Los Angeles |
Ao que nos interessa, pode-se dizer que, historicamente, o movimento psicanalítico atuou como um aglomerado de guardiões do pai tirânico, esperando dos filhos do 'Pai da psicanálise' que se submetam a ele, que sejam obedientes, que jamais inventem algo não previsto pelos cânones, caso contrário, seriam deserdados.
c) O caso clínico do 'Pequeno Hans' (FREUD, 1909) e o ensaio Totem e tabu (FREUD, 1912-13) apresentam uma teoria psicanalítica do pai, que será ainda complementada por O eu e o isso (FREUD, 1923) e Moisés e o monoteísmo (FREUD, 1938). De modo sucinto, pode-se dizer que o pai é peça fundamental na dissolução do famoso Complexo de Édipo (FREUD, 1925). Tendo em vista que a relação entre mãe e criança é marcada pelo erotismo incestuoso, a intervenção do pai como quem barra aquela relação opera a castração (em Freud [1923], castração do filho - agora assombrado pela força do pai como figura castradora, ele desenvolve a angústia de castração que o afasta das fantasias incestuosas -, e, em Lacan [1956-57], castração da mãe - que revela que o desejo dela não é exclusivamente voltado, muito menos satisfeito pela criança, mas que se liga a algo além do par mãe-bebê). A função paterna é a de barrar, castrar, mas, com isso, oportunizar algo novo: o direcionamento do desejo da criança para além da mãe. É nesse sentido que o pai é internalizado não somente como supereu ameaçador, mas também como ideal do eu: ele serve de modelo, de oferta de mapeamentos da existência para onde a criança pode direcionar seu desejo agora desvinculado da mãe; nesse sentido, a intervenção do pai é socializante pois retira a criança do seio da família e possibilita que invista na cultura, em seus modos de gozo, em seus ideais, em outros objetos.
O pai da teoria psicanalítica é, assim, ambivalente. É o pai cruel, que amedronta o sujeito com sua força, com suas criticas, com sua Lei - o supereu -, contudo não é só isso; ele é também um pai que oferece destinos para o desejo - como ideal do eu -, mas, oferece, potencialmente, condições para que o desejo não seja sempre uma submissão ao Outro, que seja também algo que sempre escorre para mais longe, para fora dos domínios da mãe - certamente -, mas também do próprio pai.
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Saturno devorando um de seus filhos (Francisco de GOYA y Lucientes, 1823) |
Se o pai desloca o sujeito da dinâmica imaginária de amor e agressividade com a mãe (LACAN, 1948), no entanto, o captura noutra rede, mais ampla, todavia ainda assim alienante, desta vez centralizada, ordenada pelo significante Nome-do-Pai, que recorta a existência neurótica como uma estrada/avenida principal recorta, mapeia e orienta uma cidade (LACAN, 1955-56). Para chegar a qualquer ponto, pode-se seguir outras vias, mas a via mais certeira, mais segura, é a do Pai: o neurótico submete-se ao Nome-do-Pai como comando e ordenamento da existência, o que traz certa segurança e estabilidade que falta, por exemplo, ao psicótico.
Depois dessa apresentação abreviada do tema do pai em psicanálise, destaco, finalmente, que, para Freud, a direção do tratamento de um psiconeurótico seria aquela de levar-nos a "matar o pai"; por este mesmo motivo, ele considera o enfraquecimento da crueldade do supereu um efeito esperado de uma análise. Tal como Édipo, devemos matar o pai, porém, diferente de Édipo, não para possuir a mãe, pois já o pai nos transmitiu o interdito do incesto, mas sim para nos livrarmos da submissão masoquista e neurótica ao discurso do pai tomado como lei absoluta, libertando nosso desejo da mãe - certamente - mas também do pai, para fazê-lo nosso.
É nesse sentido que Lacan, em seu O seminário livro 23: o sinthoma (LACAN, 1975-76) nos fala em prescindir do pai, mas acrescenta: na condição de nos servirmos dele. Matar o pai não é rasgar o mapa ou destruir a estrada principal, é construir nosso próprio caminho, nosso próprio mapa, a partir daquelas referências que serviam àquele sujeito, o pai; o sujeito que sou não é idêntico a ele; o recurso que disponho para nodar/estruturar-me enquanto subjetividade não pode ser, assim, idêntico ao pai; ele é, assim, uma père-version (pai-versão, homófono a perversão): cada um faz a versão do pai que pode, transformando-o, modelando-o, torcendo-o para que o sujeito possa se posicionar como um ser desejante que construiu suas modalidades singulares de gozo e não apenas como alguém assujeitado ao Outro.
Pois bem, se encontramos, portanto, em alguns grupos psicanalíticos um enorme esforço à submissão dogmática, rígida e assujeitada ao pai (sejam eles a IPA com Freud, o movimento lacaniano [onde Lacan se tornou - e ele mesmo percebeu a ambivalente e problemática posição que ocupava - um pai severo/persevero; "Je père-severe" {LACAN, 1980, p. 320}], ou outros grupos), isso se deve a uma posição conservadora e, diria Freud, neurótica, uma reação deificadora do pai por temor de vê-lo humilhado e de ver os filhos como desamparados e desnorteados.
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Cristo Pantocrator (1166), Catedral de Cefalu, Sicília, Itália |
Se quisermos acentuar a força subversiva da psicanálise, devemos, ao contrário, sempre lembrar que matar o pai é libertador e pode ser um modo de honrá-lo também, na medida em que a intervenção do pai é, antes de tudo, o que oportuniza o desejo de se libertar da alienação à mãe, mas também ao próprio pai. O que o pai da psicanálise nos lega é uma experiência (a psicanálise) em que o desejo é libertado porque o pai está morto; não é por outro motivo que Freud argumenta que a transferência que o paciente faz ao analista deve, ela mesma, ser posta em análise e liquidada - isso libertaria o desejo da submissão ao analista/hipnotizador/líder/Pai (FREUD, 1921). Os pais só são honrados quando seus filhos obedecem ou não é verdade também que há aqueles que se sentem honrados quando seus filhos 'se viram'?
Querer sustentar o pai como regente da sociedade, dos costumes, da existência, é uma força que mobiliza a política reacionária que governa o Brasil hoje. Não querer eleições, querer um Estado de exceção, parece ser algo que se sussurra cada vez mais alto pelas esquinas - talvez pelo medo de as eleições serem o momento do voto (voto = desejo), da liberdade de escolha instituída, do desejo testar as amarras do Pai (e aqui, obviamente, estou falando também das amarras impostas pelo Deus-pai). Ao contrário, reeditar a Carta pela Democracia se alinha à direção ética libertária da psicanálise - pretendo mostrar isso abaixo.
Totem e tabu (FREUD, 1912-13) ilustra a derrota da tirania através do assassinato do pai pelos filhos que estabelecem, depois, uma ordem igualitária que, ao mesmo tempo é assombrada pelo saudosismo do pai. A neurose também se orienta assim, ela é conservadora, ela mantém vivo o sonho do pai infalível, violento e tirânico, no esforço de tirá-lo da humilhação, nem que seja preciso ao sujeito adoecer por ele. Recolhendo o que já disse até agora, pode-se dizer que a morte do pai é, como Freud desenvolve, condição da democracia e, ao mesmo tempo, direção do tratamento: a afirmação de si como sujeito desejante.
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George Washington (Gilbert STUART, 1796) |
Carta pela Democracia, que é a reatualização da de 1977, que criticava a situação sinistra e perigosa que a ditadura militar impingiu aos brasileiros (com apoio político-moral dos setores conservadores da sociedade civil), reafirma a atitude modernista de sustentar a igualdade e a liberdade, condições da democracia. A Modernidade é, desde o Iluminismo (VOLTAIRE, 1763; KANT, 1783), passando por Nietzsche (1883) e por Peter Sloterdijk (1983), um esforço crítico diante da tradição paterna, de arejá-la, de apontar sua inconsistência, mas, ao mesmo tempo, instituindo-se ela mesma como 'nova tradição' transgressiva, desejante e crítica (ARENDT, 1961). Michel Foucault chegou a propor em 1963 que nós, modernos, estamos fadados à transgressão. A própria psicanálise é efeito e ator importante nesta 'nova tradição' modernista e a reação a ela, a atitude reacionária de restabelecimento do Pai é, neste jogo político, alienante do desejo, regressiva, antidemocrática e o avesso da psicanálise. Sendo assim, só há uma posição política e ética possível aos psicanalistas brasileiros diante da Carta pela Democracia - assiná-la e afirmá-la diante da pólis.
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