A Gestalt, o Belo e o Renascimento; a Psicanálise, o desejo e o Barroco

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27 de agosto é o dia do psicólogo.
Sou psicólogo formado, sou também professor de psicologia da UFF e este blog é uma atividade de extensão deste curso. Porém sou também psicanalista e, para quem não sabe, psicanálise e psicologia não são a mesma coisa, mesmo que desde os anos 1970 para cá, no Brasil, cada vez mais a maioria dos psicanalistas seja formada em psicologia.

À rigor sequer se pode dizer que há uma psicologia; há psicologias. Mas, grosso modo, o que as reúne num campo mais ou menos considerado unitário é que se dedicam a pensar a mente humana como um objeto - forçando o argumento eu diria que tomam o sujeito como objeto, mas, para isso, consideram o que é objetivável da subjetividade. Para algumas o objetivável é o comportamento, para outras é a percepção, para outras o desempenho intelectual - e há ainda outras. 

Auto-retrato com 63 anos (REMBRANDT van Rijn, 1669), um bom exemplo de como a arte (barroca), tal como a psicanálise, ao mesmo tempo em que objetaliza o sujeito, lhe permite 'falar' e indica que algo escapa à captura

A psicanálise é, por sua vez, a escuta do inconsciente - e também a teoria construída para dar conta desta experiência. Ao postular o inconsciente como estrato fundamental do aparelho psíquico (no qual o pensamento consciente e objetivável é apenas a ponta do iceberg chamado aparelho psíquico [FREUD, 1900]), Freud toma o sujeito falante, seu paciente, não como um objeto a ser investigado, mas como o próprio investigador que, auxiliado pelo analista, busca acessar, dentro dos limites impostos por suas defesas psíquicas, o inconsciente. Mesmo que tenha reconhecido algumas regras de funcionamento do inconsciente, Freud o mantém o tempo todo como algo aberto, um enigma que não se pode dominar e que só se pode saber dele ao dar ao sujeito a palavra. Mas o próprio sujeito consciente encontra limites em objetivar sua experiência inconsciente, como Freud indica já em 1900, ao sinalizar o umbigo do sonho, e mais tarde, ao cogitar a existência de forças desvinculadas de qualquer representação mental (de qualquer pensamento) no aparelho psíquico, as pulsões de morte (FREUD, 1920). 
Muitos anos depois, em "A ciência e a verdade" (1965), Jacques Lacan clarifica a posição da psicanálise em relação ao modo de produção de conhecimento científico: enquanto a ciência precisa foracluir o sujeito como condição de seu funcionamento, ou seja, enquanto se toma o objeto como intocado, não deformado por nenhuma interpretação e como revelador de uma verdade significante transcendente a qualquer singularidade subjetiva, a psicanálise (assim como a arte) oferece um espaço para este mesmo sujeito se manifestar. Escutar o inconsciente, dar a palavra ao paciente para que este associe livremente a respeito de seus sonhos, sintomas, episódios da vida, é justamente a prática que, eticamente, se orienta por não objetivar, mas ao contrário, reconhecer a singularidade do sujeito que fala.

Dito isso tudo, o leitor poderia acreditar que eu seguiria meu texto enfatizando a distância entre a psicanálise e as psicologias. 
Porém, tratando-se do dia do psicólogo, gostaria de mostrar os efeitos de uma linha da psicologia na psicanálise. E mais do que isso, tratando-se de um blog sobre psicanálise arte e cultura, também pretendo mostrar como essa psicologia auxiliou a psicanálise a pensar a experiência estética do Belo. A psicologia a que me refiro ficou conhecida como Psicologia da Gestalt e o psicanalista que pôde importar algumas ideias dela para a psicanálise é o já citado Jacques Lacan.

Quando Lacan se lançou a pensar a formação do eu (LACAN, 1949), se interessou pela psicologia da percepção e do comportamento dos animais e, em particular, pelo fato de que os animais respondem a certos padrões, patterns, de modo quase imediato. Na formação do eu humano e numa certa dinâmica das relações humanas de atração e agressividade (id., 1948), Lacan encontrou similaridades importantes ao que se produzia de conhecimento através da psicologia animal, ao menos daquela mais ou menos orientada em torno da ideia de gestalt. As pesquisas a respeito de como os animais percebem e respondem a estruturas inspiraram Lacan a reconhecer que o humano busca, no campo perceptivo, fechar uma gestalt, no caso, a respeito de sua própria imagem; a Lei da Boa Forma - ou seja, o esforço perceptivo por completar formas de modo que elas pareçam inteiras, se associem ao já conhecido, ao menos tenso e ao mais unitário - imperaria na formação do eu.

Imagem utilizada em experimentos gestaltistas: sua ambiguidade dificulta o fechamento numa unidade estável; somos forçados a oscilar entre decidir pelo que é figura e o que é fundo

O eu, indica Lacan, mais do que um lugar psíquico ou muito menos o cerne de nossa subjetividade, é uma imagem percebida, ele é uma gestalt, se forma tomando como parâmetro a imagem do outro humano: o outro tomado como idêntico, como experiência do mesmo. O eu espelha o outro e, ao mesmo tempo, o outro é reconhecido como um outro eu. Em Lacan, a busca de fechamento de uma gestalt que apazigua a experiência é ainda o que orienta a compreensão da conduta amorosa do eu (o amor é um modo de unir-se ao outro formando um e aliviando a tensão da excitação libidinal), bem como da conduta agressiva (nesse caso, ao se eliminar o outro aversivo, encontra-se, de novo, a paz).

Porém, o eu é, desde Freud (FREUD, 1914, 1923), e novamente para Lacan, apenas a parte de nossa subjetividade que, justamente, foi objetalizada. O eu é um objeto do olhar amoroso ou agressivo do outro, bem como de si mesmo. A dinâmica de amor e agressividade que forma e pauta o funcionamento do eu indica aquilo que Lacan chamou de campo do imaginário. Diante do real, os animais conseguem responder a partir de seu instrumental perceptivo-imaginário. Os humanos são animais, também têm esse instrumental, mas Lacan considera que a precocidade neurológico-motora do bebê humano sinaliza para a possibilidade de se pensar que o imaginário humano é 'capenga', não tão bem aparatado como o dos demais animais - a consequência disso é que não sabemos responder imediatamente a uma série de experiências para as quais outros animais estão preparados. Se a psicanálise estudasse unicamente o eu, ela seria uma psicologia como as outras, mas algo da experiência humana não é objetalizável, não se deduz da dinâmica imaginária.

Esse algo é, pensa Lacan, o sujeito. O sujeito e o eu não são a mesma coisa. Enquanto o eu é objeto, capturado em imagens totalizantes, o sujeito é a parte de si que olha essa imagem e diz 'aquele sou eu', indicando, ao mesmo tempo, a diferença entre o sujeito que diz e a imagem que vê e a alienação que ela precipita nele. Aquilo que se expressa como não compondo a gestalt  e, malgrado o eu, vem de si mesmo, oportuniza a distinção entre o sujeito do inconsciente e o eu, que se julga o senhor de si (FREUD, 1923). 

Portanto, o sujeito se anuncia através da fala. Não é de modo imediato-imaginário que se pode indicar a assunção de um sujeito, mas, ao contrário, se no intervalo entre a percepção e a possível resposta o que se tem é a tomada da palavra, estamos lidando já com uma intermediação simbólica à experiência imaginária. Falar implica uma divisão do sujeito, pois o ato de falar estabelece, num só lance, que os recursos simbólicos - significantes - se materializam no dito (onde se pode denotar um sujeito do enunciado) e produzem o efeito de um sujeito que diz, um sujeito da enunciação. Esse último é o sujeito do inconsciente, ele não é o objeto do discurso (este é o eu), ele é quem se indica, ainda assim, através do que foi dito, sempre fugidio à captura objetivante (LACAN, 1960-64).

Os danados (Luca SIGNORELLI, 1499-1503)

O sujeito do inconsciente, então, é a incontornável, porque estrutural, abertura que se impõe à tentativa de se fechar uma gestalt. Mais do que isso, ele escapa não só à captura da imagem, mas também à do significante; por isso mesmo, podemos ler o seguinte em O seminário livro 10: a angústia:
"No próprio lugar em que seu hábito mental lhes indica procurar o sujeito, ali onde, a despeito de vocês, perfila-se o sujeito (...), ali onde existe no discurso o que vocês articulam como sendo vocês, em suma, ali onde vocês dizem Eu [je], é propriamente aí que, no nível do inconsciente, situa-se a." (id., 1962-63, p.116)
Este a, o famoso objeto a, é o modo de Lacan escrever o resto da operação simbólica, de indicar que algo insiste como não inscrito, como furo na potência da linguagem de capturar a experiência. Além disso, é também a causa do desejo, pois este último é conceituado por Lacan, na esteira de Freud, como tentativa de reencontrar o objeto perdido. Repito: Lacan define o objeto a como a causa do desejo; isso se entende da seguinte maneira - o resto da operação simbólica de inscrição significante que sempre fracassa em capturar o ser impele o sujeito nas vias do desejo como falta-a-ser, como agente desejante.

Mas o que isso tudo tem a ver com a experiência do Belo que eu havia prometido pensar neste texto? 
Basta folhearmos a História da beleza, organizada por Umberto Eco (2002) e encontraremos a definição que Platão faz do Belo se repetindo volta e meia na história ocidental (o que atesta a força do platonismo até nossos dias, como por exemplo na estética Românica, depois na do Renascimento e, novamente, no Neo-Clássico), e encontraremos nessa definição de Belo o que os gestaltistas chamam de Boa Forma/Gestalt e que Lacan considerará para se pensar a dinâmica imaginária que forma e orienta o eu. Eco mostra que Platão delineou a noção de Belo associando-a a harmonia e proporção das partes, tal como já o fizera Pitágoras, e acrescentou a ideia de esplendor que se destaca contra um fundo sem o mesmo interesse. O Belo leva à admiração contemplativa, ao apaziguamento e à associação com o Bom. Nós nos conduziríamos, sempre que pudéssemos, em direção ao Belo. O amor seria a evidência deste movimento, o que se confirma no ditado 'quem ama o feio, bonito lhe parece', sem desconsiderar a ambiguidade da mensagem (é o amado que parece belo - o sentido que quis enfatizar -, mas há outro sentido aí contido; o amante parece belo para o amado, por efeito do próprio amar: a dinâmica imaginário-especular se presta a essas coisas). Concluo, então, que o eu se constitui como objeto belo a ser amado pelo outro.

São João Batista (Leonardo DA VINCI, 1508-09)

Ora, mas em seu O seminário livro 8: a transferência (1960-61), Lacan, ao estudar justamente o amor, subrepticiamente coloca a seguinte questão: se o amor se volta para o semelhante, para o outro, buscando a unidade, porque desejamos alguns outros e não todos? O que guia o desejo é algo diferente do amor. Acima já demonstrei que o objeto a é a causa do desejo; é preciso o vislumbre deste resto de inscrição psíquica, daquilo que escapa, de uma fenda, do que não se deixa capturar, para se atiçar o desejo. Lacan sinaliza, através do fetichista, esta diferença entre o amor ao Belo e o desejo relacionado ao que escapa: o que causa o desejo do fetichista é o fetiche, mas o amor a que ele se entrega pode ser muito bem por um outro humano (LACAN, 1962-63).

Enquanto a estética do amor, imaginária, é a do Belo, a estética do desejo é a do resto, do que não fecha, do fragmento, daquilo que Umberto Eco chamou de abertura e que já se anunciava, no ocidente, na estética Barroca (ECO, 1968). Mesmo que Freud tenha preferido a estética renascentista ao mostrar em texto sua paixão por Luca Signorelli, Leonardo da Vinci ou Michelangelo Buonarrotti, vale reparar que o que o interessava na obra destes três grandes artistas era o que dificultava o fechamento gestaltico - em Signorelli, a tentativa angustiante de representação da morte (FREUD, 1901), em Leonardo as incertezas e ambiguidades exploradas pelo sfumatto, pelo chiaro-scuro (o sorriso da Mona Lisa, o abutre escondido na figura estranhamente encaixada das duas mulheres em Sant'Ana, a androginia de São João Batista [id, 1910]), as pistas que Michelangelo deixou para interpretações quase infinitas a respeito dos gestos, contrações e equilíbrios tensos do Moisés (id, 1914). Completo silêncio a respeito de Piero della Francesca ou Rafael Sanzio, por exemplo; estes sim bastante dedicados à produção do Belo como harmonia perfeita, forma contemplativa e unitária. Quanto a Lacan, todo mundo sempre o chamou de barroco mesmo!

Moisés (MICHELANGELO Buonarrotti, 1514-15)

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