Sublimação, criação e o trabalho analítico

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Tenho escrito neste blog semanalmente desde novembro passado e, até agora, pouco falei de um conceito crucial em psicanálise quando o assunto em questão é arte ou cultura. Me refiro à sublimação. Depois de quase oito meses de blog, então, me dedico a escrever sobre este conceito.

Auto-retrato (Leonardo DA VINCI, 1520), o genial artista e cientista cuja obra influenciou Freud no desenvolvimento do conceito de sublimação

 O que se segue é um resumo do que desenvolvo numa parte de meu livro Psicanálise, criatividade e depressão: um estudo sobre as subjetividades na cultura neoliberal (CATTAPAN, 2021), que completa um ano de publicação.

O primeiro registro do uso, por parte de Freud, ao escrever sobre psicanálise, do termo sublimação é a "Carta 61" do autor a seu interlocutor e amigo, Wilhelm Fliess. O termo surge relacionado ao desenvolvimento de uma teoria das fantasias. Eis a passagem:

"As fantasias derivam de coisas que foram ouvidas, mas só compreendidas posteriormente, e todo o seu material, naturalmente, é verídico. São estruturas protetoras, sublimações dos fatos, embelezamentos deles e, ao mesmo tempo, servem como auto-absolvição" (FREUD, 1950 [1887-1902], p. 296

Portanto, sublimação, inicialmente, indica as distorções que as lembranças podem sofrer para ingressarem na memória consciente, atendendo a exigências estéticas (embelezamento) e morais (auto-absolvição) do que irá chamar em 1900 de Sistema Pré-Consciente/Consciente. Sublimação indica, então, um processamento e modelagem da lembrança para que ela seja experimentada conscientemente. Registro, assim, que o termo sublimação é derivado da experiência clínica de Freud, mas, como se sabe, em seguida, será aplicado a reflexões sobre a cultura num sentido mais amplo. Pretendo, ao final deste texto, reaproximá-lo da clínica.

Sigmund Freud, 1905

O termo reaparece, com a definição mais comumente compartilhada nos meios psicanalíticos, em 1905, nos seminais Três ensaios sobre a sexualidade. Estes textos são voltados, principalmente, a introduzir o conceito psicanalítico de pulsão sexual e é neles que se aprende que a pulsão sexual difere de uma busca de satisfazer uma necessidade; a pulsão sexual visa a obtenção do prazer que, caso não ocorra, é experimentada como um excesso excitatório que denota desprazer. A busca de descarga da pulsão sexual é, desse modo, regulada pelo princípio do prazer: buscamos prazer e evitamos desprazer. 

Além do mais, a pulsão sexual é reconhecida por Freud como existente desde a infância. Crianças, desde o início, também buscam prazer com o corpo e evitam desprazer; crianças também buscam prazeres que não necessariamente se vinculam à satisfação de uma necessidade - por exemplo, ao chupar uma chupeta, o bebê não satisfaz nenhuma necessidade, mas experimenta uma clara descarga de prazer e relaxamento. Esta sexualidade infantil permanece mesmo com o desenvolvimento da sexualidade adulta, aparentemente voltada só para a cópula. Afinal, adultos buscam e sentem prazeres que nada estão relacionados ao coito. É nesse contexto que Freud postula que a sexualidade infantil (e a pulsão sexual) é perverso-polimorfa: somos capazes de perverter a função biológica em nome da busca do prazer e somos capazes de buscar prazer de modo polimorfo - com partes diferentes do corpo, com objetos diferentes, de maneiras diferentes.

Banhista sentada (Pablo PICASSO, 1930)

É nesse contexto em que a sublimação é definida. Ela aparece como um processo de aculturação empregada principalmente pela educação familiar, religiosa e escolar aplicada à sexualidade. Sublimar seria utilizar da capacidade perverso-polimorfa da pulsão sexual para direcioná-la para fins não sexuais e considerados aceitos sem reservas no contexto cultural em que a criança se desenvolve. A sublimação diria respeito à modelagem de pulsões sexuais que não fariam parte da dita normalidade adulta para inclui-las na organização genital dita normal ao preço de serem dessexualizadas. Após o recalcamento, a pulsão sexual seria direcionada para outros modos de satisfação não diretamente sexuais: por exemplo, o desejo incestuoso pelos pais poderia derivar para o respeito, carinho e afeto terno pelos mesmos.

Nesse sentido, recalcamento e sublimação seriam dois destinos complementares das pulsões sexuais. O recalcamento impediria que certas pulsões chegassem ao aparelho motor e à consciência, enquanto a sublimação transmutaria estas mesmas pulsões em algo passível de ser aceito pela cultura e pela consciência, de modo a se encontrar descargas prazerosas. Nossas realizações culturais encontrariam, assim, como fonte, a pulsão sexual recalcada e depois sublimada.

Mas é preciso dizer algo a mais sobre a sublimação. Tanto nos Três ensaios quanto em "Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna" (FREUD, 1908), "Escritores criativos e devaneio" (FREUD, 1907) e em "Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância" (FREUD, 1910) Freud faz diferença entre tipos de sublimações considerando duas realizações culturais que lhe parecem díspares. Arte e ciência. Estes textos indicam que a sublimação que toma como modelo a atividade científica é a única que foi explicada até o momento; em outras palavras, o trabalho científico encontra sua energia e objetos de interesse condicionados à dessexualização; um cientista não deveria, segundo o ideal de trabalho científico moderno, estudar algo porque seu desejo está vinculado ao objeto, mas, ao contrário, deveria fazê-lo de modo desinteressado, pois seu envolvimento desejante poderia deturbar sua capacidade de objetividade na pesquisa. Já nas artes, lembra Freud, isso não necessariamente precisa acontecer; o artista não refreia, não recalca a sexualidade para que ela sirva de energia para a produção de sua obra. Talvez Pablo Picasso e Egon Schiele sejam os melhores exemplos, na época de Freud, de como a produção artística não é movida pelo freio à pulsão sexual, mas pode muito bem ser movida pela excitação sexual e, ela própria, ser carregada de afetos excitantes.

Auto-retrato (Egon SCHIELE, 1910)

Então como se daria a sublimação artística? Freud parece indicar que o artista é capaz de modelar suas fantasias de tal modo que elas não são freadas pelas exigências do Pré-Consciente/Consciente e da cultura; ao contrário, a fantasia sexual é modelada na produção da obra de arte de tal maneira que a realidade é transformada para dar lugar à existência daquela fantasia.

Em "A ciência e a verdade" (1965), Jacques Lacan propõe considerarmos que a ciência opera uma foraclusão do sujeito; ou seja, se impõe como um discurso acéfalo, sem autor, sem crer que fantasias a sustentam. O método científico implica na rejeição da fantasia do pesquisador; já as artes implicam no cultivo das fantasias do criador. É por isso que a psicanálise tem muito a trocar com o campo das artes: ambos são experiências de criação e transformação do sujeito e, para isso, ambos se pautam numa prática desrecalcante. Se há sublimação na prática artística, será que se pode dizer, por extensão, que há sublimação na psicanálise?

Esta pergunta é espinhosa. Freud é claro em suas "Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise" (1912) ao dizer que a sublimação é um processo espontâneo, que não se pode esperar que uma análise necessariamente redundará em sublimação. Isso pode ser bastante opressivo ao paciente, afinal, se ele procurou tratamento é porque háum quantum de libido que não conseguiu sublimar e que produziu seu sintoma. Sustentar esse desejo e essa expectativa é sustentar um imperativo moral ou estético que apenas reforça as causas da neurose do paciente, que sofre exatamente de não estar à altura das exigências culturais de seu meio. Porém, não é raro psicanalistas registrarem que, no decorrer de um processo analítico, alguns pacientes se lançaram num trabalho artístico (escrita, artes plásticas, dança etc) como efeito, suplemento e/ou continuidade do trabalho elaborativo sobre o material inconsciente que surgiu na análise. 

Galileu Galilei (Justus SUSTERMANS, 1636), um dos ou o principal responsável pela criação da ciência moderna

Em um texto tardio em que apresenta dois verbetes para serem incluídos numa enciclopédia (1923), Freud retifica sua definição de sublimação. Agora ele indica que a sublimação não somente incide sobre o modo de expressão e satisfação da pulsão sexual, mas também sobre o objeto. Ou seja, além de estabelecermos relações não diretamente sexuais com os objetos, nós também estamos sublimando quando passamos a investir objetos novos (como aliás já era o caso da relação do bebê com a chupeta); em outros termos: ao sinalizar que a sublimação tem relação com o investimento em um objeto novo, Freud está enfatizando que a sublimação está diretamente ligada à capacidade de erotizar, tecer fantasias com objetos novos, criados e não mais dessexualizar; a sublimação está intimamente ligada à característica perverso-polimorfa da pulsão; ela é, antes de tudo, criativa. Por outra via: todo trabalho criativo é sublimatório, de modo que seria preciso considerar que o trabalho analítico também o é e que a verdade da ciência é que ela também é ato criativo, mesmo que seu procedimento destitua o autor de seu caráter de criador e lhe dê o estatuto de descobridor de algo que já é, que supostamente sempre esteve lá à espera da curiosidade humana.

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