O conservadorismo e sua crítica na política eleitoral e na política psicanalítica

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Nesta semana ocorreu a "Marcha para Jesus", evento evangélico cujo sentido parece ser menos a exibição da relação que aquelas pessoas têm com Jesus Cristo do que a demonstração de força política do setor evangélico de nossa sociedade. O termo marcha não é exclusivo do campo, mas certamente evoca a rotina militar, mas a marcha neste caso é para Jesus. Haveria algo de político em relacionar significantes que costumam aparecer na retórica militar e outros obviamente religiosos, como pretendo demostrar abaixo.

Na "Marcha para Jesus" não há católicos, cristãos ortodoxos, espíritas ou luteranos, somente evangélicos, sejam eles pentecostais, neopentecostais ou não. É um evento em que os evangélicos desfilam, marcham para exibir sua força, sua potência, seu poder político como massa alinhada. Sendo um evento político, é claro que o presidente Jair Bolsonaro que, além de ser evangélico, pauta a sua suposta moralização da política em valores 'cristãos'.

Marcha para Jesus, São Paulo, 2022

Hoje, no Aterro do Flamengo, por algum motivo que não consegui descobrir qual até agora, havia centenas de militares das Forças Armadas Brasileiras marchando, cantando com banda marcial e tudo o mais. Havia um palco onde se celebrará, mais tarde, alguma coisa que minha ignorância me impediu de ter certeza sobre o que é. Numa rápida pesquisa pela internet, fiquei sabendo que 10 de julho é aniversário da criação da Escola de Aviação Militar. Porém, a grandiosidade do evento que ocorre hoje destoa da minha - até então - ignorância da data, e não me considero alguém desavisado das datas públicas importantes. É que esta celebração não era pública. Ela também me pareceu menos uma comemoração do que um evento político, onde os militares demonstraram com orgulho sua organização, disciplina, força, apelo marcial e viril. Sabemos que o presidente Jair Bolsonaro também pauta a imagem de seu suposto "cidadão de bem" moral no estilo de vida militar.

Ou seja, não é descabido observar os dois eventos como campanha eleitoral bolsonarista.

O bolsonarismo, como fenômeno cultural conservador, como o próprio presidente define - num eufemismo para fascista -, para ser compreendido, implica uma tessitura entre o estilo de vida e os valores evangélicos com o estilo de vida e os valores da casta militar brasileira. De fato, são dois campos que, há muito tempo, se orientam a defender valores conservadores; no entanto, se os evangélicos idealizam um tipo de família nuclear indissolúvel (mesmo que o protestantismo tenha se pautado historicamente, para se diferenciar do catolicismo, dentre outras coisas, na possibilidade do divórcio), uma vida cristã (e, portanto, pautada no amor ao próximo) e um espírito sectário, não se pode dizer o mesmo da história da casta militar brasileira.

Registro na internet do Aniversário da Escola de Aviação Militar do ano passado, bem mais discreto que o de 2022

A casta militar é absolutamente intolerante com o sectarismo, como militares também não organizam sua doutrina a partir do amor ao próximo, mas a partir da defesa contra o inimigo. E o divórcio, bem como outras modalidades de família e de religião, historicamente, nunca foram, seriamente, um problema na casta militar. O espiritismo é, ou foi, aliás, a religião de diversos oficiais militares brasileiros. 

O que estas duas searas culturais teriam, então, em comum, que as faria se unir de modo bem aderente para formar o bolsonarismo? (obviamente nem todo militar é bolsonarista e nem todo evangélico o é. Apenas estou tentando entender como o bolsonarismo conseguiu reunir dois campos ideológicos diferentes).
A partir daqui trago algumas hipóteses não excludentes; que podem ser muito bem sobredeterminadas, como ensina Freud:

1) - a histórica subserviência aos Estados Unidos da América. Sabemos como nossas Forças Armadas serviram aos interesses geopolíticos dos E.U.A. seja no golpe militar que transformou o Brasil Império numa República, seja na Primeira Guerra Mundial, seja na Segunda Guerra Mundial, seja na Operação Condor (que implantou ditaduras militares na América do Sul). É constante a adesão política das Forças Armadas brasileiras aos interesses estadunidenses. 
  - as igrejas ditas evangélicas pentecostais e neopentecostais foram inventadas nos E.U.A. e trazidas ao Brasil por missionários de lá. Há, assim, um laço de gratidão e subserviência à matriz, mesmo entre as igrejas criadas no Brasil, como se vê no decalque da 'metodologia' das igrejas de lá: vestuário, estilo de oratória, programas televisivos espetaculares, música gospel americanizada etc.

"Tio Sam", personagem da campanha publicitária estadunidense pelo alistamento militar

  2) - a histórica confusão, em ambas as instituições, entre adoração aos E.U.A. e adoração ao capitalismo. Isso se deve, é verdade, à propaganda estadunidense. Foi o governo americano, em parte Hollywood, e em grande parte as empresas americanas de alcance global (p.e. Disney, Mcdonalds, General Motors, Ford etc) quem promoveram esta equação "E.U.A. = capitalismo". A Guerra Fria orientou o Império Americano a defender seu método de dominação - o capitalismo - de modo tão visceral contra o socialismo da U.R.S.S., que tanto estadunidenses quanto estrangeiros passaram a considerar que ser capitalista e ser cidadão americano ou americanizado são quase a mesma coisa. Isso é efeito de propaganda, pois há outros modos de fazer o capitalismo (como, por exemplo, o japonês, o escandinavo ou a China de hoje em dia) e sempre houve estadunidenses que não se identificam com o capitalismo, mas sim com seu país, como as perseguições promovidas pelo macarthismo mostraram muito bem. Ainda assim, grande parte da casta militar brasileira quanto dos evangélicos brasileiros comprou a propaganda: sua subserviência aos E.U.A. é, ao mesmo tempo, uma adesão inquestionável ao capitalismo.
   - hoje, o capitalismo defendido pela casta militar brasileira, no entanto, ainda parece ser o capitalismo de Estado da ditadura militar de 1964-85. Enquanto isso, os evangélicos parecem ser mais 'vanguardistas', abraçaram o neoliberalismo. As tensões entre os dois tipos de capitalismo, no entanto, ficam em segundo plano, enquanto ambas as partes ainda entenderem a adesão ao capitalismo como idêntica à subserviência aos E.U.A. da Guerra Fria, ou seja: há um inimigo comum, as esquerdas.

3) - Tanto a casta militar quanto o apelo conservador evangélico à família tradicional exaltam, adoram, identificam como único ordenador social possível a figura do Homem Viril. São, numa palavra, machistas. Qualquer outra possibilidade de ordenação social é vista por estes grupos como desordem. Por isso, mulheres não podem assumir o poder nem homens podem deixar de quererem ser viris. Mulheres (especialmente as feministas - aliás, como se só mulheres pudessem ser feministas!), homossexuais, transexuais e famílias ordenadas de modo diferente do "pai-mãe-filhos" seriam, para ambos os grupos, perigos para as próprias instituições. A casta militar precisa de gente que saiba lutar e matar e isso é explorado como expressão do homem viril; quem não o é, põe as Forças Armadas - e, por extensão - aqueles que elas protegem (todo o país) em risco. Em muitas igrejas evangélicas (e não somente nelas, no catolicismo também, mesmo que saibamos que muitos padres sejam homossexuais 'dentro do armário') pauta-se a adoração de Deus na figura de um homem, ele é "O Senhor", ele, portanto, tem gênero masculino. Seu poder de dominação expressa virilidade, Deus não é só amor, ele deve ser temido, pois castiga de modo brutal também.
  - O Homem Viril, aquele que porta o falo, goza daqueles que se submetem a ele (tal como o Pai da Horda Primeva suposto por Freud [1912-13]): na hierarquia militar, quem está acima pode humilhar quem está abaixo - até que, na parte mais baixa da pirâmide, se encontra o 'alvo', o 'inimigo' - quanto a este, pode ser humilhado, torturado, morto - como as polícias militares mostram bem ao tomar o bandido como o inimigo. Também em muitas igrejas evangélicas se cultiva uma imagem de Deus como alguém tão poderoso que tanto premia alguns como castiga e humilha outros; não só Deus, mas também os líderes religiosos podem ser indivíduos que gozam, podem viver do luxo, podem gozar de diversos objetos, inclusive de outros humanos, seja na sua vida privada, seja no próprio culto. E sabemos muito bem que, para um grupo significativo de evangélicos, a respeito daqueles que não são cristãos ou que, tentando sê-lo, não conseguem deixar de pecar (usuários compulsivos de drogas e álcool, homossexuais, ou simplesmente gente que lê textos subversivos), pode-se escarnecer deles, humilhá-los, agredi-los. Sabemos de que modo muitos evangélicos tratam as religiões de matriz africana.

Representação hodierna de Jesus Cristo como homem bravo, forte, austero, um senhor viril; muito diferente do Jesus sofredor, fraco e convulsivo tanto medieval quanto barroco 

Assim, minha suposição, então, é que este conservadorismo ou mesmo fascismo tupiniquim do século XXI se pauta num amálgama de assujeitamento ao Outro colonial e fálico somado à ordenação quase paranoica de mundo, na qual o nós é composto por heterossexuais falocêntricos subservientes aos E.U.A. e ao capitalismo e o inimigo é quem quer se afaste deste amálgama, parcial ou inteiramente.

Até o momento este texto nada falou a respeito da psicanálise. Poderia ter sido escrito por alguém sem nenhuma transferência com ela. Mas a partir daqui indico minhas preocupações a respeito de que tal amálgama não está fora da história da psicanálise:

- Na história da psicanálise, desde os primeiros tempo da I.P.A. (Associação Psicanalítica Internacional), houve desconfiança - e mesmo afastamento - de membros com interesse em articular psicanálise e campos ideológicos críticos ao capitalismo, como, por exemplo, o socialismo, o comunismo ou o anarquismo. Alfred Adler e Wilhelm Reich são bons exemplos disso. Também é um bom exemplo a tentativa de construir a imagem de Freud como um comportado burguês, alinhavando esta imagem às passagens em que Freud se mostra crítico, reticente e cético quanto à Revolução Russa. Ora, Freud se mostrava crítico, reticente e cético quanto a todas as tentativas de solução total para o desamparo humano. Suas críticas se aplicaram de modo ainda mais ferrenho à religião e, no entanto, a comunidade analítica foi bem mais tolerante e receptiva a psicanalistas religiosos do que a comunistas. Freud critica mesmo, em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), a heterossexualidade como ponto de chegada normal do desenvolvimento sexual, propondo que a transformemos em questão: se somos, desde o início, marcados por uma bissexualidade fundamental, porque será que, para alguns o destino é a homossexualidade e, para outros, a heterossexualidade? Ambas são um enigma. E, no entanto, a comunidade psicanalítica, historicamente, excluiu a possibilidade de analistas serem homossexuais, só se admitiu, por muito tempo, analistas heterossexuais. O mesmo Freud estimulou os psicanalistas a atenderem gente pobre, a abrirem clínicas públicas, num período anterior ao Estado de Bem Estar Social de Keynes, ou seja, num tempo em que as políticas públicas não eram necessariamente vistas como comprometidas com o tratamento (médico, psicoterápico) de todos. Na época, isto era uma ideia 'socialista'. Mas há quem prefira ver Freud como um burguês capitalista...

Wilhelm Reich

- Freud, Klein, Lacan, dentre outros grandes psicanalistas, descreveram o que escutavam na clínica e, cada um a sua maneira, repetiram o que se encontra na famosa conferência de Freud "A questão de uma 'Weltaunschaung'" (1932): a psicanálise não tem uma visão de mundo própria, ela não é uma ideologia, ela se alinha à visão de mundo científica. Ela, portanto, não tem projeto de correção do mundo, ela sabe que não pode dizer o que é o melhor para o outro humano, seja o paciente, seja a sociedade. Mas nomes menos vistosos no campo psicanalítico, ainda assim influentes, tomaram as descrições, descobertas, críticas dos grandes autores como apelos à retificação social. Seja ao agir sobre pacientes, seja ao falar publicamente, estes psicanalistas se afastaram demais do método psicanalítico e se tornaram apologistas de um modo de vida, de um estilo. Freud já criticava arduamente isso nos seus 'Artigos sobre a técnica' (1911-15), o que nos faz ver que esta 'tentação' é antiga. Lacan construiu seu retorno a Freud muito através da crítica à Psicologia do Eu que, dentre outros problemas, tomava o psicanalista como modelo do que o paciente deveria se tornar. 
  Dentre os modelos do que o paciente deveria se tornar, vejam só!, aparece como preponderante não o aspecto subversivo da psicanálise, mas, ao contrário, a materialização do conservadorismo - e quem sabe, fascismo? - na prática: o modelo é o indivíduo heterossexual, razoável, disciplinado, autocontrolado, de classe média, branco, adulto, repetidor do status quo. Nem sempre este discurso é tão evidente, mas, por exemplo, quando lemos ou escutamos que há psicanalistas na França que se opõem à possibilidade de casais homossexuais terem filhos, ele é.
  Onde a psicanálise autoriza alguém a dizer se homossexuais podem ou não podem ter filhos? Me parece que o que está em pauta, seja no modo como se utiliza a teoria freudiana, kleiniana ou a abordagem estrutural de Lacan, é um álibi teórico para uma posição política conservadora. Psicanalistas tomam as neuroses clássicas como modelo de subjetivação, exigindo dos pacientes e da sociedade que continuemos a tomar a figura do pai como único agente possível na castração da mãe e, assim, salvar o filho, por exemplo, de uma psicose! Como se a psicanálise fosse uma defensora da neurose contra a psicose! De onde se tirou isso? A psicanálise veio para neurotizar o mundo? Ou para dar ao sujeito uma possibilidade de elaborar sua posição neste mundo, elaboração que é do sujeito - e não do analista?

Portanto, não é de se espantar que encontremos psicanalistas, não importa de que linha teórico-clínica, a defender os mesmos valores que a casta militar e muitos grupos evangélicos - e, dentre estes, alguns apoiando candidatos representantes deste espectro político. O conservadorismo político - e o fascismo - participam da história da psicanálise, como participam da história das subjetividades dos séculos XX e XXI. Aliás, talvez esse seja um dos motivos porque, no Brasil, haja uma tentativa de grupos evangélicos de colonizar e cristianizar a psicanálise - é porque é possível encontrar na obra de certos psicanalistas menores uma espécie de sustentação pseudocientífica, por exemplo, da cura gay: há quem leia o Complexo de Édipo e seu empuxo à heterossexualidade como algo por que temos de passar, compreendendo o 'ter' não como algo inevitável, mas como um 'dever', e, caso não se passe por ele, seria preciso forçar o sujeito a tal travessia. Esta leitura coloca a psicanálise no campo da direção de consciência, da sugestão e da dominação política - o avesso da psicanálise (LACAN, 1969-70), se a levarmos a sério. A psicanálise não é um lugar de fora do jogo político, ele a atravessa e se quisermos sustentar o viés subversivo e radical dela (no sentido do que está em sua raiz) é preciso que critiquemos o conservadorismo na psicanálise, ou teremos, como disse Lacan, O triunfo da religião (1974).

Capa de O Seminário livro 17: o avesso da psicanálise (LACAN, 1969-70)

NOTA: este blog terá um recesso momentâneo. Voltarei a escrever nele no último domingo de julho. Até lá!

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