Pele vermelha - de sangue
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O professor Michel Gherman, historiador da UFRJ que nós, do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise e Políticas Públicas da UERJ, tivemos a honra de escutar na aula inaugural deste ano de 2022, publicou, na internet, um marcante comentário a respeito do violento assassinato do indigenista Bruno Pereira (que ainda mais foi esquartejado) na Amazônia brasileira, junto do repórter britânico que o acompanhava, Dom Phillips.
O rabino Uri Lam entoando cântico indígena em homenagem a Bruno Pereira e aos povos da Amazônia |
Gherman informa que o rabino Uri Lam, numa sinagoga de São Paulo, entoou, em homenagem aos mortos, um canto dos povos indígenas daquela região que já havia sido entoado por Bruno Pereira, aparentemente pouco antes de morrer, em homenagem aos índios mortos por uma política sinistra que se acentua por lá (e não só por lá). As mortes dos indígenas são menos visíveis ou talvez comovam menos os habitantes da região sudeste, mas elas valem tanto quanto qualquer outra vida; aliás, o fato de a comoção ser maior pelo assassinato dos brancos do que dos índios diz muito da nossa sociedade em que alguns são amparados, considerados parte do todo, enquanto outros são seres indesejados.
Gherman interpreta tanto o canto de Pereira quanto a repetição na boca do rabino a partir da tradição judaica; trata-se do kadish, uma prece que os que ficam entoam em homenagem aos que foram, santificando o que aqueles fizeram aqui na terra mais do que pranteando sua ausência. O fato de esta bela homenagem vir do povo judeu não é irrelevante.
Hannah Arendt relembra, em As origens do totalitarismo (1951), o quanto o próprio povo judeu foi, na história europeia, um dos lados mais vulneráveis na estrutura social. Ao longo dos séculos, devido às perseguições religiosa, econômica e racial, esteve sempre à mercê dos usos e abusos a que os cristãos, as elites, os 'arianos' poderiam submetê-los. Quando era útil perseguir e matar judeus, isso era feito, quando era útil explorá-los economicamente (como servos, como 'judeus do Rei', como subempregados), isso também era feito. Quando os judeus perderam qualquer utilidade na terceira década do século XX - tendo em vista a enorme quantidade de desempregados na Europa Central, a internacionalização do capital e a necessidade moral de bodes expiatórios -, sabemos o que aconteceu: a política nazista de humilhação e extermínio dos inúteis e dos inimigos, entre eles - em destaque - o povo judeu.
Michel Gherman |
Contribuiu para que tal genocídio fosse realizado com apoio social, pela Alemanha Nazista, dentre outros fatores, o seguinte: o austríaco Adolf Hitler foi criado num Império Austro-Húngaro no qual se desenvolveu, ao longo do século XIX, de modo crescente, o antissemitismo, que conseguiu eleger políticos para cargos executivos e legislativos no Império dos Habsburgo. O antissemitismo já era alimentado na cultura centro-europeia há décadas. Os judeus só não foram atacados por aquele Estado antes porque o imperador Francisco José os protegia (por conta de antiga aliança que criou figuras como os 'judeus do Rei'), ele embarreirava toda tentativa de alterar a legislação que os protegia e garantia a eles uma liberdade recém adquirida e excepcional na história do ocidente. Este imperador, pelas mesmas razões, também intercedia em favor dos judeus em toda tentativa prática do executivo de realizar alguma política antissemita, como o prefeito Karl Lueger tentou implementar na própria capital do Império, Viena. Com a derrota na Primeira Guerra Mundial, capitulou todo o Império; na nova República da Áustria não havia mais ninguém para defender os judeus no campo da macropolítica nacional. Estava aberto o caminho para o Anschluss e para a adesão ao nazismo. Hitler cresceu naquela cultura, não esqueçamos disso.
E Freud, um judeu de Viena, viveu naquela mesma cultura e época. Não creio que seja por acaso que foi justamente ao longo dos anos 20 e 30 do século XX que ele deu centralidade ao conceito de desamparo fundamental do ser humano, sobre o qual já havia escrito algumas linhas antes, é verdade. Ao ler sua biografia, Freud (1988), escrita por Peter Gay, ficamos sabendo que desde sua infância, ele sofreu com o antissemitismo, se esforçou para salvar a psicanálise da perseguição ao tentar desvinculá-la da alcunha de 'ciência judaica' e desenvolveu uma grande ojeriza por Woodrow Wilson (que oficializou o desmembramento do Império Austro-Húngaro, dentre outras barbeiragens no mapa europeu), na medida em que percebeu que os judeus e os outros povos que viam no Império um guarda-chuva estavam agora entregues aos lobos. Caiu o Império cosmopolita, cresceu o nacionalismo.
O conceito de desamparo fundamental remete ao nosso desamparo diante da natureza externa, do corpo e, com destaque, do outro humano, como Freud acentua em Mal-estar na civilização (1930). Nascemos sem condições de sobreviver a não ser se formos amparados, cuidados, investidos por outro humano. Esta condição de início marca de modo indelével nossas subjetividades na medida em que é o Outro (como escreve Lacan [1955-56]) quem nos oferece um modo de interpretar o mundo, é ele quem nos oferece as condições de sermos vivos, de sermos um sujeito, de desejarmos - enfim, nos alienamos no Outro como condição de nossa existência. Mas é também esta dependência do Outro que nos coloca na situação de sermos objeto do gozo deste Outro (LACAN, 1963). Ainda em Mal-estar na civilização, Freud nos lembra que o mandamento do amor ao próximo não impede de se fazer do outro humano objeto de uso, de torturá-lo, de escravizá-lo, de, enfim, se tomar o outro humano como objeto de gozo. O Outro, assim, pode amparar como pode gozar de nós.
Membro da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) segurando foto de Dom Phillips e Bruno Pereira |
Mas o conceito de desamparo fundamental, como apresentado já em Inibições, sintomas e angústia (FREUD, 1926), também indica que o Outro nos ampara não somente de um mundo, de uma realidade externa que não sabemos dominar, mas também nos ampara de nossas próprias pulsões. É ele quem oferece trilhamentos (id, 1895), caminhos, meios, formas de descarregarmos esse excesso excitatório e angustiante, ele nos propicia vias para buscarmos prazer e evitarmos o desprazer. Ele nos ensina, sempre dentro do possível desta tarefa impossível, a nos defendermos da pressão pulsional: de nossa impulsividade violenta, destrutiva contra o outro humano tomado como objeto de gozo. É na esteira desta ideia freudiana que, por exemplo, tanto Melanie Klein quanto Donald Winnicott, deram enorme importância à mãe 'sobreviver' aos ataques agressivos do bebê, o que garantiria a ele a possibilidade de elaborar seus impulsos agressivos; caso a mãe rejeitasse a criança, a inibição do erotismo, a culpa e a identificação da imagem de si como figura violenta tomariam a dianteira, repetindo-se compulsivamente.
Enfim, um judeu, cuja vida esteve até então marcada por um imperador que impediu o pior de acontecer com seu povo, com sua cultura, que já tinha uma história milenar de perseguições e violências, enfatizou, ao ver aquele mesmo imperador ir embora, um conceito que aponta para algo bastante radical. O conceito de desamparo fundamental marca uma verdade a respeito do povo judeu, sem dúvida, mas, também, de todos nós. A situação histórica dos judeus apenas colocou o problema do desamparo fundamental no primeiro plano para aquele povo, mas se trata de uma condição de todo ser humano que os grupos que se mantiveram no poder, seja amparando, seja gozando do corpo dos outros humanos se esforçaram para não identificar em si mesmos. Esconder de si mesmos a imagem do desamparado é um dos motores que levam grupos a se afirmarem como superiores, melhores, perfeitos, deixando para outros grupos a imagem do desamparado, do fraco, do vulnerável.
Todos precisamos nos esforçar para não tomar o outro humano como objeto de uso e precisamos reconhecer o quanto existimos única e exclusivamente porque somos investidos, cuidados e tornados possíveis por outros humanos e por certa ordem estabelecida. O que o conceito de desamparo fundamental ensina é que uma coisa está diretamente ligada à outra. Numa análise, aliás, somos levados a nos defrontar com esta condição basal, nosso desamparo, e, a partir dali, enfrentarmos, ao mesmo tempo, nossa tendência a nos alienarmos no Outro e a imperiosidade de nossas moções pulsionais. Reconhecer a própria castração, como dizem os psicanalistas, nesse sentido, quer dizer reconhecer nosso desamparo diante de nossas próprias pulsões e reconhecer o quanto somos dependentes dos outros humanos.
Achille Mbembe |
Talvez por conta de ser judeu, portanto, ser alguém marcado por uma trágica história de vulnerabilidades, perseguições e humilhações, mas também de perseverança, o rabino Uri Lam, em contato com seu desamparo fundamental, com o de seu povo e da humanidade, identifica em outros humanos que passam por esta situação - os povos pré-colombianos e aqueles que os defendem - traços que os fazem irmãos no desamparo. Tratam-se de povos que foram colocados numa situação que escancara o quanto o ser humano pode ser tornado objeto do gozo do Outro caso não lhes seja dada a inclusão num sistema social e simbólico de amparo. O também judeu Claude Lévi-Strauss já comparava há muitos anos, em Tristes trópicos (1955), a condição dos índios brasileiros, restringidos às suas reservas, à das vítimas dos campos de concentração e de extermínio. São sobreviventes, como são também os negros que sofreram da diáspora forçada às Américas, da escravização e da discriminação racial. Como um paciente que atendi, judeu, uma vez disse, "Não consigo compreender judeus que são racistas contra os negros! Somos irmãos na dor, temos histórias parecidas, deveríamos nos solidarizar!" (sic). Vale lembrar que a K.K.K. colocaria, certamente, negros e judeus no mesmo conjunto: o dos seres a serem expulsos. A vulnerabilidade humana é uma potente condição de criar laços entre os que sofrem. Como diria Achille Mbembe em A crítica da razão negra (2013), o mundo contemporâneo nos torna todos negros, vivemos um devir-negro, identificados a partir da condição de desamparados.
Ao reconhecimento de negros, indígenas e judeus como marcados por um traço comum, devemos ainda, como os judeus souberam fazer com Émile Zola ou Oskar Schindler, reconhecer também que há, dentre aqueles que poderiam muito bem usá-los como objeto de sua violência, mas que, ao contrário, escolheram lutar por eles, lutar para que eles também sejam protegidos com o amparo legal, estatal e solidário, que eles sejam reconhecidos como cidadãos plenos...é preciso reconhecer que há sujeitos irmãos no traço comum mesmo onde talvez não se pudesse esperar, simplesmente por serem humanos sensíveis à vulnerabilidade que marca a todos, que puderam se haver com seu desamparo fundamental. Suponho que estes sujeitos, seja através de análise ou não, assumiram sua dependência também do Outro, e muito provavelmente se perceberam atravessados por pulsões que buscam satisfazer-se tomando o outro humano como objeto de gozo -, mas, além disso, se responsabilizaram por suas escolhas, puderam criticar-se, puderam reconhecer o traço em comum de todo humano que os comove diante da precariedade maior da vida de certos grupos. Parece ser a situação de Bruno Pereira. Que o tomemos como referência ética para nossa sensibilidade política.
O povo Khĩsêtjê canta e dança para comemorar os 20 anos da retomada de seu território tradicional, na terra indígena Wawi, Mato Grosso, Brasil. |
Que o canto indígena ecoe, que o humor judaico sirva para rirmos de nossa condição e que o samba - esse modo alegre de falar da dor -, nos dê força na luta. A arte também é isso: possibilidade de expressar nosso laço identificatório com a dor dos nossos irmãos humanos. A arte também é: erotização que ampara o outro humano que não se sente solitário e, assim, ganha forças numa luta difícil, mas que vale a pena se somos humanos mesmo. Que o sangue dos outros humanos faça de todos nós peles vermelhas - todos nós sangramos, todos nós estamos feridos.
Exclente
ResponderExcluirPedro, teus texto tem sido um alento, afinal é difícil pensar sobre essas questões sem se desesperar. Com teus textos acabo encontrando uma trilha possível de análise.
ResponderExcluirObrigada.
Muito obrigado, nãopoderia receber um elogio maior! Que bom que meus textos têm servido de alento e recurso para a elaboração! Esse é mesmo um objetivo meu!
ExcluirComo judia, é difícil dar voz a uma convulsão secreta que se lutou para sepultar no peito, mas que aflora em suspiros que parecem vir dos milênios. Por isso que a identificação com os negros é tão punjante .
ResponderExcluirComo devia ser com os indígenas dos 500 anos, que so querem ser. Obrigada por atiçar nossa consciência
Muito importante um feedback seu. Obrigado
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