Demanda do Outro e repetição na arquitetura de Mies van der Rohe e na psicanálise
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Hoje me debruço sobre a obra de um dos maiores nomes da arquitetura modernista do século XX, o alemão Ludwig Mies van der Rohe.
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Chicago Federal Center (Ludwig MIES VAN DER ROHE, 1969-74) |
Particularmente o urbanismo e a arquitetura da Bauhaus, e Mies van der Rohe é um bom exemplo, eram orientados pelo socialismo, na medida em que se defendia que para que uma cidade fosse realmente funcional era preciso eliminar a propriedade privada e a especulação imobiliária. Seria preciso uma organização planificada da urbe. Nenhum leitor irá se surpreender ao saber que ao chegar ao poder, Adolf Hitler fechou a Bauhaus e seus integrantes fugiram da Alemanha. Mies van der Rohe migrou para os Estados Unidos da América.
A Bauhaus era fundamentalmente modernista e progressista. Entendia que a escola era o lugar do progresso, da formação de uma nova cultura e da prática de novos valores. Seu progressismo era - pode-se dizer - uma radicalização do racionalismo e do formalismo, na medida em que era ocupado a 'economizar', a se pautar no 'menos é mais' de Mies van der Rohe, a reduzir o objeto criado à sua função/essência e nada mais além disso, a tentar realizar uma arte pautada na ciência, a repudiar o luxo, o excesso e o esnobismo. Por isso mesmo, além de se ensinar artes plásticas, o maior sucesso da Bauhaus foi na transmissão da arte útil, com função: seja o desenho industrial, seja o urbanismo, seja a arquitetura - como é o caso do artista em pauta hoje.
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Conjunto habitacional Weissenhofsiedlung, Stuttgart (Ludwig MIES VAN DER ROHE, 1927) |
A obra de Mies van der Rohe é uma repetição em série de módulos a serem colocados no espaço destinado pelo demandante. E, assim, uma arquitetura estabelecida, inventada e primeiramente executada a partir das ideias socialistas - e mesmo comunistas - da Bauhaus, na medida em que era padronizada, foi repetida nos Estados Unidos da América. Porém a simples repetição da mesma forma, da mesma constelação significante (diríamos nós, psicanalistas), não repetiu o mesmo significado do outro lado do Atlântico.
Se sua arquitetura buscava eliminar o autor como grande artista a se exaltar, se sua obra buscava uma impessoalidade absoluta para servir a todas as pessoas, se sua obra buscava encontrar padrões a serem compartilhados democraticamente por todos, ela serviu perfeitamente à indústria capitalista.
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Casa Fansworth, Chicago (Ludwig MIES VAN DER ROHE, 1946-51) |
Não por acaso seus edifícios viraram símbolo dos edifícios-sede das grandes corporações capitalistas para quem os pequeninos humanos lá embaixo e lá fora são irrelevantes frente ao poder econômico da empresa. Segundo o historiador da arte Giulio Carlo Argan, são edifícios que tem...
"um tal efeito de imaterialidade e levitação, a ponto de dar a impressão de que o edifício não pesa sobre o terreno e não recebe um empuxo de baixo" (ARGAN, 1992, p. 399)
Ou seja, manifestam, de modo exemplar, o quanto nossa sociedade não é nada igualitária, ao contrário, mostram de modo sofisticado, como os poderosos pairam sobre a ralé lá de baixo, inalcançáveis. Mas são obras que ostentam, ao mesmo tempo, elegância, austeridade e solidez, de modo a se apresentarem mais admiradas e temidas do que rejeitadas.
Escolhi tratar desta obra hoje para indicar duas reflexões que ela nos traz:
1) todo o esforço de certo socialismo da primeira metade do século XX em tornar igual, repetitível e profundamente padronizado todo um compêndio de formas serviu perfeitamente ao uso industrial e comercial do capitalismo. Tornar o que é humano algo redutível ao mesmo é efeito de um humanismo que define essências e formas suficientes para que 'funcionemos bem', de modo a tirar de cena, por exemplo, o que jamais se captura pelo padrão - o sujeito, o desejo. Se há importantes contribuições da psicanálise ao campo progressista, esta é uma delas. As demandas podem ser capturadas, elas são sempre de completude, de objetos, gadgets, formas, trilhamentos que nos façam sentirmo-nos amparados, plenos, amados (LACAN, 1957-58); mais do que isso, as demandas são construídas pelo Outro humano - é o Outro quem nos diz primeiro o que queremos, seja ele a mãe, o pai, a TV, o youtuber, o professor, o líder religioso, a autoridade política.
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Edifício Seagram, Nova York (Ludwig MIES VAN DER ROHE, 1958) |
2) A repetição do mesmo não significa o mesmo. Freud nos introduz o conceito de compulsão à repetição em 1914. Mas é a partir de 1920 que tal conceito passa a indicar que nós, humanos, temos uma tendência a repetir compulsivamente, automaticamente, o que registramos, independentemente se são coisas agradáveis ou ruins. A compulsão à repetição é um movimento basal que indica a tentativa de elaboração de uma experiência atribuindo-lhe novos sentidos. O que a obra de Mies van der Rohe nos lembra é que a compulsão à repetição deve ser levada em conta dentro de contextos: se o mesmo se repete dentro de dois campos interpretativos diferentes, aquilo sinalizado como o mesmo deixa de ser idêntico a si, pois nada existe em si e para si: a experiência da repetição supõe o registro de um mesmo por um sujeito, mas também o instrumento e o campo interpretativo que ele utiliza como cenário desta repetição. Por exemplo: uma criança se debater na escola ganha sentido completamente diferente da mesma criança se debater diante de um pastor numa sessão de descarrego.
É, aliás, a ilusão do mesmo (quando não se considera o contexto) que eu gostaria de atacar. É frequente entre psicanalistas a reiteração de repetições, de eventos, fenômenos, sintomas, fantasias, registrados por Freud, Klein ou Lacan, utilizando-os como uma suposta prova de que tais autores teriam descoberto formas que resistem ao tempo, subjetividades que se repetem compulsivamente ao longo das décadas, quem sabe se poderia dizer 'essências formais', tal como Mies van der Rohe quis determinar também no campo estético? Seja o esforço formalista do arquiteto alemão, seja o formalismo que visa repetir tipos descritos por grandes psicanalistas de muito anos atrás, o que ocorre é o mesmo: devido à negligência ao contexto em que a repetição se dá, crê-se estar vendo e fazendo o mesmo, porém o que se está vendo e fazendo é, agora, algo completamente diferente.
Mies van der Rohe repetiu fórmulas num contexto que serviu ao socialismo igualitário e, depois, num capitalismo que marcava a hegemonia de alguns sobre outros. Alguns psicanalistas veem repetições, hoje, de quadros psicopatológicos descritos no passado (p.e.: histeria, neurose obsessiva, melancolia etc) como se isso comprovasse que a subjetivação não mudou essencialmente. Talvez estejam deixando de ver o contexto de outrora e o de hoje. Se na virada do século XIX para o XX a histeria era um modo de sobrevivência subjetiva das mulheres destituídas de fala no campo político, o que seria a histeria hoje? O mesmo? Ou poderia também ser pensada como um modo de tentar conservar certo falocentrismo de outrora, dos tempos em que a histeria era uma epidemia? Se a neurose obsessiva parecia, no início do século XX, a tentativa de se adequar a um ideal de homem racional, não parece ela, hoje, outra coisa, afinal nosso ideal de homem normal não é mais somente o homem racional? Nosso ideal hoje não é bem mais, por efeito das transformações do capitalismo, o de indivíduos que encontram o prazer e não o abandonam? Indivíduos que querem gozar aqui e agora mais do que planejadores e procrastinadores contumazes? E, finalmente, se a melancolia parecia se relacionar (como Freud indicou em "Sobre a transitoriedade", 1916) à ruína moderna de certos ideais supostamente eternos, hoje as melancolias, também considerando as transformações do capitalismo, parecem ter relação com o não se sentir objeto de investimento, não se sentir incluído num mundo de delícias, prazeres e consumo, com a impressão de estar de fora da festa e de não ter qualidades para lá entrar.
É só a consideração do contexto o que pode ainda revitalizar o progressismo de Ludwig Mies Van der Rohe ou a força subversiva da psicanálise.
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Ludwig Mies van der Rohe |
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