Parir
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Leiamos o poema abaixo de Arnaldo Antunes, Grávida, publicado em 1991 como canção interpretada por Marina Lima em seu álbum intitulado simplesmente Marina Lima:
Grávida:
"Eu tô grávida
Grávida de um beija-flor
Grávida de terra
De um liquidificadorE vou parir
Um terremoto, uma bomba, uma cor
Uma locomotiva a vapor
Um corredorÉ que eu tô
Tô grávida
Esperando um avião
Cada vez mais grávida
Grávida
Estou grávida de chãoE vou parir
Sobre a cidade
Quando a noite contrair
E quando o Sol dilatar
Dar à luzÉ que eu tô
Tô grávida
De uma nota musical
De um automóvel
De uma árvore de NatalE vou parir
Uma montanha
Um cordão umbilical
Um anticoncepcional
Um cartão postalÉ que eu tô
Tô grávida
Esperando um furacão
Um fio de cabelo
Grávida
Uma bolha de sabãoE vou parir
Sobre a cidade
Quando a noite contrair
E quando o Sol dilatar
Dar à luzE quando o Sol dilatar
Vou dar à luz"
Sim, escolhi abordar a experiência de ser mãe, tendo em vista que dia 8 de maio de 2022 é o dia das mães, afetado por este poema, mas também a partir dos recursos teóricos que a psicanálise me deu.
Sabemos que o dia das mães é uma espécie de sedução comercial, até mesmo uma chantagem para se comprar presentes para nossas mães e, assim, fazer a economia circular. Só perde em vendas para o Natal; porém, se o Natal é uma festa religiosa ressignificada pelo capitalismo como êxtase da troca de presentes, o dia das mães já nasce como uma data inventada no capitalismo...só que acredito que podemos intervir sobre ela ressignificando-a, retirando seu sentido comercial e refletindo sobre o que é parir.
Algo sair de si e ser inserido no mundo como valor, evidenciando a potência afirmativa e de transformação que habita o humano, que pode gerar o plural e não sempre o mesmo: parece ser dessa gravidez e parto que trata o poema de Antunes sob a voz de Marina Lima. Ser mãe aqui é ser criadora e não ser reprodutora nem ser referência maior do ato de amor apenas.
Curioso que o tema da criação, em nossa cultura patriarcal-falocêntrica, é associado, em geral, a Deus (o Criador) a quem se empresta o pronome Ele - e não Ela. Na literatura psicanalítica encontramos algum material que interessa discutir aqui e que pode nos ajudar a nos situarmos quanto ao que é parir pensando-o como criação fora do campo masculino.
Mas mesmo na psicanálise, uma leitura costumeira da cultura a partir das lentes do Complexo de Édipo, em geral, dá à mãe um lugar de Outro a ser interditado para que o sujeito, por conta de seu gozo barrado, adentre o campo cultural oferecido pelo pai como destino possível para seu desejo (LACAN, 1957-58). Mas esta leitura não parece ter nada a dizer a respeito do poema de Antunes. Temos de tomar outro caminho para repensar a mãe, a partir de Grávida.
Alguns elementos devem ser incluídos em nossa reflexão. Pode-se ler no O seminário livro 4: as relações de objeto (1956-57) de Jacques Lacan, o seguinte:
"O significante toma seu material em alguma parte do significado, num certo número de relações vivas, efetivamente exercidas ou vividas. É só-depois que este passado é apreendido, e que se estrutura essa organização imaginária..." (p. 53).
Lacan, neste seminário, visa dar um lugar importante às relações simbólicas que tecemos com o binômio falo-castração, emergido da experiência vivida e imaginária da criança; alguns parágrafos antes da passagem reproduzida acima, é possível ler o que ele recupera da obra de Freud sobre o assunto:
"...no plano imaginário, só existe uma única representação primitiva do estado, do estágio genital - o falo como tal.O falo não é o aparelho genital masculino em seu conjunto (...). A imagem ereta do falo é o que é fundamental aí. Só existe uma. Não há outra escolha senão uma imagem viril ou a castração" (p. 49).
É, portanto, em torno do falo e da ordem paterna que se ressignica, a posteriori, todo o vivido e o imaginário. Ou será nem-todo? Veremos.
O leitor pode estar se perguntando porque trato do falo quando queremos falar de parir. É porque estas duas passagens de Lacan nos ensinam que o significante falo emerge, num segundo tempo, da experiência imaginário-corporal do falo e que a operação de simbolização (produção do significante) do binômio falo-castração o insere numa cadeia associativa que o liberta de seu ponto de partida, o órgão viril ereto, ou melhor, que possibilita a ele o destino de todo significante: associar-se numa rede em que as significações tornam-se múltiplas, desenraizado de suas origens, mas que, ao mesmo tempo, mantém alguma relação com a experiência masculina inicial. Pergunto: será que não se pode pensar o mesmo a respeito do parir? Quando parir se torna significante também participa de uma cadeia associativa que permite, por exemplo, o poema acima mencionado, mas ao mesmo tempo, será que mantém alguma relação com a experiência imaginário-corporal da mulher?
Importa lembrar, no entanto, a equação que Freud já apresentava entre fezes, falo, filho e dinheiro (FREUD, 1917): pareceria, a partir dali, que ter um filho, dar à luz, quando simbolizado em nossa cultura, tende a ser significado como referido, equacionado ao falo, à circulação no campo das trocas - dá-se um filho à sociedade, mais um numa série de humanos, substituível apesar de valioso...
Ora, o falo, como Lacan nos ensina (LACAN, 1958; 1971-72) remete ao campo do mesmo, do um, do fechamento, da unidade, da completude - do próprio significante como possibilidade da repetição do mesmo. Por isso, para Lacan, o gozo fálico, o gozo masculino, remete à subordinação do gozo ao um, ao mesmo. Poderíamos dizer também que é este modo de organização do campo simbólico o que permite que a cultura estabeleça a perduração, a continuidade de si própria, como repetição do mesmo e como modo de gozo resistente, reativo que tem horror ao novo, como diriam Adorno e Horckheimer em sua Dialética do esclarecimento (1947).
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Max Horckheimer e Theodor Adorno |
Porém, a operação simbólica, a produção do significante como o reprodutível, deixa restos, possibilidades de gozo não capturados, o que Lacan chama de objeto a, mais de gozar ou causa do desejo, que, aliás, permite compreender o esforço incessantemente fracassado da lógica falocêntrica em 'tapar os buracos' de onde o novo pode sair.
É por isso que Lacan escreve o S, de sujeito, com uma barra o cortando, como um sujeito dividido (LACAN, 1958-59). O que ele quer dizer com isso é que algo a respeito de nós mesmos enquanto sujeitos não é possível de se inscrever, resta. É preciso dizer mais do que isso; o que se inscreve como significante reprodutível, repetível, é incapaz de designar o que é absolutamente singular no sujeito, o que escapa ao comunicável, ao objetivável. Nesse sentido o sujeito é dividido entre assujeitado à ordem de trocas simbólicas e o que resta à troca como algo singular não capturado inteiramente na cultura falocêntrica.
O que é singular e irredutível à ordem e ao gozo fálico, o que não é padronizável, é pensado por Lacan em seu O seminário livro 20: mais, ainda (1972-73), onde ele trabalha as fórmulas da sexuação, a partir do gozo feminino, um gozo não-todo referido à ordem fálica. Aparece aqui, então, um outro modo de se pensar o sujeito como dividido. Nele há algo incomunicável, de que não se pode construir um saber, uma modalidade de gozo não redutível à fálica. É porque não é possível padronizar este gozo que Lacan diz que a mulher não existe; as mulheres, em suas singularidades, existem, o que não existe é a mulher como padrão - o padrão é o homem, o falo - o que quer dizer que a pluralidade e a singularidade existenciais são pensadas a partir do feminino, não do masculino. Ora, então cabe dizer também que a relação da mãe com o que sai de seu ventre é não-toda da ordem do investimento na criança como falo, algo de inaudito também advém.
Parir compreendido como introduzir no mundo mais um humano é já uma colonização desta experiência pelo modo de gestão de gozo falocêntrico, ou uma operação do Esclarecimento como vitória do mito enquanto reprodução cíclica do mesmo, diriam Horckheimer e Adorno (1947). Gestar e parir são, na poesia/música de Antunes e Lima, outra coisa, são bem mais: introduzir no mundo o novo, o singular e o plural, é a experiência de afirmação da potência criativa feminina, não-toda fálica.
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Maternidade: três mulheres no litoral (Paul GAUGUIN, 1899) |
Nas Conferências introdutórias sobre a psicanálise (1916-18), Freud é claro quanto ao que entende ser a direção de uma análise - fazer o princípio de realidade prevalecer sobre o princípio do prazer. Muitos entenderam isso como uma submissão do sujeito à ordem simbólica vigente, como uma adaptação. Mas o modelo para Freud de prevalência de princípio da realidade está na figura do artista. E ele explica o porquê: o artista consegue transformar a realidade - através da obra-de-arte - de modo a fazer com que suas fantasias singulares possam ganhar existência real. Não se trata de adaptação, mas sim da potência afirmativa do sujeito, não pela repetitividade dos significantes que recebe do Outro, mas como um arranjo singular, original, inventivo - a obra.
A criação artística é, deste modo - e é comum criadores utilizarem esta metáfora - um parto. A arte é um modo de dar vida, dar materialidade, inserir no campo simbólico aquilo que escapa o tempo todo, o que não se inscreve inteiramente e, no entanto, o provoca a se transformar. É pelo estilo, pelo arranjo, por meio de procedimentos estéticos que o artista se esforça em inscrever o que fica de fora do objetivável e comunicável. E por outra via, creio que também pode-se dizer que parir é artístico; pôr uma criança no mundo não é o que chamo aqui de parir; parir, segundo o que leio na poesia de Antunes, é dar a este objeto, a criança, que na ordem simbólica é equacionado ao falo, a dignidade do novo, é dar ao sujeito potencialmente emergente a chance de ser singular, de se constituir estilisticamente original.
Vamos um pouco além: se Freud toma o artista como um bom exemplo da direção da análise, e o artista é quem consegue parir o novo, o analista é um pouco uma doula e o paciente o artista parturiente. O psicanalista dá ao paciente a chance de se lançar numa experiência de fazer emergir o que ainda não há e que ainda não está já sabido no campo simbólico; ele permite ao paciente a experiência de ser não-todo compreendido na ordem fálica; ele agencia condições, como defende Joel Birman (2001), para a experiência da feminilidade.
Portanto, a mãe só pode ser reduzida a um gozo interditado quando é assim significada pelos filhos já orientados nas interpretações edípico-patriarcais. A ordem fálica é criadora do mesmo, do reprodutível, mas a potência de criar o diferente tem como modelo maior o próprio parto, mesmo quando simbolizado como operação artística. Se a função paterna, simbólica, se estabelece em relação à experiência imaginária do falo, se ela diz respeito a operar a castração da mãe, como se lê no O seminário livro 5: as formações do inconsciente (LACAN, 1957-58), o pai como poder proibitivo, que confisca e que impõe sua vontade, figura como status quo que cria o cenário para o sujeito circular como um membro da ordem simbólica a que agora pertence, faltoso de um gozo e, por isso, também marcado por uma falta-a-ser, por um desejo que o mobiliza, como os outros humanos. Já o gestar e o parir, quando simbolizados, deslocam a figura da mãe parturiente para os limites da ordem simbólica, para a potência criativa do que ainda não existe mas precisa ser escrito, para aquilo que, na efervescência do sujeito desejante e singular, o diferencia de todos demais como experiência única. Não somos só seres faltosos e desejantes como todos, mas também, a partir desta falta, fazemos aparecer o que é novo, o que singulariza nosso desejo e nossa história.
Se estamos falando de um parto simbólico espero ter deixado claro que estamos falando de uma experiência que não é exclusiva das progenitoras, mas também é das mães adotivas, de quem é homem e de quem sequer tem filhos humanos reais.
Mas como nossa metáfora é a do parto, concluo deste modo: a vagina não é só onde entra o falo, mas é também de onde sai o bebê, a placenta, a água, o sangue, um avião, uma nota musical, um fio de cabelo, uma árvore de Natal...uma caixa de Pandora. Sabe-se lá o que vai sair dali.
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A caixa de Pandora (Charles Edward PERUGINI, 1893) |
👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏
ResponderExcluirTexto inspirador que nos convida reativar em todos nós o senso da maternagem, ou melhor, a potência criativa em prol desta Pátria, Mãe Gentil👏👏👏
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