Mortes, números e afetos

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Recebi por Whatsapp, nesta semana, um vídeo macabro. A cena, real, é a seguinte: Um veículo blindado utilizado pela Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro aparece dando marcha à ré e sendo utilizado como força tratora, amarrado por uma corda a um monumento, para retirá-lo de sua base. É utilizado, melhor dizendo, para destruir tal monumento - e o faz sem muita dificuldade. Ao redor do veículo se vê muitos policiais fortemente armados. A cena se passa na favela do Jacarezinho, na cidade do Rio de Janeiro, onde o monumento tinha sido construído recentemente. Tratava-se de um bloco de concreto, pintado de azul, sobre o qual estava afixada uma placa onde estava registrada uma homenagem às vítimas de uma chacina ocorrida ali há pouco tempo, na qual 27 moradores e um servidor público foram as vítimas fatais. O monumento sinalizava também que tal chacina foi realizada pelos homens do estado e que ela deveria ser compreendida como a prática de uma política racista e genocida.
O monumento FOI DESTRUÍDO pela polícia, repetindo em ato a destruição realizada pelas forças do estado através da matança anterior.

Cena do vídeo, de autor anônimo, em que se vê a Polícia Civil fluminense destruir o Memorial da Chacina do Jacarezinho

Tal cena deve ser divulgada, mas, além disso, quero também refletir sobre a estética do registro das mortes pelos meios de comunicação e os efeitos que têm sobre nossas subjetividades.

Voltarei à cena do Jacarezinho. Todavia, por ora, recuarei desta cena para comentar outros registros de mortes de muitos, nesse caso de números ainda mais altos. Me refiro tanto à pandemia de COVID-19 que ainda não acabou e à guerra entre Rússia e Ucrânia, que também continua. Lembro que ambas continuam, mesmo que, hoje, pareçam não mobilizar tanto os afetos dos brasileiros. Creio que isso se deve, no caso da pandemia, ao fato de as mortes e contaminações, neste momento, serem em número muito menor do que, por exemplo, o que ocorreu no último janeiro, como também ao fato de muitos de nós já estarmos vacinados - mas não quero descartar também o modo como a grande imprensa divulga as notícias. O mesmo vale para a guerra na Ucrânia que, em fevereiro, era novidade e agora virou rotina no noticiário, ao atualizar-nos dos números, e, parece que deixou de ser 'interessante'.

A grande imprensa não parou de noticiar tais fatos, mas o modo, o estilo, enfim, a estética da notícia é relevante aqui. Quando nos deparamos com apenas números sendo divulgados, parece que temos dificuldades em nos sensibilizar com aquela informação; pessoas mortas e pessoas que pranteiam os mortos são tratadas objetivamente ao ponto de virarem meros números quantificáveis como coisas e, por isso mesmo, não nos envolvemos tanto com a notícia. Parece ser um modo de defesa diante de afetos como a dor diante da morte que, aliás, médicos, soldados, policiais e governantes já conhecem há muito tempo. O registro diário nos jornais impressos, televisivos ou online, do número de mortes e contaminações pela COVID-19 e o registro diário do número de mortos, feridos ou deslocados por conta da Guerra na Ucrânia (ainda mais quando informados junto da quantificação financeira dos prejuízos ao patrimônio) parecem nos distanciar defensivamente dos traumas para que possamos tocar nossas vidas. O mesmo vale para os mortos das chacinas cotidianas no Brasil e, em particular, no Rio de Janeiro. 

Exemplo de divulgação de números da Guerra na Ucrânia. Fonte: sites G1 e GloboNews.

Quando, ao contrário, a mesma imprensa pretende nos envolver afetivamente com alguma ocorrência também dolorosa, utiliza - em geral - de outra estética. Ela nos mostra cenas singulares, casos específicos, rostos chorando, gente pranteando e dando breves relatos da tragédia. Esse recurso foi, aliás, utilizado nas mesmas catástrofes acima mencionadas, em outros momentos da cobertura jornalística. Vimos cenas de gente desesperada e falando de sua experiência difícil com a COVID-19 na TV, idem para a Guerra da Ucrânia e também na cobertura imediata da Chacina do Jacarezinho. Parece que a escolha por um ou outro método estético de dar a notícia envolve decisões estratégicas daquele veículo de imprensa em certo momento específico que eu não saberia precisar, mas não creio estar errado em apostar em motivos político-econômicos de disputas com concorrentes no campo das mídias e também alhures.

Ora somos convidados a nos identificarmos com o outro que sofre e, com isso, nos comovermos e liberarmos afetos mobilizantes, ora somos convidados a nos distanciarmos, a observarmos o frio registro de números. O procedimento estético que nos leva à identificação com a dor do outro humano pode ser pensado a partir de algumas referências psicanalíticas.

Exemplo de divulgação, pela imprensa, de vítimas da COVID-19. Fonte: BBC.

A partir do texto freudiano (FREUD, 1914, 1923), Lacan ensina que o eu é uma figura imaginária (LACAN, 1949). Imaginário aqui quer dizer, dentre outras coisas, o que é experimentado como e a partir de uma imagem. O eu é o efeito da identificação de uma imagem projetada, vista, idealizada pelo Outro como modelo para o sujeito se ver. A imagem, um outro em relação ao sujeito, é a referência para a constituição do eu, da imagem de si. O eu, assim, é um outro e, inversamente, o outro é olhado, investido como reflexo do eu. Essa dinâmica constitui nosso eu através da identificação de si no outro humano, o que faz com que possamos ter simpatia, antipatia, amar e sofrer nos colocando no lugar deste outro - imaginariamente. É o que faz nos mobilizarmos diante dos rostos que vemos chorando na TV, nos identificando a eles.

O que talvez não percebamos é que se esta dinâmica nos ajuda a nos enlaçar com os outros, isso só se dá porque um Outro nos coloca na condição de iguais. É o discurso do Outro quem determina onde há igualdade e onde não há, de modo que um discurso racista pode perfeitamente provocar o efeito de vermos semelhantes em alguns outros e, em outras pessoas, vermos absoluta diferença. As desumanizamos, elas não contam, logo, podem ser exterminadas, por exemplo.

O discurso cristão ousou criar um campo identificatório vasto através do mandamento do amor a qualquer humano que, com o tempo, abriu caminho para a consideração humanista pela Humanidade e, enfim, desembocou em nossa numeração contemporânea de corpos através de cifras frias, todos eles corpos desta grande unidade chamada 'humanos' (ROUSSEAU, 1755, FOUCAULT, 1975). Um mesmo movimento que busca estabelecer um laço identificatório afetivo com o outro terminou, com o passar dos séculos, descambando num distanciamento sombrio. Freud (1930) já denunciava a dificuldade que há em seguir o mandamento de 'amar o próximo como a si mesmo' porque, dentre outros motivos, meu amor narcísico é algo tão gratificante que tenho dificuldades de investir no outro humano, ou porque o outro é tão distante que não encontro motivos de dar a ele algo de tamanho valor que é meu amor, ou também porque o outro não é só objeto possível de investimento do meu amor, mas igualmente do meu ódio, de meu gozo sádico que pode muito bem, como o próprio Freud sinaliza em "As pulsões e seus destinos" (1915) repetindo certas considerações de Além do bem e do mal (NIETZSCHE, 1886), se manifestar como indiferença, distanciamento, neutralidade.

Estórias de São Nicolau (Ambrogio LORENZETTI, 1337), um bom exemplo de divulgação dos milagres de um santo como modelo do amor ao próximo, no apogeu da Igreja Católica

Ou seja, ora somos levados pela imprensa a amar o próximo e nos identificarmos a ele, buscando preservá-lo tal como queremos preservar nosso amor próprio; ora somos levados a tratá-lo com a frieza e a indiferença dos números contábeis, que seriam, assim, na verdade, uma administração do ódio e do desprezo.

Mas não se pode terminar esta discussão sem se levar em conta algumas outras coisas: Se os números significassem somente um distanciamento prenhe de ódio, como explicar o negacionismo dos números? Como explicar que haja gente que negue os números de mortos computados no genocídio agenciado pelos nazistas, a que nos referimos como Holocausto, Shoah? Eles não gozariam ainda mais ao lembrar de tais números? Como explicar que haja quem negue os números de contaminação e mortes por parte do COVID-19? Como explicar o ato da Polícia Civil fluminense de destruir um monumento em que se contam os mortos da chacina realizada por policiais?

A resposta à última pergunta ajuda a responder às primeiras. A contagem, os números servem de memória do crime e não somente de cômputo de cadáveres. Os números se impõem como fatos, notícias, como cada Monumento ao Soldado Desconhecido espalhado pelo mundo nos lembra muito bem. Não os números, mas sua divulgação cria memória. Contar - nos dois sentidos do termo - é aqui fundamental para que os números não sejam somente a expressão da morte.

Lacan nos ensinou que o significante é a morte da coisa (LACAN, 1957); ou seja, que a linguagem tem a propriedade de retirar-nos de uma suposta relação imediata na experiência para mediarmos nossa experiência com palavras, gestos, significantes. A linguagem é, na modernidade, diria Foucault, desvinculada das coisas, é autorreferente: há um abismo entre as palavras e as coisas (FOUCAULT,  1966). Ao encontrarmos no significante uma mediação nas relações, nos submetemos às leis do significante que, através de metáforas e metonímias numa cadeia associativa, nos deslocam da relação com as coisas para a relação das palavras com outras palavras (LACAN, 1953).

O número um pode designar a unidade total, o conjunto, o sonho narcísico, é verdade. Mas o número um, numa contagem, indica apenas um traço numa série aberta, condição mínima de construção da cadeia significante, humanizante, suporte de uma narrativa de si e do mundo. Para diferenciá-lo do um narcísico e imaginário, Lacan o chamou de traço unário, condição simbólica de contagem de si (LACAN, 1961-62).

Ao afastar-nos das coisas, os números (que não são outra coisa senão significantes, contados a partir do um da série), nos protegem da experiência imediata, traumática, dolorosa, da morte, mas eles se inserem numa cadeia contábil que pode ser recapitulada, recontada. Tornam-se registro, condição de possibilidade de utilização dos mesmos significantes, associados a outros, o que pode orientar algum sentido para o ocorrido. Se os números frios denotam indiferença, ao mesmo tempo, eles também são o alicerce, o fundamento da memória, da história e da possibilidade de se elaborá-la. Aliás, não é seguro insistir que os números sempre garantem um distanciamento e uma indiferença; melhor seria dizer que eles abrem a possibilidade para que isso aconteça. Lembro que no auge desta pandemia, em muitos momentos, me vi horrorizado pelos números, querendo ao mesmo tempo saber e me afastar daquela contagem angustiante

Memorial dos Judeus Assassinados da Europa, Berlim (Peter EISENMAN, 2004)

Mas se no número há uma ambivalência entre morte e erotismo, não se pode dizer o mesmo, entretanto, do apagamento, da destruição ou da negação absoluta do registro. Em "A negativa" (FREUD, 1925) somos apresentados a modos diferentes de negarmos algo psiquicamente. Ali aprendemos que a destruição do registro pura e simples - que reconheço presente nos discursos e atos do neofascismo, do negacionismo e da Polícia Civil do Rio de Janeiro - é pura ação da pulsão de morte, pulsão que Freud relaciona com a atualização do silêncio diante do traumático, com a imobilidade, com a incapacidade de dar sentido, com a angústia real, enfim, com a violência psíquica. 

Registrar mata a coisa para não nos matar. Aí está a condição mínima de erotizarmos a vida. Nesse sentido, a imprensa realiza uma tarefa importante ao divulgar números, mesmo que pareçam desumanizantes - pior seria não mostrá-los mais, como quis fazer o Governo Federal a respeito das mortes por COVID-19.

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