Get Back: De volta ao infantil

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Quem assistiu à série de três documentários assinados por Peter Jackson intitulada Get Back (2021), a respeito do processo de gravação, por parte dos Beatles, em 1969, do que veio a ser o álbum Let it be (BEATLES, 1970) e que já tenha visto o documentário de Michael Lindsay-Hogg Deixa estar (1970), talvez não tenha visto grandes novidades, mas elas estão lá...

Poster promocional do filme Get Back (Peter JACKSON, 2021)

O trabalho de Jackson foi realizado da seguinte maneira: o diretor neozelandês se debruçou sobre o imenso material gravado por Lindsay-Hogg na época, cujo resultado foi a utilização de uma ínfima parte para a realização de Deixa estar. Aparentemente a intenção de Jackson era, ao revisitar e reeditar o material, tentar imprimir ao filme uma imagem diferente da do documentário original. O filme de Lindsay-Hogg nos mostra os Beatles num clima tenso de ruptura iminente e realização de seu último disco (o último lançado,  mas não o último gravado, que foi Abbey Road [BEATLES, 1969]), cheio de mal-estar, tédio e tristeza. Há algo de melancólico naquele filme que foi lançado ao mesmo tempo em que os Beatles se separavam de uma vez por todas. Talvez por isso o álbum Let it be e o filme de sua gravação tenham sido conhecidos como 'o canto do cisne' daquele conjunto musical.

Jackson deu dimensões majestosas à fase final dos Beatles transformando-a numa trilogia, como fez com as versões cinematográficas das obras homônimas de Tolkien, O senhor dos anéis (2001-03) e O hobbit (2012-14). Além disso, Jackson, mesmo repetindo várias cenas já passadas no filme de Lindsay-Hogg, ao acrescentar muitas outras, amplia o escopo do seu filme: não se trata mais somente de um registro documental do fim dos Beatles, mas também de um registro do modo como Lindsay-Hogg queria tornar seu póprio documentário relevante; Jackson faz o personagem oculto de Deixa estar um dos protagonistas de seu filme, e, assim, alguém que queria ser um grande realizador se transforma em um personagem cômico em Get back. E é justamente a comicidade que falta no filme de Lindsay-Hogg um dos maiores sabores do filme de Jackson sobre o filme de Lindsay-Hogg, pois a obra de 2021 é também o registro de muitos momentos descontraídos, alegres, engraçados e curiosos e - e aí está o grande mérito desta trilogia - o registro do processo criativo da maior banda de rock de todos os tempos.

Peter Jackson

Vemos diversas cenas em que os Beatles ensinam suas novas composições uns aos outros, vão criando o arranjo conjuntamente, num trabalho coletivo quase sempre impelido por Paul McCartney. Todavia, talvez o mais interessante seja o que vem antes da música, temporalmente, mas não em importância: os Beatles brincam. Contam piadas, falam bobagem, riem, se exercitam tocando músicas de outros autores, fazem paródias, imitações, jogos de palavras, às vezes aparentemente sob efeito de drogas ou álcool, às vezes não. Se McCartney parece chamar o grupo para a responsabilidade do trabalho sério de feitura das canções, quem alimenta o estado anterior, mais lúdico e descontraído, é John Lennon, que, nesses momentos, parece uma criança mais que um adulto. E isso é um elogio.

Vê-se que esse momento inicial, infantil, servia para 'quebrar o gelo', mas também para liberá-los de alguma dificuldade no processo criativo, pois, não muito depois, os vemos tocando e criando cada vez mais e melhor. A quantidade enorme de canções criadas num período de poucos meses é impressionante. Parece ter sido um período muito fértil para o quarteto de Liverpool, mesmo que tenha sido também o marco do término do conjunto.

Dois importantes psicanalistas se debruçaram sobre a experiência criativa e trouxeram reflexões que podem nos ajudar a olhar para estas cenas apresentadas por Jackson como uma espécie de comprovação exemplar da teoria psicanalítica da criatividade. São eles o próprio criador da psicanálise, Sigmund Freud e Donald Winnicott, aquele que tornou a criatividade um conceito psicanalítico.

Donald Winnicott

Em Os chistes e sua relação com o Inconsciente (1905), Freud nos mostra como as crianças brincam com as palavras com uma liberdade a que os adultos pouco se autorizam. Elas fazem jogos com as palavras por homofonia, por sua musicalidade, por trocas de letras, dentre outras possibilidades nada submetidas à exigência de racionalidade, clareza e seriedade que se espera encontrar no uso adulto das palavras. Freud entende que nós somos socialmente compelidos a recalcar certos modos de associar palavras em proveito de outros considerados ajustados à expectativa social. Também recalcamos, lembra Freud, além da forma como se associam ideias, o conteúdo de certos pensamentos, notadamente o conteúdo sexual.

Ora, os chistes, segue Freud, são um dos raros momentos da vida adulta em que os indivíduos se autorizam experimentar, de novo, tanto o conteúdo recalcado quanto a forma infantil. Os primeiros, os chistes tendenciosos, em piadas que, em geral, encontram graça em coisas proibidas como fantasias sexuais ou de violência e os segundos, os chistes inocentes, no nonsense. Em ambas situações, a mente encontraria alívio da coerção social. Muitos anos depois, em "O humor" (1926), Freud novamente se reporta a este alívio da coerção social na experiência do humor, dessa vez, propondo que o supereu deixa de agir de modo violento e se torna benevolente, o que causaria a aceitação de material provindo do inconsciente recalcado ou da realidade sem coerção psíquica.

Capa do álbum Let it be (BEATLES, 1970)

Em "Escritores criativos e devaneio" (FREUD, 1908) lemos uma espécie de continuidade às reflexões do livro dos chistes. Neste artigo descobrimos que Freud vê semelhanças no brincar infantil com o processo de criação artística adulto, e a passagem do primeiro para o segundo leva em conta ainda o fenômeno do recalcamento. As crianças, em suas brincadeiras, constroem fantasias que as auxiliam a dar sentido ao sexual, a si mesmos e ao mundo; o recalcamento, exigência da cultura sobre o sujeito ao longo de sua educação, incide sobre as fantasias que o campo social não autoriza existir; o artista é justamente aquele adulto que, ao invés de se inibir, consegue transformar o mundo/campo social de modo a incluir ali a fantasia outrora proibida de existir. Deste modo, o processo criativo é uma transformação do mundo a partir das próprias fantasias criadas através dos jogos infantis, cujas forma e conteúdo são muito mais alargados e fluidos do que a seriedade esperada pelas 'pessoas razoáveis'.

O brincar e a realidade (1975) é uma coleção de ensaios de Winnicott que nos ensina um pouco mais a respeito da experiência criativa. O psicanalista, inglês como os Fab Four, ao pesquisar pequenas crianças em sua atividade lúdica sinaliza algo importante: a brincadeira ocorre num espaço que não é nem unicamente objetivo nem unicamente subjetivo, ela se dá num espaço transicional, ou seja num continuum entre o subjetivo e o objetivo, de tal maneira que as fantasias são expressas ao mesmo tempo em que têm de ser transformadas ao encontrar limites, resistências e possibilidades na exploração dos objetos reais. Um lápis pode ser utilizado como um aviãozinho mas não pode ser utilizado como um sapato; pode ser prazeroso bater ou agarrar o ursinho de pelúcia, mas não é agradável mordê-lo. Este processo de criação de um continuum comunicável entre o subjetivo e o objetivo é condição para que o bebê se sinta fazendo parte de um mundo que ele pode transformar.

Neste espaço transicional, o processo criativo se daria, propõe Winnicott, por efeito da espontaneidade da criança que - primeiro por acaso, depois por repetição - se lança nos objetos. Mas tal espaço transicional só é possível de ser construído pela criança pois ela está num ambiente tornado apropriado para tal experiência. Winnicott supõe que uma mãe suficientemente boa apresenta os objetos à criança, com os cuidados necessários para que ela possa ter conforto, segurança e liberdade para brincar e se lançar naquele espaço se sentindo viva, criativa e não como receptora de uma dádiva do outro. Essa sensação de vida criativa vem em decorrência da experiência de ilusão que marca a coincidência entre o desejo da criança e a apresentação do objeto desejado: o efeito é que a criança crê ter criado o objeto desejado, de modo que o mundo é conotado mais como gratificante que frustrante, e, por isso, a criança se encoraja na exploração do ambiente mais do que se recolhe protetivamente, mesmo depois de não mais ter a ilusão de que seu desejo cria magicamente os objetos do mundo, como certamente ocorrerá com a maioria das crianças.

Michael Lindsay-Hogg entre os Beatles numa cena de Get Back (Peter JACKSON, 2021)

Experimentar a criatividade, continua o psicanalista e pediatra, é possível para o adulto - e aqui ele parece seguir Freud - quando se deixa, seja por cansaço, drogas ou voluntariamente, abandonar à espontaneidade de tal modo que a compulsão do eu por sustentar um certo modo de pensar e proceder é temporariamente deixada de lado; o sujeito experimenta uma não-integração na qual pode, de novo, relaxar numa experiência transicional na qual os mundos subjetivo e o objetivo não são mais facilmente discerníveis. Tais estados nos propiciam uma vivência criativa que não necessariamente se torna uma obra de arte. Mas pode vir a se tornar, como os Beatles mostraram, aliás. Não seria, na verdade, desta experiência que a letra de uma canção como I'm only sleeping (LENNON/MCCARTNEY, 1966) trata? E o nonsense de onde emergem os sentidos, próprio desta experiência e primeiro apontado por Freud, não se encontra também em diversas outras canções dos Beatles, como I am the walrus (id., 1967), Glass onion (id., 1968), Only a northern song (HARRISON, 1969) ou Come together (LENNO/MCCARTNEY,  1969)?

Mas os Beatles parecem ter sabido tornar a experiência criativa não somente uma obra de arte, mas uma profusão de grandes canções: Get back (LENNON/MCCARTNEY, 1969), Don't let me down (id., ibid.), Let it be (id., ibid.), The long and winding road (id, 1970), Octopus's garden (STARKEY, 1969), Something (HARRISON, 1969), I've got a feeling (LENNON/MCCARTNEY, 1970) dentre outras, foram compostas e muitas delas também gravadas nos poucos meses registrados por Lindsay-Hogg/Jackson. Os musicos se deixaram brincar, esquecer temporariamente a seriedade daquilo em que estavam envolvidos, fizeram piadas, nonsense, algumas fantasias sexuais expostas, grosserias sem censura também, numa mistura de cansaço, drogas e um autoabandono voluntário - este último semelhante, aliás, à associação livre de um paciente em análise.

 Talvez possamos dizer mesmo que ao convidar o paciente a associar livremente, o psicanalista também cria condições para que a experiência criativa também se efetue na sessão de análise, tal como no estúdio de gravação ou no parquinho das crianças. Seria por isso que Freud é um dos personagens escolhidos pelos Beatles a figurar na famosa capa de Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band (BEATLES, 1967), mesmo que esteja escondido (recalcado?)?

Os Beatles em uma cena de Get Back (Peter JACKSON, 2021)

Comentários

  1. Margarida Cavalcanti30 de maio de 2022 às 10:06

    Que ensaio bacana! Depois de "Get Back" voltei aos Beatles de modo surpreendente. Que maravilha tê-los. Beijos, Pedro

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    1. Valeu, Margarida! No meu caso, jamais deixei de ouví-los

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  2. OI Pedro, onde encontro o filme do Peter Jackson? Qual plataforma de streaming? super curiosa pra ver o outro lado do melancólico tratamento que o Lindsay-Hogg deu ao Let it be , sem contar a despedida triunfal do roof top concert

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  3. Adorei a leitura. O questionamento final também é ótimo hahaha!

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  4. Recomendo a leitura desse texto. Vou compartilhar!!!

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