Trabalho e luta

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Primeiro de maio: dia do trabalhador. Uma comemoração da luta dos trabalhadores contra aqueles que exploram seu trabalho e em nome de condições dignas de trabalho; o episódio que marcou a data ocorreu em Chicago, no ano de 1886, no contexto fabril; ainda assim é bom lembrar que a razão deste feriado internacional diz respeito à luta de todos os trabalhadores, especialmente - hoje em dia - aqueles aprisionados na uberização do trabalho.

Portanto, pensando rapidamente, poder-se-ia dizer que a data celebra a luta mais que o trabalho. Mas é preciso se debruçar cuidadosamente sobre o assunto para adotar uma posição mais segura a respeito do que esta data significa: escolhi três importantes nomes, dois contemporâneos aos episódios de 1886 e um outro que morreu três anos antes, para tentar demonstrar ao leitor que trabalho e luta são indissociáveis. O que morreu antes, em 1883, é, claro, Karl Marx; os outros dois são - cumprindo meu compromisso em articular psicanálise, arte e cultura -, Vincent van Gogh e Sigmund Freud.

Sapatos de camponês (Vincent VAN GOGH, 1886)

Marx é um autor incontornável se se quer pensar o ser humano a partir da referência ao trabalho. O ser humano é, em sua obra, definido pelo trabalho que exerce sobre a natureza, porém - mostra Marx - a economia política de sua época costumava subsumir, em suas análises, o trabalho e o trabalhador, quando intentava dar sentido ao valor das coisas. Combatendo o fetichismo da mercadoria, o amor ao valor monetário que marca o capitalismo, no início de O Capital, livro 1 (1867), Marx justamente tenta demonstrar que o valor das coisas só pode ser compreendido se considerarmos o valor do trabalho dispendido para a feitura e comercialização delas, o que, num movimento de ricochete, acaba por conferir ao trabalho a importância de forma social: trabalhamos uns para os outros; o trabalho é condição de laço social e, também, de valor social não só da mercadoria, mas também do próprio trabalhador. 

Em outras palavras, é o trabalho que dá valor ao humano. Portanto, para termos valor, é preciso que o valor de nosso trabalho seja reconhecido socialmente. Isso não se faz sem luta. Daí a importância de organizações em torno do campo do trabalho, como sindicatos, corporações ou partidos políticos que tomam o trabalho como bandeira. O proletariado, no modelo fabril capitalista, trabalharia na produção da mercadoria, mas receberia como pagamento por seu suor, apenas um salário necessariamente menor do que o valor de venda do produto; o excedente seria o lucro do empregador capitalista, que é dono das máquinas e da estrutura do ofício. O problema é que o trabalhador encontraria, deste modo, uma retribuição menor do que seus esforços na feitura da mercadoria, o que configuraria uma mais-valia, uma exploração por parte do capitalista que lucraria com o trabalho alheio. Em O manifesto comunista (1848), Marx e Engels convocam os trabalhadores a se unirem e lutarem contra essa injustiça em que o capitalismo os coloca. 

Karl Marx

Minha brevíssima exposição a respeito das relações entre trabalho e luta em Marx poderia terminar aí, mas, para passarmos a Van Gogh, quero lembrar o leitor que Marx define o trabalho como uma ação do humano sobre a natureza, de modo a transformá-la e usá-la para seu sustento.

Van Gogh também relacionará trabalho e natureza em suas Cartas a Théo (1873-90), corroboradas por sua própria obra pictórica. Nesta coletânea de cartas endereçadas a seu irmão, Vincent dá ao trabalho um valor dignificante, como é próprio de sua tradição protestante. Antes de querer ser pintor, o artista holandês quis ser pastor protestante como o pai; ensaiou ser missionário entre os mineradores e os camponeses da Holanda e da Bélgica; se compadecia - com o fervor da caridade cristã - pela vida sofrida daquelas pessoas cujo trabalho braçal e exaustivo sobre a natureza lhes dava sustento material, mesmo que precário, mas dava também sentido à vida, os aproximava da vida de sacrifício que Jesus ofereceu como modelo - um pobre artesão, e, depois, o cordeiro de Deus.

Mas as coisas não deram muito certo para Van Gogh em suas tentativas de ser missionário; era ridicularizado pelo povo ao seu redor, zombavam de sua loucura a ponto de fazê-lo se sentir, ao mesmo tempo, sozinho e identificado a eles que também sofriam ao serem ridicularizados pelas elites. É nesta época em que, através desta identificação, Van Gogh se lança - ele também - ao ofício de trabalhador.

Os comedores de batatas (Vincent VAN GOGH, 1885)

Seu trabalho é o de pintor. Se lança sobre a tinta e a tela como um trabalhador rural ou um minerador se lançam sobre a matéria dura e difícil de dominar que é a natureza. Para Van Gogh a natureza resiste, a natureza é algo sobre que o homem tem de trabalhar numa luta constante e angustiante para sobreviver, porém sabendo que ela é mais forte. O minerador morre cedo porque a natureza o mata, com pó tóxico, desmoronamentos etc. O camponês morre cedo porque o sol forte no verão e o frio intenso no inverno do campo, além da exaustão muscular do trabalho, o matam. O pintor viverá pouco tempo porque a química da tinta, o sol forte na cabeça, a exaustão muscular e, em seu caso, a exaustão mental, o matarão. 

Van Gogh lutava contra a loucura como lutava contra uma natureza maior, mais poderosa e mais violenta que seus esforços. Mas seus esforços o faziam sobreviver um pouco mais...até que não foi mais possível - e se matou. A obra de Van Gogh é, assim, um esforço de sobrevivência, o trabalho como luta constante para viver. Van Gogh luta violentamente com a tela, a sulca, pontilha, faz hachuras, acumula tinta em algumas partes, deforma o mundo nela, por vezes a tinta acaba, ele roça a tela com o pincel seco...e isso está entre os elementos que conferem valor à sua pintura.

Campo de trigo com camponês (Vincent VAN GOGH, 1889)

Freud utiliza o termo trabalho diversas vezes em sua extensa obra. Desde o trabalho do sonho, em 1900, até o conceito de elaboração, 1914, que é sobre o qual vou me ater - o tema aparece diversas vezes. A elaboração é um conceito e um fenômeno clínico importantíssimo, do ponto de vista ético da psicanálise. Em todos os Artigos sobre a técnica (FREUD, 1911-15) e, de novo, em Psicologia das massas e análise do eu (idem, 1921), o autor reafirma que a psicanálise não é uma prática de sugestão, ou seja, de dominação do analista como mestre sobre o paciente como servo, exatamente porque a elaboração do material de análise é feita pelo paciente e não pelo psicanalista. Explicando melhor: numa análise, o psicanalista convida o paciente a associar livremente; a partir das associações o analista auxilia o paciente a trazer a memória inconsciente à consciência...mas a partir daí é com o paciente!

"OK, agora sei que tais pensamentos, tais fantasias, tais desejos me habitam, o que faço?"; o analista não responde, ele cria um espaço e um tempo necessários para o paciente deliberar sobre o que faz, ressignificá-los, pode ser que vá incluí-los no seu repertório existencial, descartá-los, afirmá-los, mas vai agir sobre eles movido pela força afetiva que os impele à descarga e ao Consciente. Uma análise leva a uma transformação de si, uma remodelagem de si e dos valores cultuados pelo eu, porém não se sabe como será essa remodelagem, para que rumo vai o sujeito, para onde apontará seu desejo. O analista não se mete nisso, ele apenas torna possível a deliberação por parte do paciente que, como se vê, é agente e não passivo.

Sigmund Freud

Ora, esse trabalho, a elaboração, não se dá facilmente; ele supõe uma luta, um sujeito em conflito, seja entre o eu e o inconsciente, o eu e a realidade externa, o eu e sua consciência moral, as pulsões de vida e as pulsões de morte, o desejo de cura e os ganhos com o sintoma. Daí Freud recorrentemente adotar as metáforas da luta e da guerra para pensar a subjetivação e seus destinos, inclusive a elaboração do material surgido na análise. É porque é oferecido um espaço de liberdade em que o paciente pode lutar de novo lutas perdidas no passado (que resultaram em recalcamentos e outras defesas psíquicas obsoletas, como diz Freud [1937]) e, pode, ele próprio, deliberar sobre sua vida sem se curvar e ser explorado por um mestre, externo ou interno, que a psicanálise não é uma prática de sugestão, pregação ou hipnose - e isso se deve ao lugar estratégico da elaboração como trabalho do analisando - e somente dele.

Tanto Marx quanto Van Gogh quanto Freud tornam indissociáveis as ideias de luta e de trabalho. Se queremos trabalhar bem, devemos lutar para isso; se queremos lutar, isso requer certo trabalho; se cessamos de lutar e/ou de trabalhar, morremos socialmente (Marx), subjetivamente (Freud) e também realmente (Van Gogh).

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